A luz entra pela fresta da manhã, iluminando os cantos escuros da casa,
assim como os teus olhos costumavam acordar os porões soterrados na minha
penumbra. Neles um dia me espelhara e me perdera.
A luz que percorre o espaço em arco-íris, apenas num momento se
fez elo e pela fresta passam, passeiam desígnios, sinais e sutilezas
de outros mundos.
Era como se todo o quarto tivesse sido acordado por pinceladas de cor.
Ao abrir o armário para limpar as roupas, descobre um fio solto que escapa
sorrateiro de um corpete de rendas. Lembra quando o usou pela primeira vez.
16 anos. Festa de noivado. Sabia ser feliz nesse momento.
Do corpete de renda passeia os dedos pela saia de tule. Alguns anos mais. Casada
e imaginava que algo ainda podia ser diferente. O sol que entra pela janela
realça as manchas amareladas das rendas adormecidas. Ganham tons de ouro,
de revelação. As imagens têm agora outro ritmo, de ritual.
Os objetos ressaltados pelos cristais perolados do facho luminoso resplandecem
em miudezas solenes de imperfeição. São pequenas lembranças
de viagens perdidas no tempo, colhidas com amor para significar emoções
vividas e às vezes insuspeitas, como marcos de recomeço.
Haviam ficado esquecidos na poeira da memória, apesar de cada um ter
a sua história passada em revista cada vez que dedos nem sempre cuidadosos
percorrem seus relevos.
Começo a lembrar de algumas, o relógio de porcelana inglesa, com
delicadas flores em relevo, a marcar o tempo de nossa ancestralidade comum;
o D. Quixote antigo, com minúsculas letras douradas, da época
em que nossa vida era levada pela beleza das batalhas contra moinhos de vento.
Delicio-me em pousar os olhos objeto por objeto, expressões de vidas
que não se parecem com as nossas de hoje. As roupas que não servem
ficaram ali à espera. Sabe que não é mais a mesma. Perdeu-se
no tempo das traças, do cheiro de mofo, da alma guardada.
A manhã está agora desperta por completo. Enganavam-me os olhos
talvez, mas a luz, agora fugidia, escapou pelo corredor e tudo voltou a ser
como antes, vagas sombras sem destaque, que sob o dia alto, assemelham-se a
imagens desfiguradas e entorpecidas no passado.
Diante do espelho, percebe o brilho do olhar que foi se apagando devagar ao
longo dos anos, tornando a vida opaca.
Revive as renúncias diárias, o preço a ser pago pela felicidade
serena. Experimenta as roupas que parecem ser de outra pessoa. Outra que não
ela, não mais. O marido realizado, os filhos crescidos. E eu?
A fresta está novamente selada. Redescobre-se mulher, presa às
amarras da sua história que não muda. Não sabe se conseguirá
largar os lastros e tomar outro rumo na vida. Mas algo dentro dela ainda pulsa.