A Garganta da Serpente
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As mesmas letras

(Ana Camila Esteves)

Lá estava ela, mais uma vez. Lá estava ela cansada, aos pedaços, caminhando pelas ruas dessa cidade entorpecida. Sem amor, o vento jogando os cabelos antigos pra trás. Lá estava ela, mais uma vez, encantada com os devaneios da solidão, excitada com a possibilidade da indiferença que ronda os quatro cantos da sua alma. Lá estava ela, tão boba e tão fraca. E tão livre em seu próprio cárcere.

Mas ele... Ele estava em algum lugar, ela sabia, mas não estava mais lá. E, de repente, estava tudo tão cinza. Seus nomes eram os mesmos, suas vogais, seus números. Mas estava tudo sem cores. Ela caminhava em passos lentos, um sorriso contido. Ele se arrasta por entre as chances perdidas. Quem suportaria? Ela se esconde num mar de mentiras bobas que constroem o seu caminho. E ele? Não está. Não estará.

E lá estava ela, deitada sob as escadas, agarrada às próprias pernas, chorando, com frio. É realmente uma boba. Ela chora e sente sua falta, enquanto ele faz sexo com alguém sem rosto, sem cabelos, mas com o corpo perfeito. Ele não está mais lá e não há mais encontros, ligações, promessas. Ela permanece agarrada a si mesma, sem entender por que resolveu comungar com a incerteza novamente, depois de tantos anos.

Ela finge dormir, tranca os olhos, mas está sentindo tudo tão fielmente! Boba, uma grande boba. Você não vai colocá-la no colo? Veja, lá está ela esperando que ele diga que tudo o que pode oferecê-la é a sua mediocridade. Ela corre, ele foge. Ele cumpriu seu papel, veja como foi corajoso! Será alguém melhor e ela será alguém menos. E ela sabia. E ele acredita. E não há mais nada.

E, que boba, lá estava ela novamente, punindo a si mesma por ter sido tão humana, por não saber cortar laços, mesmo aqueles tão frágeis. Ela está lá, continua caminhando. Suas pernas sempre suportam os caminhos mais tortuosos. Ela anda e anda... Por que não pára? Ela não vai conseguir chamar a atenção dele. Ela sabe. Ela quer. Ela grita e sabe que nenhuma palavra será suficiente.

Ele bate na porta, tem um sorriso nas mãos para oferecer. Ela, boba, aceita. O que mais pode querer dele, que é tão pequeno diante dela e do mundo? O que pode ela querer da vida? Não acredita mais que haja amor como outrora, não tem mais espírito, sua alma fede. E ele, ele não percebe. Ele sorri, a abraça, ensaia algumas palavras levemente sensíveis e dorme à espera do próximo porre e depósito de esperma disponível. É a vida dele, o que ela diria? Para ela, ainda existem os filmes, as quartas-feiras, o Dia de Iemanjá, os ingressos grátis. Para ele, ainda há um mundo que a ela não interessa.

E no meio de tanto ardor, ela caminha, daqui a pouco vai estar se arrastando. No meio de tanta inexatidão, ele caminha sem pensar, porque pensar nunca foi a sua escolha. Ela respeita, mas o respeito já cai no olvido. Que bom pra ela. Que bom pra ele. Ele acorda, come por dez pessoas e vai à procura do exercício da sua mediocridade. Ela acorda e vê que o dia não nasceu feliz. Levanta e recolhe os pedaços da sua alma fétida espalhados pelo chão. Ninguém é melhor do que ninguém, por mais que possa parecer. Mas ela não deseja que seja assim, tampouco ele.

Ela se perde. Ele se encontra. Não há caminhos que os levem até um fim. Eles, bobos, acreditam que pode haver um fim. Não há vento, não há sabor. Bobos, bobos... Não há mais nada! Assistam aos vídeos, leiam as revistas, devolvam tudo. Lá estava ele, preparando-se para dormir com a porta aberta. Lá estava ela, tentando dispensar suas palavras a ele pela última vez. Fracassados. Inúteis e fracassados. Ela desliga o telefone e, sem lágrimas, entende que não há mais nada. Nem ela, nem ele, nem nada.

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