A Garganta da Serpente
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As horas mortas

(Ana Gilbert)

Foi até a varanda fumar um cigarro, como de costume. Mas desta vez era diferente. Casamento desfeito, malas arrumadas, ida para um apart-hotel.

Repara na vista da varanda que é desconhecida. Terá de observar cada edifício, cada árvore, até conseguir visualizá-los de olhos fechados, para que a paisagem se torne familiar, como a outra.

As roupas trazidas, poucas, menos do que necessita, ternos, bermuda, sapatos, convivem pacificamente no armário. Uma paz que não sente. Sabe que qualquer dia destes será preciso voltar e buscar mais.

Objetos, quase nenhum, salvo alguns papéis dos negócios mais recentes, coisas de uso diário e a cigarreira de prata, herança de um avô distante, que agora acaricia.

Volta a pensar na mulher, nos filhos dormindo a essa hora.

Madrugada, a hora morta do dia. O mundo se suspende por alguns momentos e quase é possível iludir-se de que tudo não passa de um episódio de mal-gosto para perturbar sua metódica rotina. Mas sabe que não. Não desta vez. Agora é sem volta.

A discussão com a mulher, que os filhos tardios presenciaram, estraçalhou os já frágeis laços que os uniam, corroídos pelo tédio.

Era isso. Toda a sua vida se desenrolara em meio a um grande e inequívoco tédio. Dividia-se entre as roupas de trabalho e as outras, as de viver, que quase não usava.

Agora, frente ao vazio do horizonte, tenta retraçar os momentos bons, mas não consegue, como os edifícios da nova vizinhança. Eles escorregam na memória, pregam peças, escondem-se por entre os contratos fechados com os seletos clientes.

O vazio é também seu. Depara-se com o abismo instalado, sorrateiro, cavado sistematicamente a cada novo amanhecer sem sentido.

Uma brisa morna, estagnada, balança as folhas das árvores da rua. Imagina sentir um cheiro acre, que o deixa vagamente nauseado.

Um leve tremor perpassa os dedos que sustentam o cigarro.

Ao olhar a sala, percebe nos móveis impessoais as escolhas que nunca foram profundamente suas, mas de alguém que o habita. Quem?

Pela primeira vez é capaz de nomear algo em si e empalidece. Um filete de suor frio escorre pela têmpora. Sente, e isso é novo, que é preciso fazer algo.

Aquela sensação difusa na boca do estômago de repente grita dentro dele. Uma dor lancinante corta-o em diagonal, como o risco do espelho partido pelo frasco de perfume de mulher na noite anterior.

Como que em câmera lenta, apaga o cigarro e encara o telefone. Em algum ponto da cidade, na paisagem compartilhada, um outro telefone toca.

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