Ana Maria, já chegada aos trinta, olhava pela janela do seu apartamento,
no quarto andar. Enquanto mirava o vazio, aquele vácuo, procurava preenchê-lo
com fantasias de sua mente sonhadora e nessas suas divagações
via cavaleiros vestidos em polidas e pesadas armaduras que a disputavam na liça
da vida e dentre eles um se destacava vitorioso e a vinha buscar carregando-a
em seu colo e a conduzindo ao seu imponente castelo medieval onde passaria a
ser a suprema senhora que daria as ordens e seria obedecida.
O seu cavaleiro idealizado, o seu lorde da Távola Redonda, haveria que
continuar lutando contra o mundo que se lhe opusesse nas mínimas contrariedades.
Ele seria seu herói, seu semideus sempre pronto a purgar os seus pecados
e a defendê-la de todos os males do mundo.
Eis que, nesses devaneios, surge seu tão sonhado herói ! Era um
ser raquítico com todos os defeitos permissíveis à raça
humana ! Mas Ana Maria o via sem defeitos nem impurezas d'alma!Era seu sonho
realizado! Queria, precisava acreditar nisso !
Porém, aquele cavaleiro andante, abnegado, que lutava na defesa de donzelas
cativas, contra os terríveis vilões psicológicos ou quiçá
psicóticos, era até, por infelicidade e desgraça de muitos,
um homem do século vinte, inteiramente compromissado com mulher, filhos
e vivia de um mísero salário.
Os sonhos se avolumavam...
Derrepente, não se tratava mais de um heróico cavaleiro, um semideus.
Não! Era o próprio deus encarnado! Ana Maria se decidiu a não
mais aceitar nos próprios sonhos, nada pela metade. Por que um meio deus,
por que um simples herói ou cavaleiro ? Por que não sonhar mais
alto? Por que não exigir tudo por inteiro?...
Passou a aceitar a glória de viver com o próprio deus ! O puro,
o santo, o imaculado, dar-lhe-ia dedicação exclusiva quanto exclusiva
ela se propunha a ser.Assim, uniu-se ao seu deus, ao perfeito, inefável,
indizível!
Mas, o tempo, sempre o maldito tempo, acabou por frustrar-lhe os sonhos tanto
sonhados. Comera, ela e seu deus, sal junto e quando se come sal junto às
pessoas se conhecem melhor e tudo se transforma para o pior. Assim, o divino
passou a ser o impuro, o pecador, o demoníaco destruidor de sonhos, sentindo-se
então em companhia do próprio rei do mal, o diabo em forma de
gente. Deus houvera se convertido no próprio demônio, transformando
sua vida um verdadeiro inferno íntimo, tornando-se com isso insuportável
a vida em comum...
Depois e quem sabe ainda, Ana Maria olha novamente pela janela de outro apartamento,
num outro andar, numa outra cidade, em outro Estado, num seu outro mundo de
fantasias...Fixa outra vez o vazio a procura de novos sonhos, novos deuses...
Por quem sonha, agora, Ana Maria ?!...
Talvez nem ela o saiba...