A Garganta da Serpente
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Anauê!
~ Legends ~

(Alibert)

I

A vida transcorria sem pressa naquele lugar; a calma, o ar puro, as roupas estendidas nos varais, as crianças se divertindo na terra com seus brinquedos rústicos. Tudo acontecendo ao mesmo tempo e dando um equilíbrio constante à vila San Mael.
As pessoas sempre estavam com um sorriso no rosto e das portas das casas, sentia-se o cheiro da comida simples preparada no fogão à lenha. As charmosas casas verdes em contraste com a igreja pintada de azul, sendo esta vizinha ao cemitério - sempre muito arborizado, deixando as lápides imperceptíveis. Este último, por sua vez, vizinho às ruínas de uma antiga igreja, o que sobrara de um incêndio, hoje servindo apenas como casa de maribondos e com um mato fechado sempre crescente em seu interior desprovido de teto.
Nos fundos de um quintal, à sombra de um cajueiro, algumas crianças brincavam.
- E então?
- O quê?
Apertados dentro de uma casinha feita de estacas de madeira, um casalzinho estava.
- Estamos brincando de casinha, não estamos - ela perguntou, tentando encontrar os olhos do garoto sentado à sua frente.
- Sim...
- Você é o pai e eu sou a mãe, certo?
- Certo.
- Isso - comemorou, aproximando-se do outro. - E você sabe o que o pai e mãe fazem quando estão sozinhos?
A garota deslizou sua mão sobre seu busto, mostrando que estava madura como mulher e que há muito já deixara a inocência de lado. Ele levantou o seu olhar para ela, mas sua expressão agora era diferente: não estava mais ruborizado pela timidez de estar a sós com uma garota.
- Não, eu não sei - respondeu friamente.
A outra percebera que dissera bobagem.
- Desculpe, Lui. Esqueci que você não tem pais...
- Eu tenho minha irmã!
Falou isso e saiu da casinha às pressas, passando pelas outras crianças mais novas que brincavam do lado de fora da casinha. Uma delas gritou:
- Papai! Papai!
- Eu não estou mais na brincadeira - falou rispidamente.
A garota ficara inconsolada dentro da casinha.
- Garoto bobo - botou a cabeça para fora da casinha. - Quem quer ser o marido agora?
Lui entrou pelas portas dos fundos de sua casa e encontrou sua irmã ocupada na cozinha. Era uma mulher feita, bonita, cabelos negros caídos nos ombros e uma alegria contagiante. Ela parou o que estava fazendo assim que o garoto entrou.
- Que cara é essa, Lui?
- Mana… Você vai me deixar?
Ela o olhou espantada.
- Mas que pergunta, maninho? É mais fácil você me deixar primeiro. Já é um rapazinho. Daqui a pouco será um homem feito, vai formar família e ser muito feliz…
- Mas eu não vou deixar você.
Ela sorriu.
- Vamos deixar o tempo cuidar disso, certo?
- Certo!
Lui concordou, já alegre, enquanto pegava uma maçã na fruteira.
- Darília é que é uma tonta mesmo - falou para si mesmo. - Como eu iria saber aquilo…
Sai em direção à porta da frente do casebre pintado de verde. Chegou ao terraço e se sentou numa rede, enquanto comia o fruto vermelho.
Um barulho de cavalgar vem aos ouvidos de Lui. Em seguida surge um cavalo marrom, junto com seu cavaleiro, rente ao terraço da casa.
- Pedro - Lui festeja ao ver quem chegara.
- Oi frangote.
Pedro, um rapaz forte e queimado do sol. Apesar da diferença de idade, sempre fora o melhor amigo de Lui.
- E aí, aconteceu muita coisa na minha ausência - perguntou enquanto desmontava do cavalo.
- Ah, por aqui nunca acontece nada, você sabe. Mas eu quero saber de você, das suas aventuras.
O jovem olhou em volta, sorrateiramente, depois falou baixinho:
- Samarina está por perto?
- A mana está muito ocupada na cozinha. A gente pode conversar o que quiser.
Pedro falou mais aliviado:
- Então, frangote, eu e papai fomos a uma cidade muito distante dessa vez, por isso a demora. Eu vi cada coisa que não sei como descrever. É impressionante como tudo aqui é diferente de lá.
Lui ouvia tudo atentamente.
- Pois então - continuou Pedro - A gente fez muitos negócios, mas o melhor aconteceu na volta pelo mangueiral.
Os olhos de Lui faiscaram de expectativa.
- Frangote, eu vi alguém dentro da casa da bruxa…
- O quê?!
Os olhos de Lui se arregalaram num espanto real.
- Isso é impossível!
- Eu e o meu pai vimos, frangote.
- Mas aquela casa é cercada por aquelas roseiras-do-diabo! Ninguém pode entrar lá!
Pedro parou e ficou olhando para o rosto assombrado do amigo, em seguida continuou:
- Estávamos voltando a cavalo pela estrada que corta o mangueiral - fez uma pausa, buscando os fatos na memória recente. - Avistamos de longe todo o cercado de roseiras e trepadeiras, formando aquela fortaleza em torno da casa…
Lui ouvia tudo com atenção. Pedro olhou pela porta para ver se não havia mais ninguém escutando.
- Foi então que percebemos que nossos cavalos não queriam mais prosseguir. Agora, eu acho que eles não queriam passar mesmo era na frente da casa da bruxa, que, você sabe, fica à beira da estrada.
- Sim, mas conte logo o que aconteceu - impacientou-se Lui.
- Eu olhei um momento para cima da muralha e dava pra ver uma janela com a vidraça quebrada. Eu desviei o olhar para as copas das mangueiras e quando voltei a vista para a janela, eu vi alguém lá.
Lui tapou a boca com as mãos.
- Sim, foi por um instante, mas eu vi. Havia a sombra de uma pessoa naquela janela e estava nos observando, tenho certeza…
- Não pode ser… Ninguém poderia entrar naquela casa…
- Quando me virei para o meu pai - Pedro continuou, ignorando Lui - Notei que ele estava branco como farinha de mandioca. Sabia que ele também tinha visto, mas se limitou a dar uma cipoada mais aprumada no lombo do seu cavalo, que desatou pela estrada… Eu fiz o mesmo, mas…
- O quê?
- Eu não acho que alguém tenha entrado naquela casa.
- Mas então, como…
- Aquela figura que nos observara parecia mais fazer parte daquela casa abandonada.
Lui encarou Pedro por um momento, tentando encontrar vestígios de mentira em seu rosto, mas não viu nada que o denunciasse.
- Lui, vem almoçar!
A voz forte de Samarina chamou.
- Almoce com a gente.
- Ah, não posso. Tenho que dar um banho no Zilion.
O cavalo pastava calmamente, ao lado do dono. Pedro montou-se agilmente sobre ele.
- Frangote, caso não tenha ficado com muito medo, depois poderíamos dar uma passada na estrada. Talvez, não sei, alguém tenha realmente conseguido abrir caminho naquela fortaleza de espinhos.
O garoto pensou em recusar a proposta de imediato.
- Certo - disse por fim. - Nós iremos.
- Está virando um homem, frangote - deu uma palmada no cavalo marrom e desatou pelo meio do vilarejo, levantando poeira.
Lui entrou em casa com a estranha sensação de que às vezes seria bom deixar seus temores falarem mais alto. Todavia, já escutara dos mais velhos que o que tiver de acontecer, vai acontecer.
Mas que medo era aquele afinal?

II

Zilion cavalgava mais à frente de Lui e seu cavalo. Eles estavam subindo pela estrada que cortava o mangueiral, as copas das árvores se fechando e tapando a luz do sol.
À beira da estrada, a casa da bruxa, como era conhecida por todos em San Mael, erguia-se imponente. Tratava-se de um casarão colonial, fato notado apenas graças ao telhado, pois todo o resto era protegido por uma muralha de roseiras espinhosas e trepadeiras, que circundavam toda a construção. Dali, ninguém entrava e ninguém saía.
Os cavalos pararam a uma certa distância da muralha "natural" da casa.
- Você nunca achou isso estranho - perguntou Lui, a voz baixa.
- O quê? Esta casa aqui no meio do mangueiral?
- Sim…
- Acho que todos da vila acham.
Os dois começaram a observar a construção, como se fosse a primeira vez que a vissem.
- Você tá com medo, frangote?
Lui o olhou com irritação.
- Não! Você mesmo disse que estou virando um homem, pois então, não tenho mais medo dessas coisas.
- Que bom - disse, com voz suave.
- Por quê?
- Porque nós vamos arrodear a muralha para saber se há passagens.
Lui não gostou da ideia, mas nem lhe passou pela cabeça manifestar recusa.
- Você vai pela esquerda e eu pela direita. Se acontecer alguma coisa, apenas grite o mais alto que puder.
Lui olhou indeciso.
- Certo - disse, resignado.
De perto, aquele "muro" parecia ainda mais compacto. Impossível enfiar um dedo ali, sem que o mesmo saísse todo esburacado pelos espinhos das roseiras-do-diabo. Lui começou a circundar com pressa a sua parte de muralha. Olhava para cima e só via o verde das copas das mangueiras. Os pés fazendo um som ríspido ao pisarem nas folhas secas.
- Não há nada aqui - falou para si mesmo.
Olhou em volta e viu uma árvore seca próxima. Não parecia ser uma mangueira. Sentiu uma tontura ao ver um dos galhos cinzentos da árvore se mexer voluptuosamente.
- Hã?
Passou as mãos nos olhos, mas estes não o haviam enganado: o galho se rebulia todo. Lui teve um choque tremendo ao ver que aquilo não era um galho, mas uma serpente, que deslizava pelo caule da árvore e com sua língua, farejava o calor do corpo quente ali próximo ao muro de espinhos da casa da bruxa.
O primeiro ímpeto de Lui foi o de gritar, mas a voz não saíra. Cobras, tudo menos cobras. Aqueles seres eram para ele a representação máxima da infelicidade. Uma delas, uma cascavel, roubara-lhe a vida de seus pais.
Desatou a correr junto ao muro. Sentiu seu ombro se rasgar num breve momento em que se chocou contra aquela parede. Os espinhos afiados lhe pareceram as presas da serpente lhe amaciando a carne. Virou à esquerda atarantado e esbarrou em Pedro.
- O que você tem - o rapaz perguntou atordoado - Parece que viu uma assombração!
As pupilas negras de Lui estavam dilatadas.
- Cobra! A cobra está me caçando.
- Não tem cobra nenhuma aqui. Veja você mesmo.
Lui olhou em volta com dificuldade: nem sinal da serpente cinza.
- Vê? Não tem nada - Pedro riu zombeteiramente.
- Não ria de mim! Eu…
Caindo de cima, como um laço de um vaqueiro, a serpente se enrolou no pescoço de Pedro. Ela levanta sua cabeça triangular e encara Lui, que entrara em choque. A língua bifurcada tremulando no ar.
A serpente olha para cima: a janela, rente ao fim da muralha, mostrava a sombra de alguém. Lui não tirava os olhos do réptil e Pedro parecia que perdera a alma. O animal dá uma ultima olhadela para o "frangote" e este poderia jurar que ela piscara-lhe maldosamente. Em seguida, ela abriu a boca e aprofundou suas presas na face apática de Pedro.
Lui sentiu o mundo girar. Viu a serpente deslizar pelo corpo do rapaz, tal qual fizera no tronco, e se perder mato adentro. Pedro cai de joelhos e Lui o apara em seus braços. O sangue escorrendo pela face.

III

Deitado sob o cortinado azul, Pedro não podia escutar o som das vozes daqueles que conversavam sobre o seu estado.
- Será que ele escapa dessa?
- Não quis dizer nada na frente dos pais dele, mas, pela minha experiência, acho que o rapaz tem no máximo essa noite.
Uma mulher adentra com uma bandeja no quarto abafado, trazendo água e alguns pedaços de pano limpos. Ela afastou o cortinado e contemplou o rosto de Pedro.
- Meu filho…
Na maçã direita do rosto do jovem, um corte profundo, recém ponteado, fora traçado, indo quase de seu lábio superior até um pouco abaixo do olho.
- Tivemos que fazer esse corte - um dos homens que se encontrava no recinto, um ancião, aproximou-se da mãe de Pedro - Precisávamos sugar o veneno.
Ela passou delicadamente um pano umedecido nas bordas da sutura.
- Se ele sobreviver, está tudo bem…
- Senhora, não podemos garantir-lhe isso.
Calaram-se. A outra pessoa no quarto, um rapaz, aprendiz do ancião, baixou a cabeça, em seguida saiu do lugar.
Na sala, outras pessoas se encontravam. Samarina tentava consolar o pai de Pedro. Lui estava sentado no chão, a um canto da parede, isolado, a cabeça escondida nos braços.
- Você estava com ele, não?
O ajudante do ancião aproximou-se de Lui, que levantou a vista.
- Sim. Ele já acordou, Eriel?
- Não.
Abaixou-se de fronte ao garoto, seus olhos azuis passando uma calma fúnebre.
- Talvez não desperte mais.
As palavras foram como uma descarga elétrica em Lui.
- Vocês não podem fazer mais nada - perguntou com a voz fraca, quase inaudível.
Eriel o fitou por um instante, antes de responder.
- O doutor não crê nas histórias dos povos daqui, mas…
A expectativa tomou conta da agonia de Lui.
- Se pudéssemos achar a cobra que o mordeu e matá-la, a vida tomada por ela seria devolvida.
Ficaram em silêncio; Lui assimilando cada palavra dita pelo jovem aprendiz.
- Bem, mas é impossível achá-la, não?
Levantou-se e foi de encontro a Samarina e ao pai de Pedro. Nem viram que no cantinho da parede já não havia mais ninguém.

IV

O entardecer, a luz desaparecendo dentro do mangueiral, os troncos das árvores ganhando formas ambíguas com a penumbra pré-instalada. Lui na estrada de barro batido, seu cavalo, um facão à cintura, uma decisão no olhar e um tremor nas pernas: encarar o pesadelo uma vez mais, por um amigo, seu único amigo de verdade: aquele que sempre lhe chamava de frangote, que sempre lhe contava suas aventuras pelas cidades e vilas do mundo, que lhe dava um sabor prévio de tudo que um dia ele certamente provaria.
Pedro tinha mãe e pai. Era filho único. Não podiam perdê-lo. Pelo amigo e pelos outros que deste precisavam, o sacrifício valeria a pena.
À frente: a casa da bruxa, protegida por sua muralha de espinhos, os troncos secos que pareciam raios cristalizados sobre a terra. Os pés de Lui queriam dar meia-volta, mas ele já tomara a sua decisão:
- Eu vou matá-la!
Seguiu pelo mesmo caminho que tomara mais cedo e foi revivendo cada segundo do pesadelo da perseguição anterior. Notou que nem ao menos tratara do ombro ferido pelos espinhos.
- Que se dane - pensava. - A vida dele é mais importante.
A tarde evanescia. Os barulhos dos animais noturnos já iniciavam. Lui avistou a árvore morta da qual surgira a maldita serpente.
- Apareça! - gritou.
Sapos coaxaram ali perto e os grilos tocavam uma sinfonia irritante.
- Apareça maldita!
Um farfalhar num arbusto a alguns metros fez Lui ter um sobressalto. Sentiu um arrepio por todo o corpo, uma mistura de pavor e excitação, mas o seu instinto sabia o que fazer. Sacou a enorme faca da cintura - a pegaria em sua própria casa - e foi, com passos decididos, rumo ao arbusto.
Mais um movimento pesado no arbusto. O garoto levantava o facão à altura da cabeça. Caminhando para frente ele vê a serpente cinza se mover em caracol em torno de seu ventre inchado, aninhando-se para fazer digestão de um animal qualquer que devorara há pouco.
Lui sentiu que não havia erro: aquela fora a maldita serpente que lhe perseguiu e em seguida atirou-se sobre Pedro traiçoeiramente, desfigurando-lhe a face. A arma tremeu na mão excitada do garoto. Seria um único golpe, apenas um e pronto. Se não salvasse a vida do amigo, ao menos estaria vingado. Vingança…
Uma brecha entre as copas das mangueiras deixava que os últimos raios vermelhos de sol iluminassem o facão erguido e o réptil sonolento no chão. Lui preparou-se e arregalou os olhos num ímpeto de raiva. O animal ergueu sua cabeça ofídica e encarou aquele que o ameaçava. Lui cambaleou, deu passos errantes e desabou de bunda no chão cheio de folhas. O facão caíra ao seu lado, mas não tinha mais serventia; algo naquela cobra despertara em Lui um pavor nunca antes sentido.
- Ah…
O grito não veio mais uma vez.
A serpente deslizou molemente e avançou sobre o garoto, emparelhando sua cabeça com a dele.
"Os olhos, por Deus, os olhos".
Novamente a boca aberta e as presas curvadas para dentro aparecendo. Era o fim.
O sangue gotejou na face de Lui. Tudo não durara mais que alguns milésimos de segundo. Ele olhou para sua esquerda e viu a serpente morta com uma flecha transpassando a sua garganta. Olhou para a direita e avistou um vulto que desaparecia num galho de um cajueiro próximo à muralha da casa da bruxa. Podia jurar que vira um penacho na cabeça de quem o salvara. Alguns passos explodiram bem atrás dele.
- Lui!
Samarina abraçou o irmão fortemente.
- Oh meu Deus! Você está bem?
Dois homens da vila a acompanhavam. Um deles se aproximou da cobra morta no chão, arrancando-lhe a flecha.
- Por que fez isso, Lui - ela perguntou, os olhos cheios de lágrimas. - Não fosse Eriel ter-me dito o que conversara com você, sabe-se lá o que aconteceria. Esse lugar é perigoso!
- Eu precisava, mana - disse por fim.
O homem perguntou, segurando a flecha.
- Quem a matou?
- Eu não sei.
- E por que você não a matou - tornou a perguntar, olhando o facão caído.
Lui não o encarou quando respondeu.
- Os olhos…
- Que tinham os olhos dessa criatura?
- Os olhos desta cobra, eram olhos humanos.
A noite caiu de vez. Um véu de estrelas se estendeu de norte a sul, mas aqueles que voltavam para San Mael não podiam observar o céu sobre o céu artificial de folhagens. Também não podiam imaginar que da janela da casa da bruxa, a silhueta de alguém os via se afastando na noite.

V

As lavadeiras batiam as roupas fortemente à beira do rio. A quentura agradável do sol da manhã aquecia o lombo de Zilion. Lui foi com o cavalo até o meio do rio, o pêlo do animal reluzindo ao sol.
- Não fique triste. Logo o seu dono volta a dar banho em você aqui nesse rio, viu - acariciou a crina do cavalo.
Atravessando o rio, uma larga ponte de madeira comunicava a vila San Mael ao restante do mundo.
- Lui!
A voz de Darília ecoou nos ouvidos do garoto, que fechou os olhos reflexivamente.
- Lui, olhe pra mim - gritou a garota. - Veja como eu pulo alto da ponte!
Lui virou-se, resignado. Darília, os cabelos loiros destacando-se mais ao sol e as pernas bem torneadas unidas, jogou-se no ar a partir da borda da ponte e desapareceu embaixo d'água.
Passaram-se alguns segundos.
- Buu!
Submergiu repentinamente atrás de Lui que teve um sobressalto. Ela o abraçou por trás, cruzando os braços em seu tórax, pôs sua cabeça junto ao ouvido dele e falou baixinho:
- Você se assustou, Lui? - foi descendo a sua mãe pelo corpo do garoto, afundando-a, sem cerimônias, dentro do calção do garoto. - Vamos ver se você é homem mesmo...
- Darília!
Uma mulher gorda chamava à beira do rio, no outro lado da ponte.
- Já vou!
Ela largou o garoto e saiu esbaforida - a blusa molhada mostrando os contornos de seus seios.
Lui (com o rosto muito vermelho) mergulhou de vez na água fria e foi se afastando de Zilion. Ele via os raios solares entrarem escassamente naquelas águas escuras. Seguiu a correnteza e foi de encontro ao local mais fundo e lamacento do rio, de onde subiam os talos das vitórias-régias.
Lui tinha um ótimo fôlego. Crescera nadando ali e sabia fazê-lo muito bem, disso ele se orgulhava. Costumava se aventurar na pesca também; sabia fazer armadilha para pegar camarão e outros animais, contudo Pedro era bem melhor nessa prática.
Pedro...
O pensamento lhe veio à cabeça ao mesmo tempo em que seu cérebro dava o sinal vermelho para os seus pulmões: seu amigo sobrevivera àquela noite única dada pelo doutor, porém ainda não despertara por completo. Quase uma semana já se passara e às vezes tudo que Pedro fazia era respirar...
Respirar.
O fôlego já estava faltando de vez. Lui deu uma guinada no fundo do rio, levantando a lama, e desatou em linha reta para a superfície. Estava chegando, iria desabrochar entre os aguapés.
Estagnou a alguns palmos da superfície. Sentiu uma mão macia segurando a sua perna direita e começando a puxá-la para o fundo novamente.
Não se atreveu a olhar para baixo, o seu coração batia forte contra o peito quase sem oxigênio. Ele balançou os braços convulsivamente, mas aquilo que o segurava não o queria soltar de jeito nenhum. Lui fechou os olhos e sentiu a sua mente apagando pouco a pouco.
De súbito, com um solavanco, o garoto submerge; os pulmões se enchendo novamente de ar. A mesma mão que o prendera, empurrara-o de volta à superfície. A alguns metros, Lui viu Zilion e as lavadeiras. Nadou depressa para a margem e saiu da água. Ficou olhando para a correnteza e revivendo o fato na mente. Pensou ter escutado, minutos antes de submergir, uma risada infantil ecoando em sua mente.

***

- Você acredita em mim, mana?
- Claro, alguma vez eu deixei de acreditar em você?
Lui baixou a cabeça, sentado numa cadeira. Uma chaleira chiava sobre o fogão à lenha. Samarina se levantou e foi tirá-la do fogo.
- Eu não volto mais naquele rio.
Ela continuou calada, pensativa, enquanto concluía a sua tarefa.
- Foi por muito pouco mesmo. Eu quase morri...
Voltou para a mesa e se sentou de fronte a Lui.
- Maninho, você precisa voltar lá, se não quiser, mas cedo ou tarde vai ter que levar Zilion lá, você prometeu que cuidaria do cavalo de Pedro.
Ele ficou olhando para o sorriso doce da irmã.
- Mas mana, e se me levarem para o fundo da próxima vez?
Ela o encarou, de modo a achar aquilo muito engraçado, mas sem desacreditar nenhuma palavra que o irmão tinha dito.
- Lui, as pessoas aqui vivem em muita harmonia com o que as cercam...
Ela virou-se para contemplar o quintal bem cuidado, através da janela da cozinha.
- Nossa mãe me ensinou que tudo na natureza tem alma, assim como nós. Aquele rio também tem uma.
- Uma alma que queria tirar a minha!
Ela olhou para o irmão decididamente achando muito divertido o seu pavor.
- Seu garoto bobo! Eu sei que deve ter sido uma experiência muito desagradável, mas você está vivo, não está?
Lui a encarou, estranhando aquela ausência de preocupação.
- Mana, o que você quer dizer afinal?
Ela se levantou e voltou-se para o fogão, falando:
- Quando voltar àquele rio, leve algo para "ela". Algo que não exista naquelas águas.
- Por quê?
- Apenas um agrado por terem lhe deixado viver.

***

À tardinha, Lui saiu de sua casa carregando algo embrulhado num pano. Atravessou a vila, passando pelo cemitério de muro baixo e árvores altas e também pelas ruínas da antiga igreja. As nuvens no horizonte estavam rubras. O tempo começava a ficar frio, mas no todo, estava uma sensação muito agradável e Lui sentia isso muito bem.
Chegou à ponte e se sentou, pendendo as pernas para baixo. Desembrulhou o que trouxera: um bondoso pedaço de bolo de milho.
Olhou para as águas calmas e escuras - àquela hora estava sozinho, mas logo chegariam outros garotos com o gado para atravessar o rio rumo aos pastos verdes do outro lado.
- O bolo da mana é muito bom...
Segurou o bolo acima da água corrente.
- Obrigado...
Falou e foi esfarelando tudo aos poucos. Os pedacinhos amarelos caindo na água e desaparecendo instantaneamente.
- Espero que goste.
Olhou para baixo e viu os contornos de um corpo nu e alvo deslizando embaixo d'água e passando por baixo da ponte. Lui ficou paralisado, mas não de medo, tratava-se de uma sensação mais sublime.
Tornou a ouvir o som, o mesmo que ele pensara ser uma risada infantil, mas que agora ele notara melhor: tratava-se de algo como uma canção, apenas ressonada, mencionada, nunca concluída. Apenas um trecho repetitivo e doce. Encantador.
Sentado na ponte, ele olhava os rebanhos que atravessavam o rio e agitavam a água, outrora tão calma. Quando tornou a voltar para casa, as estrelas já se acendiam no céu e uma profunda paz estava instaurada em seu peito.

Continua...

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