A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Cena

(Ana Gilbert)

No estúdio improvisado a câmera percorre o espaço distraidamente, parando aqui e ali sem se deter. O olho por detrás dela busca algo que o capture, há muito tempo busca. Já nem sabe quanto. Percorreu espaços, encontrou ângulos mas nenhum que o arrebatasse. Ao olho por detrás da lente. Gira... pára... torna a começar... insaciável... desamparado porque não encontra, nada-ninguém-amor-azul. Pulsa. Líquido, escorre-sofre. Pensa no que vê - não - não pensa, apenas percorre, desliza lentes como dedos, afaga, apalpa, quer ser tocado como a lente ao focar o espaço. Mas não é assim, é apenas a frieza do obturador que clique claque abre e fecha sem piedade. Comentários soltos, quase vazios. Como o olho que vê e que parece vazado.

De repente a câmera se detém.

O que tanto buscava o encontrou. Paralisado, muda o plano ajustando o foco, diminui a abertura, a velocidade. O tripé, sabe que não conseguirá sustentar o olhar sem ele. A câmera escuta a si mesma e o olho no jogo dos espelhos se reconhece. Esconde-se, fecha-se, o olho que vê por detrás da câmera. Teme ser visto. Sente-se perseguido ao descobrir-se no outro.

O tempo se esgota. Pinga lentamente da torneira semiaberta, grande e pesada como aquela escultura tão familiar. Escoa de um reservatório que nunca é alimentado. Escoará até acabar.

Sabe que não há mais tempo. De recuperar o amor perdido, o tempo gasto em buscar, que o esgarçou até onde não podia mais e o reduziu a um olho que olha através e que busca incessantemente algo que olhar.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br