A Garganta da Serpente
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A Vingança da Serpente

(Amato, Julio Cesar)

Zoológico de Pequim, China. Era mais um dia sem sentido na minha apática rotina de ofídio tragado pelo desânimo. Ficar a ser espreitado por toda aquela gente bisbilhoteira, como se eu fosse um extraterrestre que acabara de pousar na Terra, não é dos melhores paladares. Sinto-me tão subjugado pelo ultraje das reações, sobrecarregadas de comentários agressivos e de tamanho espanto! Poxa, será que acham que cobra não pensa, não tem sentimentos? Compreenda aí: eu penso, eu sinto, viu!?

Tentando responder a todas aquelas afrontas sobre a minha aparência, retrucava-lhes com a minha fingida indiferença, enquanto lá estava meu íntimo dilacerado. Eu só queria ir embora, sumir, desaparecer em alguma mata, voltar a me sentir normal, ser uma serpente de volta ao seu lar! Mas sou um preso sem culpa, numa espécie eclética de gaiola de passarinho e de solitária de homem. Pelo menos estes não são como aqueles ou como eu, pois, afinal, aparentemente, praticaram algo errado.

- Que fazer??? Cá estou!!! É a minha realidade!!!

Mas aqueles eram apenas pensamentos ilusórios na minha frustrante eterna tentativa de conformismo. O tédio, a tristeza e a opressão me levavam ao desespero.

Enfim terminara a tarde daquelas visitas indesejadas. Meia hora depois a metamorfose começou. O tratador me vinha trazendo a comida, e eu realmente estava com muita fome, apesar de tudo e ainda bem, pois senão já haveria morrido, envolto em minhas esperanças. A refeição era um ratinho, daqueles brancos. Já havia comido muitos deles. Eu não queria, mas meu instinto falava alto e devorava os roedores, enquanto minha sensibilidade de culpa os fazia descerem com gosto de fel.

O animalzinho foi solto em minha prisão. Deparou comigo e sorriu com os seus olhos tristes, com uma ingenuidade que eu ainda não vira e sequer imaginaria que pudesse existir. Cumprimentou-me com a sua inocência, e eu percebi - talvez por inabilidade eu não tenha notado em seus companheiros - uma angústia um tanto semelhante a que tomava conta de mim. Claramente por aquilo, incompreensivelmente sem qualquer medo, havia desilusão em seu olhar.

Não há instinto ou fome que resistam! Jamais eu poderia, você sabe o quê. A empatia recíproca me fez entender que a amizade daquele ratinho era o grande alimento que eu procurava. Meu semblante lhe sorriu como resposta. Imagine, você! Consegui sorrir, e para um camundongo! Eu não mais tinha presas naturais; eu tenho um irmão eterno. E agora sou de outro nível: só comida congelada!

Ainda não alcancei minha liberdade e continuo sendo ofendido - mas para eles minha aparência agora está em segundo plano. A fraternidade que nutrimos, eu e meu amigo, é a principal atração do zoo, e faz entreabrir a boca das pessoas. Como resposta ao estrelato, demonstramos a nossa altivez e sabedoria. Cobras e ratos, inimigos? Pois sim! Sejam racionais, homens, sejam racionais! Aprendam com esta dupla aqui!

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