A Garganta da Serpente
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Servidão

(Ana Gilbert)

Acordara num daqueles dias de encruzilhada, sem saber sequer que roupa vestir. Um daqueles dias em que o melhor seria ficar estirada na cama, pensando qual o filme passaria na televisão à tarde. Mas não queria pensar, não tinha tempo para isso, sequer para apaziguar o estômago com um café com leite bebido.

Saiu apressada, sem dizer adeus ao espelho, resignada pelas olheiras suspeitadas e pela roupa meio amarfanhada pela pouca paciência com esses pequenos cuidados consigo mesma.

Ao chegar à rua, caminha entresonhada, num recitar melancólico de tarefas a cumprir.

Virando a esquina, o impacto da brisa fria do mar que pousa sobre a pele, quente, traz contra a sua vontade lembranças de outros tempos, mais adormecidos talvez, onde tudo era possível, ali, junto àquele outro mar. Mar da infância, mar de dentro, povoado de criaturas belas e terríveis, que pontilhavam seus dias de mistério, medo e fascínio.

Mas logo o roçar do tecido torna-se quase insuportável, lançando-a de volta à realidade escaldante daquele dia de verão. As cicatrizes do corpo haviam sido tocadas, trazendo o incômodo da alma e a capacidade de lembrar o que há muito decidira esquecer.

O mal já estava feito, voltara a pensar na sua vida. Num ímpeto de distanciamento, decidiu fazer um inventário claro e preciso do que seria sua vida hoje: decisões dispersas sobre a mesa, possibilidades de estradas a percorrer. - Mas quais eram mesmo? - escorrega.

Retoma o fio do pensamento e trata de achar algum alívio para carregar na bagagem, preciosidades que servirão de alento em tempos mais duros: fragmentos de cartas, pedaços de ilusão, cheiros de amores antigos, mortes guardadas em pequenos baús a sete chaves, envoltas em delicados papéis de seda azul.

Mas os lamentos decidem que também vão, assim como os medos e as dúvidas, que não querem ser deixados para trás, apesar de todo o seu empenho. Sente a clareza esvaindo-se em solidão e seu firme propósito tornando-se cada vez mais brando.

Encontra-se novamente junto àquele mar distante, quando ainda podia sonhar e fazer planos. O cheiro de maresia invade suas narinas; volta a sentir o gosto de sol, o sal a queimar-lhe a pele jovem, ainda infantil. Pára de lutar contra as lembranças e entrega-se às sensações tão familiares.

Sabe que esse momento era o prenúncio do naufrágio que transtornou sua vida desde então. Mas, como foi que aconteceu? Não consegue lembrar. Na verdade, não sabe, nunca soube qual o fio que se rompeu e que a tornou tão dura, distante, devotada a continuar em busca de algo inominável. Quanto mais pensa nisso, mais enevoados e confusos ficam os fatos.

Afundada nesse estupor, percebe que chegou ao trabalho. Mais um dia que começa assombrado por velhos fantasmas.

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