A Garganta da Serpente
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Meu amigo Zaró

(Adhemar Molon)

Corria o ano de 1941...

Na vida de Marcos alternavam-se pesadelos e sonhos. Em seu oitavo ano de vida morava num belo sítio, montanhoso, bem próximo a um pequeno vilarejo, na vizinhança da Capital. A casa, antiga, portas e janelas de calha, incrustada num patamar de morro, se abria para um bonito gramado ladeado de arbustos de saias-brancas, flores como o copo-de-leite ou lírio, pendurados em longos e frágeis ramos.

Lá, naquelas altitudes, era bom sentar-se à grama, donde se via o trem de ferro desenhar, à sua passagem, imensa trilha de fumaça. A locomotiva, movida a vapor, expelia pela negra chaminé, fagulhas que de quando em quando acendia um dormente que permanecia durante horas esfumaçando o céu, ou então incendiavam o capim-gordura das orlas do caminho de ferro.

Ao derredor do pequeno sítio, umas poucas casas esparsas indicavam o fim do povoado que de importante tinha apenas a prefeitura, um destacamento da Força Pública, uma escola, a pequena estação ferroviária, um único cinema tipo galpão e um grande hospital psiquiátrico.Este último é que dava vida á pequenina cidade. Quando alguém dos arredores pretendia ir ao vilarejo dizia simplesmente que ia à estação como a significar o centro da aldeia, onde, nas poucas casas de comércio se transacionavam mercadorias extraviadas do hospício pelos funcionários, envolvendo produtos de cama, mesa, banho, calçados, peças de fazenda miudamente quadriculadas de branco e preto com que se confeccionavam roupas para os internos, e, também, produtos alimentícios. Até móveis, aos caminhões, eram desviados da fábrica do hospício para o comércio local.

Ninguém se escandalizava ou considerava furtadas as coisas tirados do governo. O hospital psiquiátrico do Juquerí pertencia ao Governo do Estado e sempre houvera roubalheira, mas, muito mais, ao tempo do governador Adhemar de Barros, diziam...

As conversas de botequins e das poucas esquinas giravam em torno de negócios, da grande guerra mundial em franca evolução e do pai dos pobres, o Dr. Getúlio Vargas, ditador mui amado ou temido naqueles tempos.

O ambiente não oferecia a Marcos o ensejo de se agrupar ou se socializar com outros de sua idade, razão porque se sentia muito solitário. Apesar desse tipo de confinamento a que fora submetido, naquele ano conheceu Zaró, pequenino e simplório quanto ele.

Zaró passou a ser o companheiro de todas as horas. Pequenino, gorduchinho, calmo, olhos muito vivos, andar elegante, chamava sempre a atenção dos poucos passantes. Era um verdadeiro e dedicado amigo. Jamais Marcos conhecera igual. Havia, a perturbar a paz daquela amizade, um grande inconveniente. Bruno, o mais recente companheiro da mãe de Marcos, seu padrasto, danou a implicar com aquela nova amizade, chegando mesmo a ameaças de morte contra Zaró. Bruno era extremamente violento. Antigo pistoleiro dos sertões de Goiás, Mato Grosso, Minas e outras paragens, paulista de nascimento, autor de vários crimes de morte por onde passara, onde houvera sido também tropeiro e boiadeiro, por qualquer dinheiro, dizia ele próprio, matava qualquer um sorrindo. Ironicamente, passou à profissão de açougueiro, com um açougue no centro do povoado bem pertinho da Estação. Repugnante, com as vestes constantemente ensanguentadas pelas carnes bovinas, pois tinha também um matadouro de animais, sempre vestido de boiadeiro, não se permitia permanecer sem um revolver no coldre da guaiaca. Tinha o hábito da bebida e costumava entrar em casa montada a cavalo disparando sua arma a esmo, assustando todo mundo que corria pro mato até que dormisse e se acalmasse. O homem, quando bêbedo, era o diabo em forma de gente. Tinha a mania de dizer que em sua casa era o único a "cantar de galo". Por isso, quando um galo, marido da galinha, cantou no terreiro, viu-se Bruno na obrigação moral de abatê-lo com um certeiro tiro na cabeça. Nesse dia comeram galinácea no jantar...De todos, quem não o temia, era Zaró. Por mais que o diabo esbravejasse não lhe saia de perto a não ser arrastado por Marcos. Ou era inconsequente, inconsciente ou valente demais.

Certo dia, lá pelos idos de 1944, o vilão, ébrio como sempre, chegou em casa disparando sua arma, acontecendo o costumeiro corre-corre. Era preciso esconder Zaró, o mais odiado. Porém, foi Zaró o primeiro a ser localizado na mira do pistoleiro homicida.

Descarregando toda sua ira, a cada palavrão seguia-se um disparo...Cinco tiros atingiram o pequenino rechonchudo que se quedou imóvel. Marcos, amedrontado, disparou-se mato adentro, deixando o amigo como morto, ficando a espionar assombrado por entre as folhagens, esperando que o maldito matador se afastasse.Tão logo o facínora adentrou a casa, Marcos saiu de seu esconderijo, chegando-se ao amiguinho inerte, abraçando-o carinhosamente, derramando-lhe lágrimas de amargura, dor, sofrimento indizível! Ficou quieto por algum tempo, agarrado àquele corpo mole ainda quente...De repente, tênues batidas ritmadas estimularam-lhe o tímpano.

A maravilhosa máquina da vida, o pequenino coração do amigo pulsava fracamente. Um frio esquisito perpassa-lhe a espinha, seguindo-se um tremor no corpo inteiro que se misturou com uma sensação de alegria e esperança! Suas mãos deslizam ternas às faces na procura de um confronto entre a morte e a vida. Seus olhos pairam nas fechadas pálpebras do amigo tão amado em busca de outro sinal que lhe reforçasse as esperanças! Zaró, como que sentindo aquele desesperado coração, busca socorrer o amigo angustiado, movendo ligeiramente os olhos semimortos, vislumbrando a Marcos a tão desejada esperança!...Zaró ainda vivia!... Marcos ficou zonzo, indeciso. Pensou em chamar os soldados e denunciar o malfeitor. Depois se lembrou de que o demônio tinha a amizade da polícia, do prefeito, do padre... Não era bem só amizade. Todos o temiam ou estavam comprometidos. Em sua casa, pessoas importantes do governo local e da Capital, bebiam e comiam churrascos de carne fresca. Apelar àquelas pessoas seria perda de tempo e um risco que não valia a pena correr. Aqueles fascistas não se importariam com dois pequeninos seres em prejuízo de suas vantagens e conveniências políticas. Restava-lhe, pois, como mais importante salvar Zaró. Com esforço Zaró foi arrastado pro meio do mato onde foi provisoriamente acomodado sem nenhum conforto. O menino limpou-lhe as feridas. Haviam dez visto que os projéteis transfixaram, atravessaram-lhe as carnes. Limpos os ferimentos, urgia a desinfecção e curativos. Precisava, portanto, ir a casa maldita em busca de remédios. O desespero pelo amigo ferido suplantou-lhe o temor ao diabo e esgueirando-se ressabiado até à porta dos fundos, espiou pra dentro e viu o quarto fechado. O porco bêbado ressonava...Roncava... Apanhou no armário, furtivamente, uma garrafa de pinga, um punhado de sal e um pouco de pó-de-café. Marcos estava, com isso, preparado para aquela emergência. A pinga desinfetaria as feridas, o café faria cessar o escorrimento de sangue e o sal seria o cicatrizante, pensava ele.

Os dias se iam lentamente. Sempre que podia, às escondidas, ferventava folhas de malva, erva milagrosa, para cobrir as chagas do amigo. Levava também leite e restos de comida que lhe enfiava goela abaixo para mantê-lo nutrido.Não tinha como levá-lo a um hospital. Bruno não devia saber que Zaró ainda vivia pois tentaria novamente matá-lo.

Marcos encontrara no mato um formigueiro vazio, desses que têm ao fundo um panelão, local da dispensa e desova da saúva. Forrara o panelão com folhas cobrindo-lhe a boca com ramas, deixando uma pequena passagem, fazendo daquela toca um leito de enfermaria para Zaró. Aquele lugar era-lhe estranhamente aconchegante. Melhor que o inferno da casa em que morava.

O menino passava quase todo o tempo cuidando do amigo Zaró que, graças ao milagre dos céus, convalescia sem poder ainda pôr-se em pé, e, na quietude da mata, relembrava os bons momentos que estiveram juntos durante os poucos anos passados. Naquela mesma quietude, remoia uma mistura de medo e ódio pelo bandido que lhe ocupara o lugar do pai. Lembrava-se dos horrores que já havia sofrido nas mãos daquele animal feito gente, das noites que dormia no mato por medo de morrer baleado, dos seus poucos brinquedos toscos destruídos pela fúria assassina, da sua primeira bola de capotão - como era chamada à época as bolas de couro - único presente de seu pai, picotada de faca pelo ex-pistoleiro de muitos sertões e de tantas outras maldades engendradas pelo cérebro alcoolizado daquele perverso padrasto. Jamais olvidaria da vez em que tomado pela fúria aquele maldito disparou sua arma tentando atingi-lo pelas costas quando corria desabaladamente para fugir-lhe a sanha sanguinária. Um velho pessegueiro guardou durante anos uma bala incrustada como a lhe lembrar depois de muito tempo lhe ter, naquela ocasião, salvado a vida. Marcos recordava e odiava...Recordava e odiava...

Numa das tardes, quando Marcos velava o amigo que roncava a sono solto, um pipocar de estampidos à distância, chegando quase como um sussurro trazido pelo vento, assusta-o e desperta-lhe a curiosidade. Sai cuidadosamente do mato e examina a circunvizinhança nada vendo de anormal. Seu olhar desconfiado observa mais pra longe. Vê então, riscos de fumaça traçado nas alturas e, pela distância, imaginou ser sobre o povoado. Os rojões triscavam e pipocavam o céu desenhando seus trajetos. Havia uma festa no vilarejo sem nenhuma dúvida. Marcos deixa Zaró no seu sono e vai à Vila...

Na pequena cidade um bombardeio de fogos de artifícios festejava o fim da segunda guerra mundial. Era o fim do grande pesadelo que abalara o mundo todo. A cidadezinha, perdida entre montanhas, também festejava o grande evento.Ressurgia um sonho de paz, esperanças, realizações, progresso...

Marcos era um privilegiado. Numa terra em que imperava o analfabetismo, ele acabara de concluir, aos trancos e barrancos, o curso primário. Possuía diploma do grupo escolar e o exibia orgulhosamente aos poucos colegas, todos engraxates no ponto de charretes de aluguel onde dois ou três automóveis competiam também no transporte dos poucos usuários.

Naquele dia, todos só falavam na grande festança espontaneamente já iniciada e na provável impunidade de Hitler e Mussolini. Alemanha e Itália haviam que ser punidas nas pessoas desses seus líderes. O Japão não figurava ali, entre os réus, talvez em razão dos acontecimentos em Hiroxima...A explosão da bomba atômica!...

Acontecia o crepúsculo. A população inteira parecia estar concentrada no pátio da igreja e na rua da estação. No pequeno coreto, bem no centro da única avenida, a bandinha tocava furiosamente fazendo ferver nas veias o sangue patriótico. Em meio àquela confusão surge um cortejo fúnebre. Dois caixões pretos, de segunda classe, contendo dois bonecões de pano ofendiam a memória dos homens que um dia, em suas respectivas pátrias houveram sido heróis de fascinante liderança. Agora estavam ali, Hitler e Mussolini, simbolicamente, expostos ao escárnio daquela multidão. A turba enfurecida acompanhava o féretro armada de paus e pedras. As tensões acumuladas nos anos de guerra explodem com loucura! Todos querem dar suas cacetadas e pedradas nos caixões. O que se iniciara como festa converte-se em desordem coletiva. Cada qual vê naqueles caixões o opressor de sua preferência: o pai, a mãe, o irmão, o prefeito, o padre... As pauladas se sucedem ! Pedras zunem no ar, ferindo-se uns aos outros. Ninguém sente nada! Ninguém se dá conta daquela selvageria! A histeria tomara conta de todos!...

Marcos, todo arranhado pela turba, esmurrava e chutava um dos caixões. Ele não sabia e nem queria saber quem era Hitler ou Mussolini. Ali dentro daquele negro invólucro, estavam presos, à disposição de sua vingança, seu padrasto e tudo o mais do mundo que o oprimia. Por isso aproveitou para descarregar toda sua tensão, toda sua raiva...

Os pedaços que restaram dos caixões e restos dos Judas foram amontoados no meio da rua. A gasolina escassa pelo racionamento de guerra foi derramada em abundância sobre aqueles escombros e, o fogo ateado, jogava labaredas a muitos metros de altura. Outros objetos foram acrescentados para alimentar a chama até que a sanha fosse contida pelo cansaço da multidão! Estava consumado! O Hitler e o Mussolini particular de cada um se acabaram momentaneamente. Consumiram-se no enorme fogaréu aceso pelas paixões humanas. Eles não eram nem melhores nem piores que ninguém. E o que importavam aqueles dois ditadores? Eram apenas símbolos, depositários das virtudes e defeitos dos seus concidadãos que agiram para satisfazer-lhes as paixões. Eram apenas homens que serviam e se serviam das emoções da espécie...

Aliviadas as tensões, com cada qual se sentindo vingado de seu inimigo particular, de suas frustrações, de sua própria covardia, estavam todos retemperados para o cotidiano...

Marcos voltara, aliviado, para seu amigo, encontrando-o a ensaiar alguns passos tremulantes para cair em seguida. Estava se recuperando milagrosamente...Zaró foi se pondo em pé com firmeza, conquistando o terreno com suas passadas agora confiantes. Mas, era preciso escondê-lo dos olhos da fera assassina, sempre enlouquecido de fúria, dopado pelo álcool...

Um dia, pela manhã, Bruno encilhava seu cavalo alazão. Com um pé no chão e outro no ventre do animal, puxava com as duas mãos a ponta da cilha. De repente para estupefato, feito estátua, naquela posição incômoda e a seguir estatela-se de costas. Levanta-se cambaleando com a cara mais estúpida do mundo! Agora sóbrio, sem álcool na cabeça, sacode-se repetidas vezes, incrédulo!...Marcos segue o rumo daquele olhar aparvalhado e vê a razão daquela patética cena... É Zaró!...

Novamente gorduchinho, calmo, imponente, olhar vivo, Zaró se faz presente! Escapara da toca e ali estava postado, desafiante, diante do incrédulo e estático Bruno! Permaneceu ali por mais alguns segundos, com seu olhar acusador. Depois, com garbo, com marcialidade, com um ladrar zombeteiro, deu meia volta e retirou-se sacudindo indiferente e com graça o seu toquinho de rabo, o seu cotó...

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