A Garganta da Serpente
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Nova aparência?...

(Adhemar Molon)

O homem, de muitos anos vividos, sonhava com os seus tempos idos. Escolaridade de nível superior, com inúmeros diplomas e certificados universitários, formado em ciências jurídicas, dedicado a estudos filosóficos durante mais de quarenta anos, supondo-se até um psicólogo nato, nunca houvera conseguido se encontrar durante seus tantos anos de existência. Procurava sempre por alguma coisa sem ao menos saber o que. Vivia sempre à espera de algum acontecimento que lhe iluminasse um caminho. Porém, tudo a lhe acontecer apresentava-se tão comum!... Então mergulhava em seu cotidiano, em sua rotina, permanecendo em sua vidinha sem encontrar nenhum sentido para continuar vivo. Vez por outra tentava fugir desse lugar comum, voar para outras alturas, adquirir novos conhecimentos, mas sempre retornando ao seu caminhar sem nenhuma mudança que valesse a pena nela se fixar...

Pessoa sofrida, com inúmeras perdas significativas, tinha o coração muito machucado por tantas mágoas. Esse seu órgão vital que lhe bombeava o sangue, parecia até um vegetal bulboso, qual uma cebola, formando camadas sobre camadas, cada qual escondendo alguns pesares que procurava sufocar com outras camadas sobrepostas. Porém, esse bulbo enquanto quieto sob seu invólucro parece apresentar-se como simples tempero, mas ao lhe tirar a película e mexer na primeira camada começa a provocar ardência nos olhos causando o surgimento de lágrimas como a esdrúxula analogia que o velho fazia com o seu coração e mente.

Tal bulbo, nascido de uma minúscula semente, permanece escondido sob as terras de seu canteiro, exibindo sobre o solo, inicialmente, apenas um brotinho que vai se metamorfoseando em longas folhas e oculto da visão, vai formando suas estratificações, até chegar a ponto da colheita. Assim acontece também com os seres vivos que, cuja semente lançada, o espermatozóide, segue no seu caminhar até o terço médio das trompas de falópio, canal que se estende de cada lado do útero até aos ovários e ao se encontrar com o óvulo expelido ocorre então a fecundação que ao chegar ao seu destino, tem início ao milagre da vida. Aos poucos as células se multiplicam originando-se a formação do embrião. O coração e cérebro, qual uma cebola, começa a formar suas camadas das mesmas emoções sentidas pela dona dos órgãos reprodutores durante seu período de gestação cujo embrião se alimenta dos nutrientes levados até ele pelo sangue da mãe via cordão umbilical. Tal milagre se completa quando o que era uma simples semente, ao inalar o sopro da vida e ao sentir-lhe a luz, como que se surgisse por sobre a terra um brotinho tal qual a dita cebola, passa a ser um indivíduo, tábua rasa, que com o tempo vai adquirindo sua própria personalidade e vai se forjando o seu caráter. Então, em seu coraçãozinho e em seu intelecto, outras camadas vão se somando àquelas que se formaram no útero, acumulando outras emoções durante toda sua vida.

O idoso que se recusava a aceitar a velhice que fatalmente lhe seguiria o despedir da vida, sentia de nada valer alguns conhecimentos e experiências acumulados se os levasse para o túmulo. Em sua razão analítica imaginava que até então essa vivência não lhe proporcionara nenhuma satisfação ou felicidade, mas inúmeros desgostos que se notavam em suas rugas parecendo estarem nelas representados.

Vindo de uma época em que televisão era mera ficção, computação ou informática não houvera nem chegado à imaginação das grandes massas e quiçá às muitas mentes esclarecidas, a medicina ainda engatinhava no tratamento das infecções e da tuberculose, e também para a paralisia infantil, a varíola, a raiva, os envenenamentos por rastejantes e insetos e tantos outros males para os quais inexistiam os conhecimentos de fórmulas apropriadas às suas prevenções, pode ele, o velho, acompanhar e se atualizar em toda essa evolução e tanto progresso sem permanecer deitado em berço esplendido ao som do mar e a luz do sol ou do céu profundo. Acompanhou todo esse progresso e aprendeu a dele se utilizar com certa maestria. Não conseguia e nem queria sentir-se um inútil vivendo em dependência dos mais jovens, principalmente por que via em toda essa evolução, grande desinteresse da juventude pela busca do saber, ressalvadas as raras exceções. A maioria dos jovens quer viver apenas o presente, pouco se importando com o futuro. Alguns abnegados dedicam-se à salvação do nosso planeta, ocupando-se inteiramente a essa tarefa como se fossem viver mais alguns milhões de anos quando então nosso mundo seria extinto devido às ambições materialistas daqueles que somente buscam a riqueza descuidando-se da herança que deixariam aos seus descendentes, negligenciando-se da maior das heranças que é o seu próprio meio ambiente que vêm destruindo sem nenhum escrúpulo.

A medicina estética e tecnológica avançou tanto, mas com certeza sem chegar ao auge e provavelmente terá muita demora em alcançar o pináculo. Muitos velhos, desejosos em melhorar as aparências procuraram nela, nessa medicina da estética, a continuidade de uma vida mais suportável querendo escapar das agruras padecidas pelos idosos e do sentimento de piedade que muitos lhes nutrem. Tais profissionais da estética, além de médicos competentes, emergiram também para o campo das artes na transformação de rostos enfeados pelo passar dos anos dando-lhes feições mais bonitas, procurando esconder os desgastes provocados pelo tempo, melhorando em muito sua autoestima. Esses artistas-médicos, os que se prezam, estão sempre a procurar o melhoramento de suas técnicas para prestarem melhores serviços em sua arte medicinal.

Informado de tais progressos, o sexagenário alcançou um desses artistas da medicina e saiu em busca do rejuvenescimento. Encontrou um muito competente que mediante cirurgia lhe deu a aparência da metade de sua idade. Após tanto sucesso, arrumou seus cabelos escondendo sua calvície. Estando com aparência de menos anos vividos, procurou uma dermatologista para melhorar ainda mais. Ganhou então o aspecto de ainda mais jovem. Agora aparentava estar talvez nos trinta ou 40! Mas, tinha mais de sessenta e continuaria a tê-los. Isso nenhum progresso da medicina modificaria! Ninguém jamais faria cirurgia no espírito, na alma! Nenhum progresso da medicina estética poderá mudar a realidade a não ser na mera aparência! Muito menos poderá alterar ou alternar o predestinado ciclo da vida que não seja apenas prolonga-lo! Isso seria possível com certeza! Prolongar não significa alterar para o eterno, pois eternidade é utopia!...

O velho senhor, sentindo-se jovem na aparência tentou reorganizar, reestruturar seu futuro por sentir-se novamente um jovem. Era certamente uma falsa juventude! Mal começara a reorganizar-se, passara a sentir-se culpado pelos dissabores que provocaria às pessoas que lhe cercavam e que lhe eram caras. Então o que poderia fazer? Chutar a consciência e continuar no seu propósito ou parar por aí convivendo nesse contraste com pessoas que não pretendiam mudar seu visual?... Continuou nesse viver sem tomar nenhuma decisão... A única decisão definitivamente firmada era a de que não voltaria a aparência de decrépito enquanto isso lhe fosse possível evitar...

Imaginou, então, uma volta ao passado com toda experiência adquirida e com a mesma capacidade intelectiva existente. Aos seus sete anos de idade e sendo isso possível, o que poderia ser retificado para um novo tempo presente.

Alguns crentes em reencarnações supõem que as lembranças de todas elas ficam armazenadas na mente, adormecidas em algum cantinho da consciência ou gravadas no subconsciente. Creem também que em situações muito especiais tais lembranças afloram revelando um ou mais acontecimentos de vidas passadas. Bom seria que fosse verdade. Porém, certamente, todas as ocorrências da vida atual ficam guardadas no armazém de memória do cérebro vivente. Acontece o mesmo com as emoções passadas que se supõe guardadas no coração e que na verdade estão no cérebro, no intelecto, na mente que é quem tudo comanda. Tudo isso, dessa vida real, não imaginária, é fácil de ser reativado, revivido desde a mais tenra infância.

Aquele homem chegara à idade avançada, recusando-se a aceitar sua velhice. Queria parecer jovem, apesar da idade. Não sabia como, mesmo sendo um dedicado estudante de psicologia, sociologia e filosofia durante seguidos anos e sendo agraciado com escolaridade de nível superior. Com tudo isso, vivia a se procurar naquela ânsia de se encontrar. Em dado momento, veio-lhe uma aparente conformação no aguardar dos seus últimos dias. Para matar o tempo, passou a cultivar um jardim de inúmeras espécies de flores tentando dar um colorido à sua vida. Passava seu tempo a adubar suas plantas, a arrancar com as mãos ervas daninhas do gramado de seu jardim, criando calos em seus dedos delicados e desacostumados desse penoso trabalho.

Aquele ilustre ancião tinha profundos sulcos na testa, rugas em todo o rosto, pálpebras caídas quase a lhe esconder os olhos, enormes bolsas sob as vistas, queixo parecendo escamas de peixe de tão enrugado e um pescoço tão pelancudo parecendo papo de peru balançando aos ventos e ainda uma calvície tomando conta de quase toda a cabeça.

Quando se olhava no espelho, sentia-se um derrotado pelo tempo! Passava-lhe então nos pensamentos a ideia do suicídio. Não queria se ver morto naquela situação tão constrangedora, pois fora jovem e bonito há tão pouco tempo! Agora ali estava com aquela cara de múmia como aquelas descobertas nas tumbas das pirâmides do Egito pelos estrangeiros arqueólogos! Sentia-se frustrado e inconformado, mas continuava na cultura de seu jardim, calejando suas mãos onde se formavam crostas que mais e mais o desencantavam, apenas lhe servindo como compensação a beleza que surgia de suas flores com tanto carinho cultivadas...

Então, sem que esperasse, surge a mais bela das mulheres vista pelo seu olhar! Ela o fascina, o encanta sobremaneira! Surge como a consumi-lo! Torna-lo num escravo daquela suposta beleza, de vez que a beleza se contém nos olhos de quem a vê...Talvez nem fosse considerada bonita para outros olhares, mas para os seus era o que havia de mais belo!...Mira-se constantemente no espelho e seu rosto enrugado não consegue se ver merecedor de tanta beleza!

Surge então aquela ideia maluca de rejuvenescer para se tornar merecedor daquela paixão tão idiotamente sonhada! E parte ao encontro de uma solução! E encontra um cirurgião plástico que lhe estica a pele construindo um novo rosto quase sem nenhuma ruga! As pálpebras que lhe escondia os olhos são suspensas, as bolsas infladas de gorduras são eliminadas, as pelancas de seu pescoço são extirpadas mudando sua aparência para bem mais jovem.

Não satisfeito, elimina sua calvície reduzindo ainda mais na aparência a sua idade. Sai a procura de uma dermatologista. Queria eliminar quaisquer resquícios de rugas sobradas da cirurgia plástica. A lindíssima doutora encontrou pouco a ser feito, porém, diante da insistência do idoso, receitou-lhe alguns ácidos e cremes de alto custo. O tratamento mostrara-se bastante eficaz. O homem mal se reconhecia no seu próprio rosto. Começou então a comportar-se como adolescente, sonhando loucuras, alimentando ilusões, querendo ser jovem também na idade o que era impossível. Abandonou seu lindo e enorme jardim que ladeava toda a casa e se prolongava por um bom pedaço de terreno, deixando que as ervas daninhas sufocassem suas flores. A linda mulher que o motivara a se reformar esteticamente já não lhe parecia tão bonita e começava a perder seu encanto. Agora, todas as jovens lhe pareciam belas. A doutora, sua dermatologista, começou a lhe despertar uma tremenda paixão e um imenso desejo em possuí-la. Sentia-se um rapazola novamente. Muitas pessoas não mais o reconheciam. Nem podia mais usufruir certas atenções dadas aos velhos como, por exemplo, os atendimentos privilegiados nos estabelecimentos bancários. Ao entrar na fila de idosos, passou a ser olhado como um tremendo cara de pau que não convencia nem mesmo com a apresentação de sua cédula de identidade. Obter descontos nos preços de medicamentos em farmácias começou a ficar difícil. Seus filhos e netos adultos os quais se orgulhava de mencionar, deixaram de ser lembrados nos contatos e conversas com as pessoas. Quanto aos filhos nem mesmo mais gostava que o citassem como sendo seu pai. Tantos contrastes, incoerências e outros acontecimentos diários principiaram a lhe causar certa confusão mental. Tinha aparência física de jovem, sentia-se espiritualmente um rapaz, porém sabia que carregava o peso de muitos anos. Começou a ficar confuso. A não mais se reconhecer! Estava ficando perdido de si mesmo! Deixou de ter aquela certeza do que ou de quem era!...

As modificações por que passara, no aspecto estético, provocadas pela cirurgia plástica, pelo tratamento de pele e pelos arranjos nos cabelos, furtaram-lhe muito de sua identidade, de sua personalidade, modificaram em grande parte seu caráter!

Aposentado há muitos anos, voltou ao trabalho. Reabriu seu escritório de profissional liberal e passou a se isolar da família. Pensou em recomeçar sua vida em outro lugar e com outras pessoas onde não pudesse mais ser reconhecido, identificado, mas passara a temer um recomeço por ter consciência do pouco tempo lhe restaria para viver. Criara na mente uma tremenda confusão e passara a ter crises de personalidade e começara a se indagar:

- Quem sou, agora?...

Não conseguindo encontrar uma boa resposta, vai, talvez, continuar perdido de si mesmo até aos seus últimos dias...

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