A Garganta da Serpente
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Os Canários

(Anádio G. Rios)

O trinado agudo ecoa pela casa, repique ininterrupto das flautas amareladas e cobertas de penas que balançam-se no pequeno poleiro da gaiola. Réstias da bruma leitosa da madrugada ainda se ocultam pelos cantos mais remotos, espectros obscuros desmembrados do corpo da noite. Fora, sereno, névoa opaca e fria. O gorjeio volta e explodir pelas paredes pétreas de concreto, dessa vez mais forte, ímpar concerto dos canários saudando a chegada da manhã fria.

Camilo ergue-se preguiçosamente, olhos ainda intumescidos de sono; pupilas semidilatadas, retinas confusas sob as pálpebras pesadas. Queimação no peito, saldo da noite regada a conhaque e tira-gostos gordurosos, ácidos gástricos em revolta. O corpo roga permanência entre os lençóis, inconsciente praguejando contra os deveres do dia. Sempre muito trabalho, descanso pouco para o corpo de meia-idade, já obeso e flácido. Ouvidos acostumados aos desacatos do chefe: "chegou atrasado mais uma vez, filho da puta; quer perder o emprego?" essa é sempre a primeira imagem do dia em sua cabeça. Todos os dias. Prévia da encheção de saco que terá de suportar dentro em pouco. Algum dia, ainda meterá a mão no sacana. Algum dia, quando tomar coragem. Não sabe quando ainda.

Sacode o corpo da mulher, que resmunga no arquétipo do protesto silencioso contra o despertar. Uma nova sacudidela, dessa vez mais brusca, um ahnn... fanhoso e enfim ele senta na cama.

- Vai preparar o café. Já tá quase na hora de sair.

Entra no banheiro. O sabor adocicado da pasta de dentes causa-lhe ânsias de vômito, que ele reprime a custo. Conclui a escovação e fica por alguns minutos embaixo da ducha fria. Partículas brilhantes de água espalham-se pelo vidro do Box iluminado pela luz incandescente, diminutos e violáceos sóis frios.

O cheiro forte de café penetra em suas narinas assim que ele entra na cozinha. Mesa posta. Aldina, já sentada, sobrecenho carregado, espreita-o a passar modorrentamente manteiga na torrada. Ela também, como ele, dentro em pouco em serviço, mentindo praquelas senhoras ricas que teimam em tentar esconder o efeito da idade sob roupas da moda. Paciência. Precisa do emprego. Os dois, diante um do outro, maldizendo intimamente a sina. Mútuo aborrecimento.

Espoca repentinamente do assobio. Camilo sobressalta-se, parte da manteiga que ia na lâmina da faca cai-lhe na manga da camisa. Pequena nódoa no tecido branco. A gaiola oscila acima deles.

- O cantar desses bichos me enerva - diz ele - vou soltá-los, qualquer dia desses.

Ela faz uma careta. Presente da mãe, sob os protestos de Camilo. Reclamações inúteis. Casal de penugens amareladas pendendo sobre a mesa da cozinha.

- Não vai soltar, não - ela desafia - vão ficar exatamente aí, onde estão.

Ela levanta e pega a bolsa. Normalmente sai meia hora antes dele. O marido jamais a acompanha. Dirige-se bruscamente ao marido:

- Vê se chega hoje mais cedo. Esquece pelo menos um dia de ficar até tarde com os vagabundos dos teus amigos, bebendo nos puteiros.

A porta é batida. Alguns dos passos apressados dela ainda chegam aos ouvidos dele. Esposa ou inimiga? Pergunta para si mesmo.bruxa travestida de fada. Lasso engano, tarde demais para uma reparação sem prejuízo. Resignação, é tudo. Fim.

- Vai à merda... - murmura, triturando nervosamente o último pedaço de torrada.

Com um suspiro, segura a maleta. A cada dia parece pesar mais. Apenas aumento contínuo de cansaço. Estresse acumulado. Suspira e precipita-se para a porta.

Outro trinado fá-lo estacar antes de sair, mão já na maçaneta. Vislumbra a gaiola onde o casal amarelado abre o peito. Deixa que as retinas carreguem-se com aquela imagem. O corpo esmorece por instantes. Depõe a mala no chão. Uma transformação começa a operar-se em se seu interior. Uma ideia toma forma. As finas grades de arame afiguram-se lhe maiores, barras de ferro destinadas a criminosos. O cantar chega a ele como um desabafo, como o que ele não pode expressar. Sente uma ponta de inveja.

Sobe na mesa e retira a gaiola do gancho. Os canários cessam seu concerto. Entram assustados na casinhola onde fica o ninho, argênteos e minúsculos olhos e pontas de bico de fora. Camilo detém-se a observar a prisão. Enfia os dedos entre as grades; os bichos ocultam-se mais. Vai até a janela que dá para um terreno vizinho, cheio de árvores. Deposita a gaiola aberta sobre o peitoril. Um, dois, cinco, dez minutos. Os bichos permanecem na casinhola. Camilo perde a paciência, enfia a mão na gaiola, retira a casinha, rompe a tampa e resgata o casal aterrorizado. Num ímpeto, precipita os dois pela janela e observa-os pousar, depois de um voo confuso, num galho próximo.

Antes de sair, o pio volta a tingi-lo. Volta-se, vê um dos canários - ele não sabe se o macho ou a fêmea - pousado no peitoril. Xô! Nada, ele continua lá, impassível. Camilo aproxima-se,e o pássaro deixa-se apanhar facilmente entre os dedos já nervosos. "não que ir embora", conclui, "perdeu o senso de liberdade. Como eu."

Com um movimento rápido, torce o pescoço do passarinho e o atira pela janela.

Num ponto próximo, enquanto espera o ônibus, ouve o cantar alto do sobrevivente. Camilo não tem certeza se o lamento é de tristeza ou de confusão.

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