O trinado agudo ecoa pela casa, repique ininterrupto das flautas amareladas
e cobertas de penas que balançam-se no pequeno poleiro da gaiola. Réstias
da bruma leitosa da madrugada ainda se ocultam pelos cantos mais remotos, espectros
obscuros desmembrados do corpo da noite. Fora, sereno, névoa opaca e
fria. O gorjeio volta e explodir pelas paredes pétreas de concreto, dessa
vez mais forte, ímpar concerto dos canários saudando a chegada
da manhã fria.
Camilo ergue-se preguiçosamente, olhos ainda intumescidos de sono; pupilas
semidilatadas, retinas confusas sob as pálpebras pesadas. Queimação
no peito, saldo da noite regada a conhaque e tira-gostos gordurosos, ácidos
gástricos em revolta. O corpo roga permanência entre os lençóis,
inconsciente praguejando contra os deveres do dia. Sempre muito trabalho, descanso
pouco para o corpo de meia-idade, já obeso e flácido. Ouvidos
acostumados aos desacatos do chefe: "chegou atrasado mais uma vez, filho
da puta; quer perder o emprego?" essa é sempre a primeira imagem
do dia em sua cabeça. Todos os dias. Prévia da encheção
de saco que terá de suportar dentro em pouco. Algum dia, ainda meterá
a mão no sacana. Algum dia, quando tomar coragem. Não sabe quando
ainda.
Sacode o corpo da mulher, que resmunga no arquétipo do protesto silencioso
contra o despertar. Uma nova sacudidela, dessa vez mais brusca, um ahnn... fanhoso
e enfim ele senta na cama.
- Vai preparar o café. Já tá quase na hora de sair.
Entra no banheiro. O sabor adocicado da pasta de dentes causa-lhe ânsias
de vômito, que ele reprime a custo. Conclui a escovação
e fica por alguns minutos embaixo da ducha fria. Partículas brilhantes
de água espalham-se pelo vidro do Box iluminado pela luz incandescente,
diminutos e violáceos sóis frios.
O cheiro forte de café penetra em suas narinas assim que ele entra na
cozinha. Mesa posta. Aldina, já sentada, sobrecenho carregado, espreita-o
a passar modorrentamente manteiga na torrada. Ela também, como ele, dentro
em pouco em serviço, mentindo praquelas senhoras ricas que teimam em
tentar esconder o efeito da idade sob roupas da moda. Paciência. Precisa
do emprego. Os dois, diante um do outro, maldizendo intimamente a sina. Mútuo
aborrecimento.
Espoca repentinamente do assobio. Camilo sobressalta-se, parte da manteiga que
ia na lâmina da faca cai-lhe na manga da camisa. Pequena nódoa
no tecido branco. A gaiola oscila acima deles.
- O cantar desses bichos me enerva - diz ele - vou soltá-los, qualquer
dia desses.
Ela faz uma careta. Presente da mãe, sob os protestos de Camilo. Reclamações
inúteis. Casal de penugens amareladas pendendo sobre a mesa da cozinha.
- Não vai soltar, não - ela desafia - vão ficar exatamente
aí, onde estão.
Ela levanta e pega a bolsa. Normalmente sai meia hora antes dele. O marido jamais
a acompanha. Dirige-se bruscamente ao marido:
- Vê se chega hoje mais cedo. Esquece pelo menos um dia de ficar até
tarde com os vagabundos dos teus amigos, bebendo nos puteiros.
A porta é batida. Alguns dos passos apressados dela ainda chegam aos
ouvidos dele. Esposa ou inimiga? Pergunta para si mesmo.bruxa travestida de
fada. Lasso engano, tarde demais para uma reparação sem prejuízo.
Resignação, é tudo. Fim.
- Vai à merda... - murmura, triturando nervosamente o último pedaço
de torrada.
Com um suspiro, segura a maleta. A cada dia parece pesar mais. Apenas aumento
contínuo de cansaço. Estresse acumulado. Suspira e precipita-se
para a porta.
Outro trinado fá-lo estacar antes de sair, mão já na maçaneta.
Vislumbra a gaiola onde o casal amarelado abre o peito. Deixa que as retinas
carreguem-se com aquela imagem. O corpo esmorece por instantes. Depõe
a mala no chão. Uma transformação começa a operar-se
em se seu interior. Uma ideia toma forma. As finas grades de arame afiguram-se
lhe maiores, barras de ferro destinadas a criminosos. O cantar chega a ele como
um desabafo, como o que ele não pode expressar. Sente uma ponta de inveja.
Sobe na mesa e retira a gaiola do gancho. Os canários cessam seu concerto.
Entram assustados na casinhola onde fica o ninho, argênteos e minúsculos
olhos e pontas de bico de fora. Camilo detém-se a observar a prisão.
Enfia os dedos entre as grades; os bichos ocultam-se mais. Vai até a
janela que dá para um terreno vizinho, cheio de árvores. Deposita
a gaiola aberta sobre o peitoril. Um, dois, cinco, dez minutos. Os bichos permanecem
na casinhola. Camilo perde a paciência, enfia a mão na gaiola,
retira a casinha, rompe a tampa e resgata o casal aterrorizado. Num ímpeto,
precipita os dois pela janela e observa-os pousar, depois de um voo confuso,
num galho próximo.
Antes de sair, o pio volta a tingi-lo. Volta-se, vê um dos canários
- ele não sabe se o macho ou a fêmea - pousado no peitoril. Xô!
Nada, ele continua lá, impassível. Camilo aproxima-se,e o pássaro
deixa-se apanhar facilmente entre os dedos já nervosos. "não
que ir embora", conclui, "perdeu o senso de liberdade. Como eu."
Com um movimento rápido, torce o pescoço do passarinho e o atira
pela janela.
Num ponto próximo, enquanto espera o ônibus, ouve o cantar alto
do sobrevivente. Camilo não tem certeza se o lamento é de tristeza
ou de confusão.