Calorão de janeiro em plena primavera, o diferencial era o vento alísio
soprando, refrescando quem ali chegava, anunciando chuva que terminaria por
cair bem na hora dos serviços funerários. De outros refrigérios,
no entanto, carecia.
O primeiro a ser avistado foi o filho mais velho que imediatamente se pôs
a chorar, me abraçando. Cruzamos o pátio; olhares baços
nos miravam sem ver. À entrada da sala, só desolação.Vestes
negras predominavam em sintonia com o funesto destino a que uma existência
conduz.
Nenhum cheiro de santidade no ar que, pesado, parecia faltar a todos. As duas
viúvas se entreolhavam, dividindo também nessa hora o que já
partilhavam em vida.
Um familiar protesto contra a lentidão dos trabalhos burocráticos
da ocasião se fazia ouvir. Bramia impropérios sem respeito algum
senão ao morto ao menos às senhoras presentes.
Crianças brincavam na escaleira de pedra, alheias a tudo. Na outra ponta
do tempo, também alienados, idosos calejados - a maioria - não
se preocupavam nem em fingir reverência à situação.
O rumor aumentava à medida que o momento escorria. Quase se esqueciam
do que acontecera, sorrisos alegres indisfarçáveis pelo reencontro,
tapinhas nas costas cada vez mais efusivos, gargalhadas sem vergonha aqui e
ali entreouvidas.
A todos recepcionando, uma voz diminuta e monocórdia discorria sobre
o mal súbito que o acometera. Rudemente prosseguia seu monólogo
sobre a causa mortis, propagando um modus vivendi diferente do escolhido pelo
defunto: asséptico, sem fumo, álcool ou stress, inclusive o advindo
de dupla vida amorosa.
Uma jovem mulher desconhecida e solitária vagava pelo recinto apertando
as alças da bolsa como se temesse ser assaltada.
No canto, depois de muito balançar rítmica e hipnoticamente o
previdente guarda-chuva, um senhor acabara por cochilar, deixando seu monossilábico
interlocutor falando sozinho.
Envolta no silêncio das recordações enquanto acariciava,
pela última vez, suas geladas mãos, eu divagava. Da janela podia
ver lápides adornadas por flores murchas, pendentes. Um pesar se abatia
sobre mim.
Desejava ainda pudéssemos desfrutar daquelas intermináveis conversas
telefônicas por décadas e décadas. Mas a ligação
caiu. Irremediavelmente.