A Garganta da Serpente

Alexandre Koball

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O pesadelo de Laura

(Alexandre Koball)

Laura, uma menina magricela e tímida de dez anos de idade, que morava com sua mãe viúva em uma casa afastada de todos, em um canto escuro de um vale distante e esquecido, tinha um pesadelo que ia e retornava constantemente em suas noites frias, no conforto de sua cama de menina. O pesadelo era mais ou menos como eu vou contar agora para vocês. Laura não tinha a mesma aparência da vida real, e era talvez uns três anos mais velha em seu pesadelo. O cenário, ela não tinha visitado nem em livros. Era uma estrada longa, cercada de pinheiros enormes, jogando suas sombras sobre a neve espessa que cobria praticamente tudo o que podia ser visto pelos seus olhos.

Além de longa, essa estrada era plana. Plana pra lá e plana pra cá, isto é, ao sul e ao norte, de modo que somente o horizonte a fazia desaparecer de vista. Não sei quanto à sensação de frio, pois não posso lhe dizer se ela existe ou não em sonhos, embora eu ache que sim. Mas parecia ser mais frio do que você poderia imaginar de uma Antártida, por exemplo, tanto que a sua respiração quase congelava à sua frente. Mas o que mais deixava a menina ansiosa era o fato de não haver ninguém por perto, e nenhum barulho senão o de suas pisadas na neve. Ela andava e andava, tentando encontrar uma saída, tentando encontrar o final daquela estrada. Não ousaria adentrar a espessa floresta de pinheiros, mesmo que nessa época estes fossem apenas galhos com pouca vegetação em cima. A estrada já era escura e fria o suficiente para Laura. Aventurar-se dentro da mata seria... bem, seria muita aventura para uma menina tão pequena, mesmo que em seu pesadelo fosse mais velha, sua mente ainda era a mesma para poder suportar aquilo.

Um tempo enorme era o que parecia ter-se passado, quando finalmente avistou uma pequena casa rústica à margem da estrada. Sentia-se cansada, a neve amontoada centímetros acima da rua tornavam a sua caminhada ainda mais complicada. E foi quando finalmente se aproximava da tal casinha é que começou a ouvir os primeiros barulhos. Seria melhor se tudo permanecesse quieto. Até aqui, tudo o que aconteceu não poderia ser chamado de pesadelo, e sim, no máximo, de algum sonho bizarro e sem sentido. Mas aqueles barulhos, que vinham da floresta em volta, e não de dentro da casa, eram horripilantes. Se o frio já não o tivesse feito antes, eram barulhos de gelar a espinha de qualquer adulto, quanto mais de uma menininha.

O abrigo mais seguro, e sua única opção também, era esconder-se daqueles barulhos dentro da casa. Era um lugar pequeno, com uma porta e uma janela frontais, provavelmente duas ou três janelas laterais e, quem sabe, uma porta nos fundos. Laura não pensou em verificar os fundos da casa, simplesmente fechou os olhos, colocou a mão no trinco da porta, e torceu para que ela estivesse destrancada. Nesse mesmo momento, um som grave, uma voz arrastada de lamento e fúria, chegou aos seus ouvidos. Não conseguiu distinguir de onde o som havia saído, pois o vento estava forte (vento só notado por ela neste momento, acho que os sonhos e os pesadelos são assim mesmo) e fazia os sons dançarem em sua frente.

Para sua surpresa, a porta estava destrancada. Não só destrancada, como nem fechada ela estava, apenas encostada. E assim Laura quase caiu no chão quando forçou a entrada. Agora tudo parecia se mover em um tom surreal, como se os acontecimentos daquele pesadelo estranho se sucedessem em câmera lenta. Ao mesmo tempo, era tudo muito real para não ser temido. Não podia se lembrar como foi parar lá, mas a próxima cena que viu foi uma pequena sala de estar. Agora já não haviam mais janelas na sala (tinha certeza de se lembrar delas pelo lado de fora), mas o vento forte entrava lá, de alguma forma que não poderia ser explicada. Na sala havia um pequeno sofá, uma cadeira alta e uma televisão à frente destes móveis. A televisão estava ligada, mas haviam apenas chuviscos aparecendo na tela. Aparentemente, estava tudo vazio.

Os sons - as vozes - continuavam a assombrá-la do lado de fora. Sentiu-se como que sufocada por eles. Tinha a certeza agora de que o que quer que produzisse tais sons estava se aproximando da casa, e dela também. A porta, meu Deus, ela deixou a porta encostada ou havia trancado ela antes de chegar naquela sala? Esse pedaço da memória era justamente o que havia sido pulado em seu pesadelo, o que a fez começar a se desesperar. Trêmula, pulou para o sofá, na esperança de que lá não fosse vista pela Coisa que estivesse entrando agora na casa. Sombras projetadas por causa do fraco brilho de luz externa que adentrava as janelas da cabana (vejam só, agora as janelas haviam reaparecido) escureceram toda a sua visão. As sombras estavam se movendo. Estavam chegando perto. Perto com a porta aberta.

Laura, encolhida no sofá, fechou bem forte os olhos e tampou os seus ouvidos com as suas mãos, enquanto começou a rezar baixinho. Lágrimas escorriam de seus olhos, em seu rosto puro e mágico de criança. BLAM! A porta da frente bateu forte. Mesmo de olhos fechados, notou que o ambiente em sua volta havia clareado novamente. BLAM, BLAM, BLAM. Era o vento que estava fazendo a porta bater e retroceder, bater e retroceder, bater e retroceder...

Aqui entra outra parte do pesadelo do qual Laura não se lembra de nada. Um vazio que não podia ser preenchido pela sua memória. O pesadelo continuava com a menina acordada, ainda no sofá, vendo que tudo estava novamente tranquilo do lado de fora. O vento se fora, e os murmúrios que ele provocava, ao passar pelas árvores, haviam então cessado completamente. Uma lua cheia permitia alguma visibilidade, então Laura colocou-se para fora da cabana e continuou andando pela rua que continuava parecendo sem fim.

Horas e horas de caminhada haviam-se transcorrido, quando finalmente a estrada sem fim acabou. Ela terminava de uma maneira bizarra, mas que não surpreendia nenhum pouco a menina, após os acontecimentos anteriores: um precipício, de fundo que não podia ser visto, pelo menos à noite, estava logo à sua frente. A estrada então terminava num precipício? Laura riu desse fato, afinal, que coisa ridícula era essa? Quem construiria uma estrada que desse num precipício? Ela então sentiu-se relaxada pela primeira vez, aquilo era absurdo demais para ser assustador. Mesmo o clima estranho de toda a paisagem, um clima surrealista de histórias de terror, não era capaz de impressioná-la mais do que aquele precipício. A única alternativa da menina era voltar, tentar encontrar o que havia na outra ponta da estrada. "Nenhuma estrada é infinita, afinal" - era interessante ver que o seu senso de lógica poderia ser apurado mesmo em um pesadelo.

Novas horas e horas de caminhada haviam-se transcorrido, quando chegou novamente à cabana. Laura, tendo muito tempo livre para raciocinar, chegou à conclusão que a cabana representava uma espécie de divisor de águas naquela estrada misteriosa, mas não saberia dizer o que ela dividia exatamente. Quando passou por ela desta vez, sob os primeiros e fracos raios de um sol tímido de inverno, a menina pôde sentir toda a tranquilidade e conforto que aquela simpática cabana poderia proporcionar para quem buscasse abrigo durante uma tempestade de inverno, em sua direção para o precipício ou no caminho contrário, para o qual estava ela mesma agora estava se dirigindo.

Mesmo com essa visão de paz, Laura não queria entrar na cabana. Sua curiosidade para ver o que havia do outro lado da rua era maior. Mas ainda assim resolveu se aproximar apenas um pouco. Foi quanto estancou e novamente toda sua depressão veio à tona: isso era definitivamente um pesadelo. Patas, patas enormes, de alguma forma esquisita, que ela não conhecia de nenhum livro, estavam ainda presentes na frente de uma das janelas laterais da cabana. Olhando pela vidraça, Laura viu que era justamente a janela da poltrona onde passou, tremendo de medo, algumas horas no dia anterior.

O instinto agiu de forma rápida. Não poderia ir em direção ao precipício e não poderia adentrar a floresta, que agora ganhava novamente contornos assustadores. Sua única alternativa era voltar ao ponto inicial. Era para lá que estava se dirigindo antes, de qualquer forma, então era para lá que continuaria andando, só que agora com respiração pesada e a passos largos, correndo de um monstro que provavelmente era real. A manhã continuava tranquila e o sol já se punha mais alto, porém sobre as nuvens espessas sua utilidade era quase que nula. Um galho quebrado, atrás da cabana. O barulho foi imenso, tanto que Laura pôde ouvi-lo já longe dezenas de metros de lá. Quando uma sombra sobressaiu-se sobre as outras sombras das árvores, foi que Laura não olhou mais para trás, até chegar aonde quer que fosse. Esperaria encontrar paz e segurança, do outro lado daquela rua, isso se não fosse uma rua sem fim.

O monstro existia afinal, sempre estava lá, o problema é que às vezes nós estamos ou não dispostos a vê-lo. A cabana, ao que parece, dividia a percepção de Laura de como ver as coisas do mundo. Do lado infinito da rua, sua imaginação corria solta, e isso não era bom exatamente: os monstros apareciam para ela. Do lado do precipício, não havia muita imaginação, mas também não havia muito o que se fazer, era um mundo limitado e deprimente, embora fosse totalmente seguro, o que para alguns já é o suficiente. O melhor, pensou, seria viver eternamente dentro da cabana, mas sua vida não seria de extremos. Quando pensava mais sobre sua decisão de correr para a direção da estrada que era infinita, Laura acordou, suada, sabendo que havia tido um pesadelo horrível. Um minutos depois, não lembrava-se o que tinha se passado nesse pesadelo.

- Filha, o café está na mesa. - Sua mãe bateu à porta, e um novo dia iniciava-se para Laura, agora uma criança novamente.

(setembro de 2003/abril de 2004)

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