Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante,
mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos
beijos.
O céu, vermelho e quente, debruçava-se sobre ela, envolvendo-a
num longo abraço voluptuoso; de todos os lados ouvia-se o lamentoso estridular
das cigarras, e as árvores concentravam-se, murmurando, em êxtases,
como se rezassem a oração do crepúsculo.
Àquela hora de recolhimento e de amor a natureza parecia comovida.
A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas
de orvalho, prenhez de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação
difusa. Uma boiada recolhida ao longe, abeberando nos charcos do caminho, e
bois tranquilos levantavam a cabeça, com a boca escorrendo em fios
de prata, e enchiam a solidão das clareiras com a prolongada tristeza
dos seus mugidos. Num quintal, entre uma nuvem de pombos, uma rapariga apanhava
da corda a roupa lavada que estivera a secar durante o dia; enquanto um homem,
em mangas de camisa, passava pela estrada, cantando, de ferramenta ao ombro.
De cada casa vinha um rumor alegre de famílias que se reúnem para
jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se
o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado da mulher e dos
filhos.
Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à
sombra das árvores, foi assentar-se, triste e preocupado, nos restos
de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência
da sua folhagem viçosa e florida. E aí ficou a cismar, perdido
num profundo enlevo, como se o ardente perfume daquela tarde de verão
fora forte demais para a sua pobre alma enferma de homem casto.
Estranhos e indefinidos desejos levantavam-se dentro dele, pedindo confortos
de uma felicidade que lhe não pertencia e levando-o a cobiçar
uma doce existência desconhecida, que seu coração magoado
e ressentido mal se animava de sonhar por instinto.
E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa,
todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta
esperança no futuro!... Quanta inocência nas suas aspirações!...
Quanta confiança em tudo que é da terra e em tudo que é
do céu!... Nesse tempo não conhecia ele a luta dos homens contra
os homens; não conhecia as guerras da inveja e as guerras da vaidade;
não conhecia as humilhantes necessidades deste mundo; não conhecia
ainda a responsabilidade da sua vida e não sabia como e quanto dói
ambicionar muito e nada conseguir. Ah! nesse tempo feliz, ele era expansivo
e risonho. Nesse tempo ele era bom.
Mas, continuou a pensar, cruzando sobre o fundo estômago as mãos
finas e descoradas, enterraram-me numa casa abominável, para ser padre.
Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: "Estuda, medita, reza,
e faze-te um santo! És moço? Pois bem! quando o sangue, em ondas
de fogo, subir-te à cabeça e quiser estrangular os teus votos,
agarra aquele cilício e fustiga com ele o corpo! quando vires uma mulher,
cujo olhar, úmido e casto, te faça sonhar os deslumbramentos do
amor, bate com os punhos cerrados contra o teu peito e alanha tua carne com
as unhas, até que sangres de todo o veneno da tua mocidade! Fecha-te
ao prazer e à ternura, fecha-te dentro da tua fé, como se te fechasses
dentro de um túmulo!"
E, com estas recordações, o infeliz quedara-se esquecido, a olhar
cegamente para a paisagem que defronte dele ia pouco e pouco se esfumando e
esbatendo nos crepes da noite; ao passo que no céu as estrelas se acendiam.
Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a
solidão; achava certo gozo amargo em deixar-se consumir pela áspera
certeza da sua inutilidade física. Não queria a convivência
dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado
- o amor, a alegria, a doce consolação da família. O que
ele desejava do fundo do seu desgosto era morrer, morrer logo ou quando menos
envelhecer quanto antes; ficar feio, acabado, impotente; que o seu cabelo de
preto e lustroso se tornasse todo branco; que o seu olhar arrefecesse; que os
seus dentes amarelassem e a sua fronte se abrisse em rugas. Desejava refugiar-se
covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.
Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno
e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar
a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a ideia de
sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança
de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um frio tremor
de febre.
- Todavia.. replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga,
medrosa, quase imperceptível todavia, o amor deve ser bem bom!...
E dois fios compridos escorreram pelas faces pálidas do padre.
Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada
cúpula de verdura que cobria a monte o inocente intruso trinava ao lado
da sua companheira.
O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dois velhaquinhos,
descuidosos na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem
cochichando segredos de amor. A fêmea estendia a cabeça ao amigo
e, enquanto este lhe ordenava as penas com o bico, ela, num arrepio, contraía-se
toda, com as asas levemente abertas e trêmulas. Depois, uniram-se ainda
mais, prostrados logo pelo mesmo entorpecimento.
Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou
o guarda-chuva e com uma pancada lançou por terra o amoroso par.
Os pobrezitos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus
pés
O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.
No horizonte esbatia-se a última réstia de sol e o sino de uma
torre distante começou a soluçar Ave-Maria.
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