01.
da luz
Vou fechar o livro e morder a luminosidade. Trincá-la, com vigor, para
que a luz escorra prateada pelos lábios, e um fio de audaciosa cintilância
se cristalize na pele, descendo pescoço abaixo e morrendo no peito, no
ponto exato da couraça que protege o coração. Acompanhando
a trajetória do líquido, o estranho sorrirá, surpreendido,
mostrando dentes muitos alvos, e depois de suavemente cruzar os olhos grandes
com os meus olhos gulosos fingirá observar a paisagem urbana, vista através
do vidro embaciado do comboio. Então a sua expressão não
será a mesma, dando ideia de deserto junto ao mar, e subitamente,
escapando um suspiro ambíguo, serão soprados sentimentos de lírios.
Uma grande publicidade de neón verde-aveludado surge como visão
de sonho. Estremecendo, sóis na pele pálida, e sobre o infindável
silêncio esculpido entre estranhos, verei outra vez os olhos de resignado
poema cruzando com os meus olhos.
02.
das sombras
Alargo os passos. A escada rolante sepulta a pressa. Devo esperá-lo,
fingindo que não o espero, alcançar o exterior da estação
como quem tem um caminho a seguir. Imitar a vida dos outros passageiros. Avisto
um céu límpido, de uma claridade opressora. Sei que ele me segue.
Ele, o homem com o livro na mão, sentado no banco esquerdo, ao lado de
uma das portas de saída. Vi sua língua dura, cheia de saliva,
e sem que tenha aberto a boca. Também sorriu, de forma sublime, algo
imune da crueldade. Um sorriso secreto, ofertado, mas sem visibilidade facial.
Talvez inventasse lírios sobre o meu corpo desnudo. Assim o imaginei.
Uma sombra me envolveu, pensei em levantar e cuspir nos seus desejos. Recordei
as traições, os desgostos, as mentiras que deixei por onde passei.
Quem ele pensa que é para estar ali, sentado, inocente como uma nesga
de luz na noite? A imobilidade absoluta de sua luxúria mascarada me perturbou.
A cada estação perdia referências, não sabia mais
do meu destino, para onde me dirigia. De vez em quando olhava com o canto dos
olhos os seus olhos, anotando na memória uma insuspeita espera. Tive
ódio. Desci na próxima estação, irritado, febril,
em um bairro que não é o meu. Ele me segue, sinto o seu cheiro
de prolongada eternidade.
03.
dos corpos
Mantém o corpo em surdina. Algo irá acontecer. Na parte mais secreta
do jardim do museu senta-se num banco, e abre o livro, sem lê-lo. Pousa
a mão no sexo, e pensa em fechar os olhos, como quem espera um beijo.
A tarde estilhaçava-se em feixes de luz. O outro, sem nenhum gesto óbvio,
atravessa o jardim e desaparece entre árvores frondosas. Paralisado,
ouve atentamente o seu coração. O que irá fazer? Qual a
atitude a tomar? Põe-se em chamas, arde, personagem de um sonho alucinógeno.
Havia seguido-o desde o metrô, feito pássaro num voo precipitado,
pronto para projetar o corpo em um carro em movimento. Devagar, contempla o
horizonte qualhado de prédios feridos, além do jardim delicado
sem ninguém. A intenção era ternamente cumprimentar o estranho,
deslizar o olhar no seu rosto aflito, enquanto trocariam palavras de açucenas.
Daria o número do celular, marcariam um encontro amigável para
uma noites dessas, - noites de fósforos iluminando ausências -,
e voltaria para casa sorvendo alegrias. Nada disso acontece, temem o relâmpago
das palavras. O estranho o espera no subterrâneo das folhagens, possivelmente
latejando de fulgor, o corpo coberto de minúsculos pontos desassossegados.
Fotografa a espuma animal. Não conversarão. Dos corpos agarrados,
se extinguindo em gemidos e solidão. E ali, no cio, começará
o esquecimento. Hesitante, fecha o livro e levanta. Espia o silêncio.
Faz-se tarde. Parece anoitecer de repente, e dentro dela um vazio sem dimensão.
Está só, e alguém espera. O ar cheira a anis. Zune o silêncio
das folhas e dos insetos. Um arrepio percorre o seu corpo que não consegue
viver sozinho. Inacessível e sem consolo, penetra na fecunda vertigem
que engana.