Acordara num daqueles dias de encruzilhada, sem saber sequer que roupa vestir.
Um daqueles dias em que o melhor seria ficar estirada na cama, pensando qual
o filme passaria na televisão à tarde. Mas não queria pensar,
não tinha tempo para isso, sequer para apaziguar o estômago com
um café com leite bebido.
Saiu apressada, sem dizer adeus ao espelho, resignada pelas olheiras suspeitadas
e pela roupa meio amarfanhada pela pouca paciência com esses pequenos
cuidados consigo mesma.
Ao chegar à rua, caminha entresonhada, num recitar melancólico
de tarefas a cumprir.
Virando a esquina, o impacto da brisa fria do mar que pousa sobre a pele, quente,
traz contra a sua vontade lembranças de outros tempos, mais adormecidos
talvez, onde tudo era possível, ali, junto àquele outro mar. Mar
da infância, mar de dentro, povoado de criaturas belas e terríveis,
que pontilhavam seus dias de mistério, medo e fascínio.
Mas logo o roçar do tecido torna-se quase insuportável, lançando-a
de volta à realidade escaldante daquele dia de verão. As cicatrizes
do corpo haviam sido tocadas, trazendo o incômodo da alma e a capacidade
de lembrar o que há muito decidira esquecer.
O mal já estava feito, voltara a pensar na sua vida. Num ímpeto
de distanciamento, decidiu fazer um inventário claro e preciso do que
seria sua vida hoje: decisões dispersas sobre a mesa, possibilidades
de estradas a percorrer. - Mas quais eram mesmo? - escorrega.
Retoma o fio do pensamento e trata de achar algum alívio para carregar
na bagagem, preciosidades que servirão de alento em tempos mais duros:
fragmentos de cartas, pedaços de ilusão, cheiros de amores antigos,
mortes guardadas em pequenos baús a sete chaves, envoltas em delicados
papéis de seda azul.
Mas os lamentos decidem que também vão, assim como os medos e
as dúvidas, que não querem ser deixados para trás, apesar
de todo o seu empenho. Sente a clareza esvaindo-se em solidão e seu firme
propósito tornando-se cada vez mais brando.
Encontra-se novamente junto àquele mar distante, quando ainda podia sonhar
e fazer planos. O cheiro de maresia invade suas narinas; volta a sentir o gosto
de sol, o sal a queimar-lhe a pele jovem, ainda infantil. Pára de lutar
contra as lembranças e entrega-se às sensações tão
familiares.
Sabe que esse momento era o prenúncio do naufrágio que transtornou
sua vida desde então. Mas, como foi que aconteceu? Não consegue
lembrar. Na verdade, não sabe, nunca soube qual o fio que se rompeu e
que a tornou tão dura, distante, devotada a continuar em busca de algo
inominável. Quanto mais pensa nisso, mais enevoados e confusos ficam
os fatos.
Afundada nesse estupor, percebe que chegou ao trabalho. Mais um dia que começa
assombrado por velhos fantasmas.