Terminava a primeira parte do espetáculo, quando D. Olímpia entrou
no circo, pelo braço do pai.
Havia grande enchente. O público vibrava ainda sob a impressão
do último trabalho exibido, que devia ter sido maravilhoso, porque o
entusiasmo explodia por toda a plateia e de todos os lados gritavam ferozmente:
"Scot! À cena Scot!" Dois sujeitos de libré azul com
alamares dourados conduziam para o interior do teatro um cavalo que acabava
de servir. Muitos espectadores, de chapéu no alto da cabeça, estavam
de pé e batiam com a bengala nas costas das cadeiras; as cocotes pareciam
loucas e soltavam guinchos, que ninguém entendia; das galerias trovejava
um barulho infernal, e, por entre aquela descarga atroadora, só o nome
do idolatrado acrobata sobressaía, exclamado com delírio por mil
vozes.
- Scot! Scot!
Olímpia sentiu-se aturdida; o pai, no íntimo, arrependia-se de
lhe ter feito a vontade, consentindo em levá-la ao circo, mas o médico
recomendara tanto que não a contrariassem... e ela havia mostrado tanto
empenho no capricho de ir aquela noite ao Politeama...
De repente, um grito uníssono partiu da multidão. Estalaram as
palmas com mais ímpetos; choveram chapéus; arremessaram-se leques
e ramalhetes, Scot havia reaparecido.
- Bravo! Bravo, Scot!
E os aplausos recrudesceram ainda.
O ginasta, que entrara de carreira, parou em meio da arena, aprumou o corpo,
sacudiu a cabeleira anelada, e, voltando-se para a direita e para a esquerda,
atirava beijos, sorrindo, no meio daquela tempestade gloriosa.
Depois de agradecer, estalou graciosamente os dedos e retirou-se de costas,
a dar cambalhotas no ar.
Desencadeou-se de novo a fúria dos seus admiradores, e ele teve de voltar
à cena ainda uma vez, mais outra, cada vez mais triunfante.
Olímpia, entretanto, com a cabeça pendida para a frente, o olhar
fito, os lábios entreabertos, dir-se-ia hipnotizada, tal era a sua imobilidade.
O pai tentou chamá-la à conversa; ela respondeu por monossílabos.
- Queres... vamos embora.
- Não.
Na segunda parte do espetáculo, a moça parecia divertir-se. Não
despregava a vista de Scot, a quem cabia a melhor parte dos trabalhos da noite.
O mais famoso era a sorte dos voos. Consistia em dependurar-se ele de
um trapézio muito alto, deixar-se arrebatar pelo espaço e, em
meio do trajeto, soltar as mãos, dar uma cambalhota e ir agarrar-se a
um outro trapézio que o esperava do lado oposto.
Cada um destes saltos levantava sempre uma explosão de bravos.
Scot havia feito já; por duas vezes, o seu voo arriscado; faltava-lhe
o último e o mais perigoso. Diferençava este dos primeiros em
que o acrobata, em vez de lançar-se de frente, tinha de ir de costas
e voltar-se no ar, para alcançar o trapézio fronteiro.
O público palpitava ansioso, até que Scot afinal assomou no alto
trampolim armado nas torrinhas, junto ao teto.
Cavou-se logo um fundo silêncio nos espectadores. Os corações
batiam com sobressalto; todos os olhos estavam cravados na esbelta figura do
artista, que, lá muito em cima, parecia, nas suas roupas justas de meia,
a estátua de uma divindade olímpica. Destacava-se-lhe bem o largo
peito, hercúleo, guardado pelos grossos braços nus, em contraste
com os rins estreitos, mais estreitos que as suas nervosas coxas, cujos músculos
de aço se encapelavam ao menor movimento do corpo.
Com uma das mãos ele segurava o trapézio, enquanto com a outra
limpava o suor da testa. Depois, tranquilamente, sem o menor abalo, prendeu
o lenço à sua cinta bordada e de lantejoulas e deu volta ao corpo.
Ouvia-se a respiração ofegante do público.
Scot sacudiu o braço do trapézio, experimentando-o, puxou-o afinal
contra o colo e deixou-se arrebatar de costas.
Em meio do circo desprendeu-se, gritou: "Hop!" deu uma volta no ar
e lançou-se de braços estendidos para o outro trapézio.
Mas, o voo fora mal calculado, e o acrobata não encontrou onde
agarrar-se.
Um terrível bramido, como de cem tigres a que rasgassem a um só
tempo o coração, ecoou por todo o teatro. Viu-se a bela figura
de Scot, um instante solta no espaço, virar para baixo a cabeça
e cair na arena, estatelada, com as pernas abertas.
O recinto do circo encheu-se logo. Nos camarotes mulheres desmaiaram, em gritos;
algumas pessoas fugiam espavoridas, como se houvesse um incêndio; outras
jaziam pálidas, a boca aberta e a voz gelada na garganta. Ninguém
mais se entendia; nas torrinhas passavam uns por cima dos outros, numa avidez
aterrada, disputando ver se conseguiam distinguir o acrobata.
Este, todavia, sem acordo e quase sem vida, agonizava por terra, a vomitar
sangue.
Olímpia, lívida, trêmula, estonteada, quando deu por si,
achou-se, sem saber como, ao lado do moribundo. Ajoelhou-se no chão,
tomou-lhe a cabeça no regaço, e vergou-se toda sobre ele, procurando
sentir nas faces frias o derradeiro calor daquele belo corpo escultural e másculo.
E, desatinada, ofegante, apalpava-lhe o peito, o rosto, a brônzea carne
dos braços, e, com um grito de extrema agonia, molhava a boca no sangue
que ele expelia pela boca.
Scot teve um estremecimento geral de corpo, contraiu-se, vergou a cabeça
para trás, volveu para a moça os seus límpidos olhos comovidos,
agora turvados pela morte, soltou o gemido derradeiro.
E o corpo do acrobata escapou das mãos finas de Olímpia, inanimado.
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