Três horas haviam se passado desde que sua mãe saíra de
casa. A pequena Laura estava impaciente. Pudera! Apenas 11 anos, menina de baixa
estatura e ossos pequenos, tendo que encarar uma situação dessas.
Explica-se: Joana, sua mãe, desde que Laura tinha por volta dos seis
anos, costumava-lhe contar histórias para tentar educar a filha. Uma
dessas histórias era em relação ao porão da casa.
Joana se considerava mulher já viúva, pois o marido desaparecera
há dois anos e todo e qualquer tipo de busca já havia sido encerrada
há muito tempo. O melhor mesmo, para ela, era acreditar que Diógenes
havia morrido durante a última viagem de trabalho, da qual nunca mais
retornara.
Mas voltando ao porão da casa, eu dizia que uma das histórias
que Joana contava para sua filha era em relação a ele. Entenda:
Joana não queria que Laura fosse lá embaixo. A porta de entrada,
que ficava no exterior da casa, no jardim dos fundos, estava pregada com três
tábuas fortes, impossíveis para qualquer pessoa passar por ela
sem uma ferramenta adequada. O tempo naquela época estava nublado, e
na ocasião desta história chovia bastante. Uma chuva que trazia
frio e uma certa sensação de infelicidade. A mãe andava
deprimida, e Laura não tinha muitas amigas, já que o lugar onde
elas moravam era afastado quase um quilômetro de qualquer outra casa.
Laura, portanto, vivia uma infância vazia, embora fosse razoavelmente
feliz no convívio com sua mãe.
Na manhã daquele dia, bem cedinho, Joana já estava de pé.
Acordara ainda antes do que sua filha, o que era difícil de acontecer.
Passara no quarto de Laura avisando-a que iria sair para fazer compras na cidade
vizinha, e que deveria voltar em algumas horas, definitivamente antes do horário
do almoço. Era época de férias no colégio, então
Joana disse para a filha continuar dormindo, até porque a chuva fina
que estava caindo não possibilitaria a ela ter nenhuma atividade fora
de casa.
Laura seguiu o conselho da mãe e voltou a dormir. Minutos depois, já
sozinha na casa, a menina, ainda não totalmente consciente, ouviu o que
parecia ser um lamento, ou uma espécie de murmúrio vindo de fora
da casa. Isso a fez despertar. Saiu da cama, pensando que poderia ter alguém
batendo à porta ou talvez que sua mãe tivesse retornado muito
mais cedo do que o previsto. Não era nada disso: a porta dos fundos,
que dava para o quintal onde ficava o tal porão, estava escancarada,
deixando uma luz fraca entrar para a cozinha da casa, seguida de uma brisa bastante
fria. A menina não arriscou ir no quintal, pois estava de pijama e sentia
bastante frio. Então esperou mais um ou dois minutos e, como não
ouviu mais nada, deu de ombros e fechou a porta. Ia voltar para a cama para
deitar por pelo menos mais uma hora. Como a sua mãe havia lhe avisado,
seria difícil ela conseguir sair para brincar fora de casa num dia como
esse.
Passaram-se por volta de 15 minutos (pelo menos foi esse o tempo que pareceu
a Laura), e dessa vez outro murmúrio, agora muito mais forte, entrou
pela porta do seu quarto, fazendo a menina se assustar. Tentando tirar a tensão
da sua cabeça, resolver ignorar tal fato e levantar. Trocou o pijama
do corpo por um agasalho bem grosso, ajeitou seu quarto e foi até a cozinha
tomar o café da manhã. Estava com bastante tempo livre para comer
qualquer coisa da despensa antes que sua mãe chegasse, pensou. Nessa
altura, o murmúrio vindo do exterior (ou seria de algum lugar de dentro
da casa?) não perturbava mais Laura, que estava quase se sentindo bem
disposta naquele momento.
Porém, uma terceira vez não poderia ser ignorada: agora um barulho
quase estridente vinha de algum lugar sob os seus pés. Laura deu um pulo
quando o ouviu, e tremeu de pavor. A primeira coisa que passou pela sua cabeça
foi a de que deveria ter um assaltante dentro do porão, e ela corria
perigo. Felizmente, para ela, a ideia logo foi descartada, quando lembrou-se
das fortes tábuas que prendiam o único acesso ao porão,
no quintal da casa. Ela confiava na proteção das tábuas,
e além disso nenhum tipo de batida, tentando arrancá-las da porta,
foi ouvida. Provavelmente era um animal, talvez um gato, que havia achado um
buraco e estava fazendo um estardalhaço. Laura então continuou
preparando o seu café da manhã. Torradas com mel era uma de suas
comidas matinais favoritas, e com a mãe fora de casa, poderia utilizar-se
da quantidade de mel que bem gostaria.
Os minutos foram passando, já fazia mais de uma hora desde que Laura
saíra pela primeira vez de manhã do seu quarto para averiguar
a porta que havia sido aberta pelo vento. Aqui cabe uma explicação
mais detalhada da personalidade da menina. Laura nascera há 11 anos em
um período bastante conturbado para seus pais. Diógenes e Joana
estavam passando por diversos problemas financeiros, e o casamento não
era lá essas coisas em termos de amor. Pensavam que Laura viria ao mundo
para fortalecer a relação. À princípio, foi isso
que aconteceu, mas logo os gastos com mais uma pessoa dentro de casa tornaram-se
custosos demais, e Diógenes teve que começar a trabalhar dobrado,
viajando pela sua empresa muito mais do que fazia anteriormente. As duas mulheres
ficavam dias e dias sozinhas, naquela casa úmida, simples e isolada.
Então, um dia, a mãe inventou a história do porão.
Ela não gostava de porões, achava-os úmidos e deprimentes.
As sombras que se criavam com a única lâmpada disponível
lá embaixo deixavam-na nervosa, e só ia lá embaixo por
necessidade extrema. Na realidade, não podia lembrar-se da última
vez que tivera entrado lá. O porquê do medo? Não há
um ou mais motivos específicos, é puro fruto de condicionamentos
adquiridos ao longo de sua vida, principalmente na sua infância, onde
vivera numa casa ainda mais deprimente do que aquela, e tais condicionamentos
não vêm ao caso agora.
Ah, sim, eu prometi falar da personalidade de Laura. A menina cresceu num ambiente
atribulado, seus pais nunca foram felizes e ela também não era.
Como eu já disse, eles moravam numa casa afastada de praticamente tudo,
pois o dinheiro de que dispunham só havia dado para comprar essa casa.
Então Laura cresceu sem amigas, sem brincadeiras em grupo, e teve que
se virar sozinha. Quando começou sua vida escolar, ela era uma garota
tímida demais para conquistar amigas realmente verdadeiras, então
se isolara de todos na escola, e seus colegas de turma nunca se esforçaram
para fazerem parte de seu mundo. Sim, Laura continua sendo uma menina triste,
e cheia de pavores interiores. Os mesmos pavores que a mãe lhe passou
durante os seus primeiros anos de vida adquiriram nova dimensão dentro
dela. O medo do escuro era talvez o mais intenso deles. A casa onde moravam
era cheia de sombras, que à noite tornavam-se misteriosas demais. Nunca
tinham feito mal algum a nenhuma pessoa da família, mas desde que o pai
desaparecera, a sensação de pavor para com as sombras tinha crescido.
Batidas na madeira, que nunca tinham explicação, as portas da
casa se abrindo durante a noite sem nenhuma passagem de ar para justificar isso,
e principalmente os murmúrios noturnos. Ah, os murmúrios eram
o que mais proporcionavam medo dentro de Joana. Laura só há poucos
meses estava começando a perceber que os murmúrios não
eram algo normal. Lembre-se, como a menina crescera em seu próprio mundo,
muitas coisas anormais para todos os outros eram consideradas normais para ela,
e o contrário também é verdadeiro. Os murmúrios
sempre davam calafrios à menina, mas ela nunca realmente se importava
com eles, enquanto sua mãe congelava-se por dentro toda vez que pensara
ouvir um.
Nos últimos meses, Laura estava chegando na adolescência, e as
descobertas de vida que são naturais a todas as pessoas que passam por
esse período assolavam o seu ser. Começou a dar atenção
especial aos murmúrios. Esses pareciam chegar de todas as partes: do
quintal dos fundos, de dentro de outro aposento da casa, do matagal no terreno
ao lado. Laura começava a querer entendê-los pela primeira vez
na sua vida, e começava a prestar atenção neles. Não
ousava discutir o assunto com sua mãe, pois sabia que ela também
ouvia eles e, mesmo perguntando-se se ela sabia os seus significados, não
chegava a ter a coragem de perguntá-los à mãe. Ou talvez
tivesse medo da resposta.
Finalmente voltamos à manhã nublada e fria de nossa história.
Laura continuava sozinha. Os murmúrios - agora já passaram-se
o quarto, o quinto e o sexto deles - afligiam-na cada vez mais. Estava aterrorizada.
Não lembrava-se de terem sido tão fortes, jamais. Já passara-se
duas horas que sua mãe havia saído de casa, e Laura estava impaciente,
ansiosa e, principalmente, assustada. Queria sair correndo da pequena casa de
apenas seis cômodos. Lá dentro, não dava para se esconder.
Agora já não acreditava que aqueles barulhos, aquela voz de lamento,
eram ou animais, ou apenas um vento mais forte fazendo um som próprio
quando passava pelo matagal ao lado de sua casa. Sentia que não estava
sozinha, sentia que a qualquer momento algo terrível poderia acontecer.
Queria sair correndo para fora, mas não tinha coragem para fazer isso,
suas pernas não conseguiriam carregá-la muito longe, pois sua
mente estava em pânico. O maior dos sons estranhos que já ouvira
durante a sua vida acabara de acontecer. E agora ela sabia de onde ele vinha.
Ah, meu Deus, vinha do porão, vinha de dentro do porão. Alguma
coisa estava forçando, por dentro, a porta de entrada do porão.
Laura queria gritar mas não conseguia. Outra batida se sucedeu. Se não
fosse tão acostumada a conviver com esse tipo de pavor, teria se mijado
ali mesmo. Lágrimas escorriam do seu rosto. Duas horas, e sua mãe
continuava sem retornar. Por que isso tinha que acontecer bem num momento desses?
Agora Laura estava com raiva da mãe, uma raiva que nunca sentira. Sua
mente era uma confusão de sentimentos, ela não sabia mais o que
fazer. Então um rangido agudo veio de fora de casa. A menina não
tinha dúvida: um prego que prendia a porta do porão acabara de
ser solto. Esse fato, e tudo que ele representava, fizeram-na cair dura, no
chão: a menina não aguentara o terror daquele momento e havia
desmaiado.
Quando conseguiu despertar, depois de um período de tempo que não
tinha a mínima ideia qual era, o silêncio era absoluto.
Pensara que por um lado isso era bom, pois seja o que for que havia lá
embaixo, no porão, havia se acalmado; por outro lado, sabia que assim
sua mãe ainda não havia retornado das compras. Ficou sentada no
chão trêmula, sem saber o que fazer à princípio.
Teria ela coragem de pôr os pés no quintal da casa, investigar
a porta do porão? Ou iria ficar ali, encolhida, até que a segurança
da chegada da mãe lhe desse novas forças, e ela descobrisse que
o terror que passara antes não era nada mais do que fruto de sua cabecinha
triste? Sim, era isso mesmo. De alguma forma, agora ela acreditava que tudo
aquilo não passou de sua imaginação. Veja bem, uma criança,
aos 11 anos, ainda não consegue utilizar a lógica de forma sequer
razoável, e elas geralmente são suscetíveis a fatos que
interessam a si próprias, mesmo que estes sejam totalmente ilógicos
e fantasiosos.
Laura então convenceu-se, por ora, que o terror fora um pesadelo, e deve
ter chegado ao chão da cozinha de forma quase inconsciente. Nem tinha
certeza se a sua mãe realmente tinha saído para fazer compras.
Resolveu chamá-la:
- Mãe? Mãããããããããeeeeeee...
Onde você está?
Como não recebeu resposta, finalmente levantou-se do chão frio,
já temendo pegar um resfriado por ter estado dormindo ali. Esperava que
uma explicação melhor viesse logo. No momento, sua teoria sobre
sonambulismo era o suficiente. Então resolveu averiguar, já não
estando mais tão temerosa, o quintal da casa. Abriu a porta dos fundos,
que não estava trancada. Respirou o ar frio e puro com toda a sua força,
e o que viu, ao olhar para a direção da porta do porão,
foi devastador. Agora não conseguiu segurar e mijou nas calças,
sem sequer notar do fato. Aquilo era impossível, pensou. E foi justamente
por isso que uma sensação de congelamento percorreu a sua espinha.
A porta do porão estava aberta, escancarada. As três tábuas
que a prendiam estava jogadas há metros de distância. Percebeu
que a chuva aumentara desde que tinha acordado (sim, agora ela voltara a acreditar
na realidade dos fatos anteriores), e uma espessa neblina estava por toda a
parte. Com certeza era essa neblina que estava impedindo a sua mãe de
chegar em casa no horário que seria normal.
Mas agora Laura não conseguia mais pensar na mãe, nem na neblina.
Aquela porta escancarada, que dava para o porão, representava todos os
seus medos interiores acumulados durante sua infância. E o pior é
o que ela representava no momento atual: que alguma coisa, aquela Coisa que
estava, durante anos a fio, gritando todos aqueles murmúrios, tinha esperado
o momento ideal, quando Laura estivesse sozinha em casa, impossibilitada de
fugir, para escapar da sua prisão. A confusão voltou a fazer parte
da mente da menina. A raiva para com a mãe voltara, mas principalmente
era o seu estado de alerta que estava mais desperto: deveria fazer alguma coisa,
deveria tentar fugir ou esconder-se. Quem sabe, até enfrentar aquela
Coisa, seja lá o que fosse. Pura fantasia. Ela sabia que não teria
forças para enfrentar a situação, e ao mesmo tempo continuava
sem conseguir correr, escapar daquela casa. O seu medo era como um ímã
que a segurava lá dentro.
O silêncio absoluto contrastava com o barulho mental provocado pela confusão
na cabeça de Laura. Seus sentidos tornaram-se ainda mais alertas, e ela
esperou. Esperou o próximo passo da Coisa. Não sabia ainda como
iria lidar com ela. Começou a rezar, fechou os olhos com todas as suas
forças, para que a sua mãe voltasse naquele momento. Ela seria
sua única salvação. Então o que para ela foi um
milagre aconteceu: ela ouviu o barulho do motor do carro de sua mãe aumentando.
Suas preces foram atendidas, e sua mãe finalmente estava retornando para
casa. Seu coração encheu-se de esperança e alegria. Em
poucos segundos estaria em segurança, nos braços da mãe.
O medo foi aliviado, e ela finalmente conquistou a força necessária
para começar a andar de novo. Ela teria que passar pelo quintal, pela
porta do porão para chegar mais rapidamente à garagem, onde sua
mãe estava prestes a estacionar o carro. Fechou os olhos, num misto de
temor e alívio por finalmente o seu pesadelo estar acabando, e colocou
um pé na frente do outro. Eram poucos metros até a porta do porão.
Aquele porão onde ela nunca havia entrado, mas sabia ser horroroso, fétido.
Ela conseguiria desviar o olhar de dentro dele? Tinha certeza que não,
ao dar o primeiro passo. O medo voltou rapidamente para sua mente, mas agora
não conseguiria parar de andar.
Laura deu um passo, cambaleando com a certeza de que veria a Coisa fitando ela
lá de dentro quando espiasse em sua direção. Escutou a
porta do carro da mãe sendo fechada, logo do outro lado da casa. Mas
a porta, o porão e a Coisa estavam entre eles. Continuava a andar involuntariamente,
outro passo, e outro. Agora faltavam apenas alguns passos para conseguir visualizar
o que estava dentro do porão. O grunhido estrondoso que ouviu ao dar
o próximo passo foi assustador, mas não o suficiente para fazê-la
parar de andar. Os poucos segundos pareciam horas, intermináveis momentos
de terror e suspense. Quando estava distante três passos de conseguir
ver o que estava dentro do porão, a certeza de que seria algo assustador
já tomava conta dela. Sentiu a morte pela primeira vez na sua vida. Ouviu
os primeiros passos da sua mãe em sua direção.
Então ela viu. A surpresa foi imensa, chocante, mas ao mesmo tempo uma
sensação de conforto invadiu-a logo que ela viu que uma das mãos
da Coisa era uma mão humana. Laura pelo menos estaria livre de presenciar
a aparição de um monstro, uma criatura pegajosa, a mesma que sempre
fez parte de seus pesadelos. Aquilo era uma mão humana, ou pelo menos
parecia, e durante um breve segundo, o mesmo segundo que antecedeu a visão
do rosto da Coisa, já tinha certeza do que veria, e gritou extasiada:
- Papai!
Correu em direção a ele livre de medo, pavor e qualquer sensação
de ameaça. Era realmente o seu pai, em um estado quase decrépito,
mas era ele, tinha a certeza disso. Enquanto corria para abraçá-lo,
ignorando a feição de dor, vergonha e felicidade no rosto dele,
sentiu uma mão vinda detrás, empurrando-a para dentro do porão.
Com a queda, levou junto o corpo desfigurado do pai, e ambos logo viram-se caídos
no chão do porão, um em cima do outro. Ela confusa, ele lamentando
a má sorte novamente. Do lado de fora, Joana bravejou, com lágrimas
nos olhos:
- Eu não te disse, minha filha, eu não te disse que era para ficar
longe do porão? Agora vou ter que te prender aí, pra sempre. -
E fechou a porta fortemente. Um eco seco e alto invadiu todo o porão
com a batida.
Laura nada pôde responder, porque logo a porta do porão estava
sendo novamente bloqueada. Minutos depois, dava para ver a sombra de não
apenas três tábuas sendo novamente pregadas na frente da porta,
mas seis ao todo. Enchendo-se de terror, quando havia entendido o que acontecera,
Laura soltou o seu primeiro murmúrio de dentro do porão.