A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas da Franqueira, alveja
ao longe um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio,
sombreado de velhas árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas
e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silencio daquela
solidão, a qual, para nos servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo
de Brito, com a saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito
à contemplação das coisas celestes.
O monte que se alevanta acima do humilde convento é formoso, mas áspero
e severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao longe
o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O espectador colocado
no cimo daquela eminência volta-se para um e outro lado, e as povoações
e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais apresentam-lhe o panorama
variadíssimo que se descobre de qualquer ponto elevado da província
de Entre Douro e Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue;
já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos,
estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo
de máquinas de guerra. Claros sinais de que aí viveram homens:
porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios
que escolheram para habitar na terra.
O castelo de Faria, com suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso,
com seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como
dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem
some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito;
mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de mármore e de granito,
o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcácer das eras dos reis
de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no século dezassete parte
da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas; no século seguinte
já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um
historiador nosso. Um cemitério, fundado pelo célebre Egas Moniz,
era o único eco do passado que aí restava. Na ermida servia de
altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro duque de Bragança, D.
Afonso. Era esta lájea a mesa em que costumava comer Salat-Ibn-Salat,
último senhor de Ceuta. D. Afonso, que seguira seu pai D. João
I na conquista daquela cidade, trouxe esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram,
levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes
mouriscos converteu-se essa pedra em ara do Cristianismo. Se ainda existe, quem
sabe qual será o seu futuro destino?
Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento edificado
ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas
de armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras
e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou-se no alto
do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro
das orações.
Este amigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos
maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de conservar
os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de
um claustro, pedras que foram testemunhas de um dos mais heróicos feitos
de corações portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava
de seus antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com
os Castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos,
e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição
principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando
casasse com a filha de el-rei de Castela; mas, brevemente, a guerra se acendeu
de novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o
contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher,
com afronta da princesa castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança
da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em Portugal
com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre
Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos
deste sitio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.
O adiantado da Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província
de Entre Douro e Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo,
enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava
inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa. Prendendo, matando e saqueando,
veio o adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar
quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique
Manuel, conde de Seia e tio de el-rei D. Fernando, com a gente que pôde
ajuntar. Foi terrível o conflito; mas, por fim, foram desbaratados os
Portugueses, caindo algumas nas mãos dos adversários.
Entre os prisioneiros encontrava-se o alcaide-mor do Castelo de Faria, Nuno
Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde
de Seia, vindo, assim, a Companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso
alcaide pensava em como salvaria o castelo de el-rei, seu senhor, das mãos
dos inimigos. Governava-o em sua ausência um seu filho, e era de crer
que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar,
muito mais quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações
sugeriam um ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao adiantado que o mandasse
conduzir a pé dos muros do castelo, porque ele, com as suas exortações,
faria com que o filho o entregasse, sem derramamento de sangue.
Um troço de besteiros e de homens de armas subiu a encosta do monte da
Franqueira levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O adiantado
da Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita,
capitaneada por João Rodriguez de Viedma, estendia-se rodeando os muros
pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do Castelo de Faria,
que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.
De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação
de Faria, mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao
longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram
o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se
no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior
ou barbacã.
Nas torres, as atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadéns
corriam com a rolda pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos nos ângulos
das muralhas.
O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação estava
coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das
mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência
de inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens de armas que levavam preso Nuno Gonçalves
vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que
cercavam as ameias encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se
para arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e virotões,
enquanto o clamor e o choro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava
apinhado.
Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã;
todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas
converteu-se num silêncio profundo.
- Moço alcaide, moço alcaide! - bradou o arauto - teu pai, cativo
do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, adiantado da Galiza pelo mui excelente
e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo.
Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro
e, chegando à barbacã, disse ao arauto: - A Virgem proteja meu
pai! Dizei-lhe que eu o espero.
O arauto voltou ao grosso dos soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e,
depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao
pé dela, o velho guerreiro saiu de entre os seus guardadores e falou
com o filho:
- Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo
o regimento de guerra, entreguei à tua guarda, quando vim em socorro
e ajuda do esforçado conde de Seia?
- É - respondeu Gonçalo Nunes - de nosso rei e senhor D. Fernando
de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem.
- Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca
entregar, por nenhum raso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado
debaixo das ruínas dele?
- Sei, bem meu pai! - prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não
ser ouvido dos Castelhanos, que começavam a murmurar. Mas não
vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste
a resistência? Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido
as reflexões do filho, clamou então:
- Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito
por mim, sepultado sejas tu no Inferno, como Judas o traidor, na hora em que
os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver.
- Morra! - gritou o almocadém castelhano - morra o que nos atraiçoou
- E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas
e lanças.
- Defende-te, alcaide! - foram as últimas palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando
vingança. Uma nuvem de flechas partiu do alto dos muros; grande porção
dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com
o sangue leal ao seu juramento.
Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro da
barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos
reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido mm
a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerca;
o vento suão soprava nesse dia mm violência e em breve os habitantes
da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram
juntamente com as suas frágeis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai; lembrava-se
de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, ouvia a todos os momentos
o último grito do bom Nuno Gonçalves:
- Defende-te, alcaide!
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do castelo
de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército
castelhano foi constrangido a levantar o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso
procedimento e pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza,
cuja guarda lhe fora encomendada por seu pai no último transe da vida.
Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no
espírito do moço alcaide. Pediu a El-Rei o desonerasse do cargo
que tão bem desempenhara, para se cobrir com as vestes pacíficas
do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas
e preces que ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória
o nome dos alcaides de Faria.
Mas esta glória, não há hoje aí uma única
pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradoiras
que o mármore.