A Garganta da Serpente
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O fim da sacra morada

(André Grillo)

O infame torpor que se apossou de meus sentidos é inenarrável. Uma visão mórbida. Uma massa sonora histérica e descontrolada ,com ecos da natural criativa melodia tentando subsistir. O ar sujamente espesso de escuridão e lama.

Uma visão mórbida...

Um quadro bizarro à sensibilidade humana verdadeira (supondo-se que exista).

Da minha janela - que fornecia grande vista, ao menos quantitativamente - vejo a casa em que cresci sendo destruída. Gradativamente. Progressivamente. Parece que só agora me dei conta.

Acelerou-se a degradação. Os engenheiros - arquitetos - pedreiros estão cada vez mais bem treinados, e os marioneteiros ampliam sua capital construção.

A casa ,apesar de simples, é extensa. Por isso ,dá um certo trabalho e tempo para derrubada por completo ser. Porém, a técnica e racionalização (exacerbada) se aperfeiçoam cada vez mais, desenvolvendo-se e espalhando-se mais rápido a cada segundo que passa. Como os agentes de uma doença que vão aumentando o seu número suntuosamente quando se aproxima o estado terminal.

Não consegui deixar por completo a casa, com seus largos pastos e florestas. Havia de conseguir ao menos vê-la a uma distância em que ainda pudesse admirá-la. Quando me dei conta, estava sendo destruída diante de meus olhos. E cada vez mais rápido.

Cada vez mais rápido....

Os ceifadores aumentaram. Os pedreiros, serventes, aumentaram. Os líderes, engenheiros, arquitetos, acionistas abelhudos, não parecem ter aumentado. Talvez se aprimorado. Com certeza. Isso decreta o aceleramento da sentença de morte. Similar a um condenado a cadeira elétrica (ou ao veneno, ou o que houver de mais doloroso) que não mais caminha vagarosamente pelo corredor da morte, mas corre com um foguete atrelado aos sofridos pés.

Estão se aproximando, para piorar, do esconderijo onde guardei preciosos itens. Preciosas lembranças.

Fica lá em cima, no alto da florestal montanha. Cheguei lá através de um caminho que encontrei sem querer, enquanto corria pela chuva infantilmente. Quando cheguei ao topo, entorpeceram-se meus sentidos. Embriagou-se minha alma. Efervesceu-se minha carne. Naquele momento encontrei algo, escondido, encoberto. Um forte vento revelou o extraordinário artefato. Não tinha ouro , nem diamante. Algo muito superior. Algo que mexia com a mente, abalando suas conhecidas estruturas. Não pude evitar de sentir a energia daquele lugar verdadeiramente espiritual e extremamente poderoso. Nunca vi um lugar tão iluminado, mesmo estando no meio de tanta escuridão.

Lá minha alma pode construir, revelando suas angústias e felicidades. Suas criativas soledades. Seu desejo de fraternidade. E deixei tudo lá. Não pude retirar nada daquele templo sagrado, nem mesmo o que fiz. Mas nunca imaginei que o progresso da razão pudesse destruir as obras de minh'alma apaixonada.

O que poderia fazer agora ? Ficar sentado olhando as máquinas destruidoras liquidarem meus momentos tão valiosos . Não, algo é preciso fazer . Mas o que ? O QUE ?!?!?!?!?!?

II

É uma tarde chuvosa de inverno . A neblina confere rara beleza a montanha, circulando-a e deixando leves feixes nebulosos a deslizar por ela nunca a escondendo muito . Uma forma de escuridão que só vem ressaltar a beleza e, o que poderia parecer estranho a maioria, está mostrando o exato caminho rumo ao esconderijo sagrado. Tanto tempo, que não mais lembrava o caminho . É minha última chance, penso . O universo e a (se existente) ordem do cosmos me concedeu uma última chance de relembrar o miraculoso ritual, que, entre outras coisas, expulsa demônios indesejáveis (sem maltratar os desejáveis) .

A chuva parece uma extensão do meu ser . Preciso aproveitá-la. Se passar antes que eu chegue, levando consigo as nuvens e neblina, nunca mais saberei o caminho. Corro pela chuva. Atravesso ruas, prédios, todo tipo de construção com seus mal-ordenados racionais prático-industriais cimento, concreto e tijolos, os mais baratos possíveis. Para aumentar o lucro, claro. Algumas escassas árvores me dão algum fôlego, e com muito esforço chego ao pé da florestal montanha . Neste exato momento, um raio estoura e abre o caminho esquecido, já em parte encoberto pela sujeira.

Gostaria de ressaltar que apenas faço um relato de acontecimentos, totalmente possíveis, presenciados pelo meu ser .

III

O caminho era escuro, sombrio, mas visível . Cercado de escuridão, mas uma escuridão diferente , tranquilizante. Uma tranquilidade conflituosa, alucinada e calma, crescendo conforme avançava. Diferente da soturna opressão e tranquila remorsante acomodação da vida moderna. A obscuridade instintiva guiava meus passos, me mostrando como chegar à luz . Não era a vazia escuridade, mas uma que trazia um turbilhão de fantasmas consigo. Fantasmas, anjos e demônios. Todos juntos, numa louca dionisíaca celebração ao que caminhava em meio a escuridão.
Tantas lembranças, coisas que pareciam claras quando se limpava a sujeira do absurdo. Minh'alma caminhava com satisfação, pois não mais temia a sombria escuridão. Muitas coisas indescritíveis vi pelo caminho, em meio à negridão. Visões reveladoras, restos do passado e do presente jogados impunemente no meio da floresta pelos aviões de lixo. Sim , aqui existem aviões que recolhem o lixo e o despeja na floresta, para que não o vejam. Afinal , é isto o que importa para eles (e infelizmente normalmente para nós ) .

IV

Sinto a chuva se exaurir. Espero estar perto, não há mais tempo. Ouço o som das motosserras rasgando a atmosfera, até meus ouvidos. Talvez a chuva os tenha atrasado, mas agora devo correr, guardar provisoriamente a contemplação, pois é preciso concreta ação. Basta manter a percepção. Já sinto o final do caminho, posso sem medo alcançá-lo . Caminho por entre pedras agora . Mas não falta muito .

Ando mais um pouco...parece que vejo algo diferente ao longe...

V

Sim!

É o fim!

O lugar que procurava se mostra às minhas vistas. Como é bom rever o santuário em que consagrei meu ser, alma e carne .

Sim!

Ainda estão aqui, intactos, os frutos de meu espírito e corpo. Da sensibilidade concretizada em formas e contornos, ideias e consolos.
Sim!

Morrerei aqui. Aproveitarei os últimos instantes deste santuário d'alma. Deste refrigério de corpo e espírito.

Prefiro morrer aqui a morrer acorrentado a um gélido bloco de concreto. Espiritualmente preso à uma estufa de retas e ângulos matematicamente exuberantes e perfeitos.

Esta é a verdadeira morada sagrada.

Que me destruam junto com ela, para não mais viver escravo capital do relógio.

Fizeram os últimos reparos, posso ver. O monstruoso berro grave dos motores está muito próximo . Não serei visto, simplesmente destruído.

Nada resta.

Apenas os últimos segundos de verdadeiro sentimento e vida humana e animal.

Adeus.....

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