"
um planeta desconhecido, com suas arquiteturas
e seus naipes, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas,
com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros
e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo,
com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso
articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico."
Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. (frag.).
Vencido pelo sono, pelo barro e pela tempestade; após dirigir quatro
horas ininterruptas em carreteiras de chão batido, lá pros lados
do Alegrete, paro sob copiosa chuva, em frente de providencial hotelzinho-de-fim-de-mundo
e sua típica arquitetura alemã do século XIX. Abaixo a
cabeça o máximo possível, e através do pára-brisa
molhado, ajudado por relâmpagos e faróis, consigo ler o letreiro
desbotado acima da entrada: "Albergue Noite das Noites".
Giro a maçaneta. A pesada porta cede à pressão do corpo
enquanto tênue luminosidade emana do interior. Meu gesto aciona rudimentar
e eficiente mecanismo de alerta; dispara dentro uma sineta rouca e acende a
luz vermelha onde estou. Logo recebo a ordem: "schließe die Tur!".
Fecho a porta em obediência e tanto a campainha como a claridade extinguem-se
de pronto; mas foi tempo suficiente para reconhecer o ambiente mobiliado ao
estilo europeu, trazido por imigrantes. 'Con permiso!' Em três
passadas dirijo-me ao balcão mal iluminado onde uma enorme, sonolenta
ampulheta persiste retardar o andejar dos tempos. Ali, emergido de algum conto
de Poe, aguarda-me um ancião alto e magro; veste camisola listrada, touca
desabada no ombro esquerdo e observa-me através dos óculos com
aros de tartaruga. Dou-lhe as 'buenas noches' e ouço algo rouco, gutural
e asmático. Arrisco. 'Una habitación, por favor'. Sem nada
dizer, abre solene um enorme livro e o gira com precisão, 180° no
sentido horário, em minha direção; depois me alcança
pena e tinteiro. Só vejo em telas de cinema tal tipo de registro ou aparato
de escrita. Rabisco com cuidado; lembro do tempo de minha alfabetização
e receio ser expulso caso borre. Poucas linhas preenchidas nesta página,
mas percebo o último registro ter acontecido trinta anos antes, em sete
de setembro de 1935; um certo Herbert Ashe, engenheiro de ferrovias, ficara
apenas uma noite. O penúltimo fora de Gunnard Erfjord; dizia-se demiurgo
e hospedara-se em 1913, também por uma noite. Declarava vir de Ouro Preto
e iria para Buenos Aires. Impaciente, o velho toma-me a pena e com um arquejo
gira o livro para si, desta vez no sentido anti-horário, e o fecha com
grande deslocamento de ar e poeira. A capa em couro amarelo ostenta um óvalo
azul e na inscrição dourada leio: "Orbis Tertius".
"Los!". Sigo-o até a sétima e última porta
de um corredor escuro. "O toalete fica ao lado, mas o banho, caso tome,
será cobrado à parte". Com isso dá-me as costas arfando;
o ronco da asma cadenciando as chinelas.
O quarto aquecido por um antigo radiador situado junto da parede, é revestido
de papel com estampas. Algumas aludem ao tempo, outras ostentam estranhas formas
geométricas. Escova de dente em punho, vou ao toalete. Na toalha de rosto
limpíssima, estão bordadas as iniciais "O.T.".
Busco espelhos e não os encontro. Já no quarto, leio por cima
da cama a inscrição emoldurada: "Enquanto aqui dormimos,
despertos estamos noutro lado; assim, cada um é dois". Deitado,
olhos cerrados, reflito os últimos acontecimentos
'As coisas
duplicam-se, propendem simultaneamente a apagar-se e a perder detalhes, quando
as pessoas as esquecem. Certo umbral perdura enquanto o visita um mendigo, mas
se perde de vista com sua morte. Alguns pássaros, um cavalo, salvam as
ruínas do anfiteatro.' Acordo e volto a adormecer
'vislumbro um
deus subalterno; entende-se com um demônio. Valem todos os símbolos
,
mas só são verdadeiros os acontecidos a cada trezentas noites
'.
Desperto revigorado, apenas a cabeça pesa. Na recepção,
em lugar do velho estalecido, encontro uma simpática rapariga loira de
olhos azuis e avental bordado com estranhos símbolos. Tento bisbilhotar
o grande livro, mas a fräulein, apesar da insistência, impede-me
de examiná-lo. A ampulheta permanece fugaz, entretanto a areia entorpecida
mantém o nível da véspera e tampouco se altera enquanto
fecho a conta. Questiono a duração de seu ciclo. A fräulein
lacônica revira os olhos inquietados: "O adequado! Nem mais, nem
menos". A diária não inclui o desjejum; decido então
tomá-lo no caminho. Devolvo-lhe a chave e só aí reparo
gravado na elipse de metal da qual pendia: "Albergue Noite das Noites",
e abaixo em minúsculas letras: "O mundo será Tlön".
Só então percebo com absoluta clareza a tímida gravidez.
O minuano sopra forte a madrugada e constrói um céu azul cristalino.
Desfruto da gélida paisagem pampiana curva após curva e paro no
primeiro bolicho de campanha. A mulher baguala, peitos roliços e poderosos
quadris, serve-me café-com-leite, ovos fritos e cozidos, pão escuro,
linguiça seca, creme, banha e mel de lecheguana. Quando lhe indago
do lugar onde pernoitara, olha para o bombachudo escorado no balcão e
responde em bom portunhol: "por esta cruz (beija os dedos indicadores,
em cruz), no hay nada em la dirección dela cual usted vino. Por lo menos
en una hora, considerando que su automóvil es muy ligero". Ao
pagar, o bolicheiro entre dentes, confirma no mesmo linguajar e por não
ter troco, empurra-me uma rapadura na palha. Não convencido, dirijo atento
de volta por uma hora. Devoro a rapadura melada até encontrar um posto
de combustível. Devido à conjunção de um temporal
e de uma fadiga descobri o "Noite das Noites". 'Já
li algo nesse tom em algum lugar'. O local evaporara da mesma maneira como
o encontrei: por encanto! Encho o tanque e retorno devagar. O guasca e a índia
mateiam na porta da venda à sombra dum velho coqueiro entediado. Diminuo
a marcha e lhes dou 'adios'; acenam-me e o homem grita: "aqui
es um agujero en la nada".
Chego no Alegrete à tardinha sob um calor ruivo, mas embora exausto e
faminto, corro primeiro à telefônica onde peço uma ligação
internacional. '¿
Jorge? Soy yo, amigo. Mañana estaré
ahí con una buena historia'.