A Garganta da Serpente
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Da luz. Das sombras. Dos corpos.
Mini-Conto Sobre o Universo Amoroso Masculino

(Antonio Júnior)

01.
da luz

Vou fechar o livro e morder a luminosidade. Trincá-la, com vigor, para que a luz escorra prateada pelos lábios, e um fio de audaciosa cintilância se cristalize na pele, descendo pescoço abaixo e morrendo no peito, no ponto exato da couraça que protege o coração. Acompanhando a trajetória do líquido, o estranho sorrirá, surpreendido, mostrando dentes muitos alvos, e depois de suavemente cruzar os olhos grandes com os meus olhos gulosos fingirá observar a paisagem urbana, vista através do vidro embaciado do comboio. Então a sua expressão não será a mesma, dando ideia de deserto junto ao mar, e subitamente, escapando um suspiro ambíguo, serão soprados sentimentos de lírios. Uma grande publicidade de neón verde-aveludado surge como visão de sonho. Estremecendo, sóis na pele pálida, e sobre o infindável silêncio esculpido entre estranhos, verei outra vez os olhos de resignado poema cruzando com os meus olhos.

02.
das sombras

Alargo os passos. A escada rolante sepulta a pressa. Devo esperá-lo, fingindo que não o espero, alcançar o exterior da estação como quem tem um caminho a seguir. Imitar a vida dos outros passageiros. Avisto um céu límpido, de uma claridade opressora. Sei que ele me segue. Ele, o homem com o livro na mão, sentado no banco esquerdo, ao lado de uma das portas de saída. Vi sua língua dura, cheia de saliva, e sem que tenha aberto a boca. Também sorriu, de forma sublime, algo imune da crueldade. Um sorriso secreto, ofertado, mas sem visibilidade facial. Talvez inventasse lírios sobre o meu corpo desnudo. Assim o imaginei. Uma sombra me envolveu, pensei em levantar e cuspir nos seus desejos. Recordei as traições, os desgostos, as mentiras que deixei por onde passei. Quem ele pensa que é para estar ali, sentado, inocente como uma nesga de luz na noite? A imobilidade absoluta de sua luxúria mascarada me perturbou. A cada estação perdia referências, não sabia mais do meu destino, para onde me dirigia. De vez em quando olhava com o canto dos olhos os seus olhos, anotando na memória uma insuspeita espera. Tive ódio. Desci na próxima estação, irritado, febril, em um bairro que não é o meu. Ele me segue, sinto o seu cheiro de prolongada eternidade.

03.
dos corpos

Mantém o corpo em surdina. Algo irá acontecer. Na parte mais secreta do jardim do museu senta-se num banco, e abre o livro, sem lê-lo. Pousa a mão no sexo, e pensa em fechar os olhos, como quem espera um beijo. A tarde estilhaçava-se em feixes de luz. O outro, sem nenhum gesto óbvio, atravessa o jardim e desaparece entre árvores frondosas. Paralisado, ouve atentamente o seu coração. O que irá fazer? Qual a atitude a tomar? Põe-se em chamas, arde, personagem de um sonho alucinógeno. Havia seguido-o desde o metrô, feito pássaro num voo precipitado, pronto para projetar o corpo em um carro em movimento. Devagar, contempla o horizonte qualhado de prédios feridos, além do jardim delicado sem ninguém. A intenção era ternamente cumprimentar o estranho, deslizar o olhar no seu rosto aflito, enquanto trocariam palavras de açucenas. Daria o número do celular, marcariam um encontro amigável para uma noites dessas, - noites de fósforos iluminando ausências -, e voltaria para casa sorvendo alegrias. Nada disso acontece, temem o relâmpago das palavras. O estranho o espera no subterrâneo das folhagens, possivelmente latejando de fulgor, o corpo coberto de minúsculos pontos desassossegados. Fotografa a espuma animal. Não conversarão. Dos corpos agarrados, se extinguindo em gemidos e solidão. E ali, no cio, começará o esquecimento. Hesitante, fecha o livro e levanta. Espia o silêncio. Faz-se tarde. Parece anoitecer de repente, e dentro dela um vazio sem dimensão. Está só, e alguém espera. O ar cheira a anis. Zune o silêncio das folhas e dos insetos. Um arrepio percorre o seu corpo que não consegue viver sozinho. Inacessível e sem consolo, penetra na fecunda vertigem que engana.

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