Laura, uma menina magricela e tímida de dez anos de idade, que morava
com sua mãe viúva em uma casa afastada de todos, em um canto escuro
de um vale distante e esquecido, tinha um pesadelo que ia e retornava constantemente
em suas noites frias, no conforto de sua cama de menina. O pesadelo era mais
ou menos como eu vou contar agora para vocês. Laura não tinha a
mesma aparência da vida real, e era talvez uns três anos mais velha
em seu pesadelo. O cenário, ela não tinha visitado nem em livros.
Era uma estrada longa, cercada de pinheiros enormes, jogando suas sombras sobre
a neve espessa que cobria praticamente tudo o que podia ser visto pelos seus
olhos.
Além de longa, essa estrada era plana. Plana pra lá e plana pra
cá, isto é, ao sul e ao norte, de modo que somente o horizonte
a fazia desaparecer de vista. Não sei quanto à sensação
de frio, pois não posso lhe dizer se ela existe ou não em sonhos,
embora eu ache que sim. Mas parecia ser mais frio do que você poderia
imaginar de uma Antártida, por exemplo, tanto que a sua respiração
quase congelava à sua frente. Mas o que mais deixava a menina ansiosa
era o fato de não haver ninguém por perto, e nenhum barulho senão
o de suas pisadas na neve. Ela andava e andava, tentando encontrar uma saída,
tentando encontrar o final daquela estrada. Não ousaria adentrar a espessa
floresta de pinheiros, mesmo que nessa época estes fossem apenas galhos
com pouca vegetação em cima. A estrada já era escura e
fria o suficiente para Laura. Aventurar-se dentro da mata seria... bem, seria
muita aventura para uma menina tão pequena, mesmo que em seu pesadelo
fosse mais velha, sua mente ainda era a mesma para poder suportar aquilo.
Um tempo enorme era o que parecia ter-se passado, quando finalmente avistou
uma pequena casa rústica à margem da estrada. Sentia-se cansada,
a neve amontoada centímetros acima da rua tornavam a sua caminhada ainda
mais complicada. E foi quando finalmente se aproximava da tal casinha é
que começou a ouvir os primeiros barulhos. Seria melhor se tudo permanecesse
quieto. Até aqui, tudo o que aconteceu não poderia ser chamado
de pesadelo, e sim, no máximo, de algum sonho bizarro e sem sentido.
Mas aqueles barulhos, que vinham da floresta em volta, e não de dentro
da casa, eram horripilantes. Se o frio já não o tivesse feito
antes, eram barulhos de gelar a espinha de qualquer adulto, quanto mais de uma
menininha.
O abrigo mais seguro, e sua única opção também,
era esconder-se daqueles barulhos dentro da casa. Era um lugar pequeno, com
uma porta e uma janela frontais, provavelmente duas ou três janelas laterais
e, quem sabe, uma porta nos fundos. Laura não pensou em verificar os
fundos da casa, simplesmente fechou os olhos, colocou a mão no trinco
da porta, e torceu para que ela estivesse destrancada. Nesse mesmo momento,
um som grave, uma voz arrastada de lamento e fúria, chegou aos seus ouvidos.
Não conseguiu distinguir de onde o som havia saído, pois o vento
estava forte (vento só notado por ela neste momento, acho que os sonhos
e os pesadelos são assim mesmo) e fazia os sons dançarem em sua
frente.
Para sua surpresa, a porta estava destrancada. Não só destrancada,
como nem fechada ela estava, apenas encostada. E assim Laura quase caiu no chão
quando forçou a entrada. Agora tudo parecia se mover em um tom surreal,
como se os acontecimentos daquele pesadelo estranho se sucedessem em câmera
lenta. Ao mesmo tempo, era tudo muito real para não ser temido. Não
podia se lembrar como foi parar lá, mas a próxima cena que viu
foi uma pequena sala de estar. Agora já não haviam mais janelas
na sala (tinha certeza de se lembrar delas pelo lado de fora), mas o vento forte
entrava lá, de alguma forma que não poderia ser explicada. Na
sala havia um pequeno sofá, uma cadeira alta e uma televisão à
frente destes móveis. A televisão estava ligada, mas haviam apenas
chuviscos aparecendo na tela. Aparentemente, estava tudo vazio.
Os sons - as vozes - continuavam a assombrá-la do lado de fora. Sentiu-se
como que sufocada por eles. Tinha a certeza agora de que o que quer que produzisse
tais sons estava se aproximando da casa, e dela também. A porta, meu
Deus, ela deixou a porta encostada ou havia trancado ela antes de chegar naquela
sala? Esse pedaço da memória era justamente o que havia sido pulado
em seu pesadelo, o que a fez começar a se desesperar. Trêmula,
pulou para o sofá, na esperança de que lá não fosse
vista pela Coisa que estivesse entrando agora na casa. Sombras projetadas por
causa do fraco brilho de luz externa que adentrava as janelas da cabana (vejam
só, agora as janelas haviam reaparecido) escureceram toda a sua visão.
As sombras estavam se movendo. Estavam chegando perto. Perto com a porta aberta.
Laura, encolhida no sofá, fechou bem forte os olhos e tampou os seus
ouvidos com as suas mãos, enquanto começou a rezar baixinho. Lágrimas
escorriam de seus olhos, em seu rosto puro e mágico de criança.
BLAM! A porta da frente bateu forte. Mesmo de olhos fechados, notou que o ambiente
em sua volta havia clareado novamente. BLAM, BLAM, BLAM. Era o vento que estava
fazendo a porta bater e retroceder, bater e retroceder, bater e retroceder...
Aqui entra outra parte do pesadelo do qual Laura não se lembra de nada.
Um vazio que não podia ser preenchido pela sua memória. O pesadelo
continuava com a menina acordada, ainda no sofá, vendo que tudo estava
novamente tranquilo do lado de fora. O vento se fora, e os murmúrios
que ele provocava, ao passar pelas árvores, haviam então cessado
completamente. Uma lua cheia permitia alguma visibilidade, então Laura
colocou-se para fora da cabana e continuou andando pela rua que continuava parecendo
sem fim.
Horas e horas de caminhada haviam-se transcorrido, quando finalmente a estrada
sem fim acabou. Ela terminava de uma maneira bizarra, mas que não surpreendia
nenhum pouco a menina, após os acontecimentos anteriores: um precipício,
de fundo que não podia ser visto, pelo menos à noite, estava logo
à sua frente. A estrada então terminava num precipício?
Laura riu desse fato, afinal, que coisa ridícula era essa? Quem construiria
uma estrada que desse num precipício? Ela então sentiu-se relaxada
pela primeira vez, aquilo era absurdo demais para ser assustador. Mesmo o clima
estranho de toda a paisagem, um clima surrealista de histórias de terror,
não era capaz de impressioná-la mais do que aquele precipício.
A única alternativa da menina era voltar, tentar encontrar o que havia
na outra ponta da estrada. "Nenhuma estrada é infinita, afinal"
- era interessante ver que o seu senso de lógica poderia ser apurado
mesmo em um pesadelo.
Novas horas e horas de caminhada haviam-se transcorrido, quando chegou novamente
à cabana. Laura, tendo muito tempo livre para raciocinar, chegou à
conclusão que a cabana representava uma espécie de divisor de
águas naquela estrada misteriosa, mas não saberia dizer o que
ela dividia exatamente. Quando passou por ela desta vez, sob os primeiros e
fracos raios de um sol tímido de inverno, a menina pôde sentir
toda a tranquilidade e conforto que aquela simpática cabana poderia
proporcionar para quem buscasse abrigo durante uma tempestade de inverno, em
sua direção para o precipício ou no caminho contrário,
para o qual estava ela mesma agora estava se dirigindo.
Mesmo com essa visão de paz, Laura não queria entrar na cabana.
Sua curiosidade para ver o que havia do outro lado da rua era maior. Mas ainda
assim resolveu se aproximar apenas um pouco. Foi quanto estancou e novamente
toda sua depressão veio à tona: isso era definitivamente um pesadelo.
Patas, patas enormes, de alguma forma esquisita, que ela não conhecia
de nenhum livro, estavam ainda presentes na frente de uma das janelas laterais
da cabana. Olhando pela vidraça, Laura viu que era justamente a janela
da poltrona onde passou, tremendo de medo, algumas horas no dia anterior.
O instinto agiu de forma rápida. Não poderia ir em direção
ao precipício e não poderia adentrar a floresta, que agora ganhava
novamente contornos assustadores. Sua única alternativa era voltar ao
ponto inicial. Era para lá que estava se dirigindo antes, de qualquer
forma, então era para lá que continuaria andando, só que
agora com respiração pesada e a passos largos, correndo de um
monstro que provavelmente era real. A manhã continuava tranquila
e o sol já se punha mais alto, porém sobre as nuvens espessas
sua utilidade era quase que nula. Um galho quebrado, atrás da cabana.
O barulho foi imenso, tanto que Laura pôde ouvi-lo já longe dezenas
de metros de lá. Quando uma sombra sobressaiu-se sobre as outras sombras
das árvores, foi que Laura não olhou mais para trás, até
chegar aonde quer que fosse. Esperaria encontrar paz e segurança, do
outro lado daquela rua, isso se não fosse uma rua sem fim.
O monstro existia afinal, sempre estava lá, o problema é que às
vezes nós estamos ou não dispostos a vê-lo. A cabana, ao
que parece, dividia a percepção de Laura de como ver as coisas
do mundo. Do lado infinito da rua, sua imaginação corria solta,
e isso não era bom exatamente: os monstros apareciam para ela. Do lado
do precipício, não havia muita imaginação, mas também
não havia muito o que se fazer, era um mundo limitado e deprimente, embora
fosse totalmente seguro, o que para alguns já é o suficiente.
O melhor, pensou, seria viver eternamente dentro da cabana, mas sua vida não
seria de extremos. Quando pensava mais sobre sua decisão de correr para
a direção da estrada que era infinita, Laura acordou, suada, sabendo
que havia tido um pesadelo horrível. Um minutos depois, não lembrava-se
o que tinha se passado nesse pesadelo.
- Filha, o café está na mesa. - Sua mãe bateu à
porta, e um novo dia iniciava-se para Laura, agora uma criança novamente.
(setembro de 2003/abril de 2004)