A Garganta da Serpente
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A barata (enfim) boêmia

(André Grillo)

Os conflitos de nossa moral e razão impura são indubitavelmente uma constante através da efêmera passagem terrena (e quem sabe além, se existir ) . Quantos não baseiam sua moral apenas nas leis de legalidade e nos costumes nossos da vaidade. Se esquecem de sua desrazão e razão (impura e fruto da imaginação, é - acredito - verdade, entretanto ainda útil instrumento se utilizada sem excesso e com cautela para com a manipulação), e não formam sua moral, cegas ovelhas de legal religião. Para que kant sua destruição, ilustrarei com real história de perdição .

Relatar a imortal libertação de uma barata não poderia deixar de esbarrar em certas dúvidas acerca do senso moral de tão paradoxal inseto; o único ser com resistência nuclear apagado da existência com mísero pisar - existência terrena , vale ressaltar. Seria bom um aprofundado estudo psicossociológico cultural da mente cascuda. Infelizmente, não foi possível fazê-lo. Portanto, irei me ater aos fatos, e quem o quiser esta convidado a analisá-los .

É inquestionável que os animais, como nós e os insetos, têm satisfação em satisfazer a carne, extremos afetos. Mas por um motivo ou outro, um deus ou outro, têm medo. É o caso da presente barata. Conhecemos animais, além dos humanos, que degustam com prazer certos fumos e bebidas. Nossa amiga tinha certa queda pelos faros alcoólicos, mas temia a vida. Talvez já tivesse presenciado companheiras se perderem, sem saber que era ela que se perdia . Passou toda sua insética vida a desejar, sem coragem de realizar.

Perdida em insana moral
Reprime o casto desejar
Mortal eterno o seu pesar
Vendida a objetiva razão imoral

O eminente desejo e, além disso , a profunda certeza de que isto a ninguém faria mal, plantou a dúvida no coração da barata. Afinal, qual mal haveria? Era controlada, não se excederia. Sua primeira tentativa foi frustrada. No momento de se banhar na cerveja em minha casa derramada, avistou conhecida a perambular nefasta. Faltou-lhe coragem, o que iriam pensar? Como poderia os restos podres socialmente degustar, sentindo no ar o imbecil desprezo? Não, desta vez não.

O incidente somente serviu para fazer borbulhar em conflitos a minúscula mente. Sentiu que sua encrustada carne estava certa. Porém, não queria arriscar. Pareceu mais prudente na solidão experimentar, para então se entregar ou abandonar, sem risco de em vão sofrer mal falar. Tinha tudo planejado. Quando algo de grande porte alimentar distrair as outras, disfarçada e minuciosamente farejaria seu objeto de desejo. Uma bela noite, ao sair, não percebi que o saco de lixo que carregava estava rasgado e que, ao jogá-lo no latão, uma grande quantidade de comida se precipitou no chão, quando o saco rebateu na beirada do latão. Não deve muito Ter demorado para que o faminto conglomerado pelos fétidos restos tivesse lutado. Era a chance perfeita, até porque eu já tinha saído um pouco ébrio e provável era algum resquício alcoólico Ter-se precipitado no chão. E lá foi nossa heroína discretamente se esguiar pelas frestas, e dentro da casa chegar. Completamente sozinha. Totalmente à vontade para fazer o que sempre quis e nunca achou que pode.

E começa a busca.
A mesa da sala, é claro, taças à vista!
Vazias, secas.
A cozinha...garrafas!
Mais secas e vazias.

Para piorar, seu olfato lhe traia, o que afirmo porque logo ela avistaria...um copo cheio!, com espumante dourada essência a borbulhar celestemente em material cosmos.

Era a tão esperada chance.

Imagino que tenha ficado perplexa por um instante, ainda sem acreditar no que via. Quando estava para se lançar em furiosa badalada, ouve a porta se abrir. Eu havia esquecido minha carteira. E agora? Era bem provável que entrasse e saísse sem passar pela cozinha.

Mas a hesitação a traiu.

O tempo que demorei no quarto era mais do que suficiente para realizar seu intento. Chegou a aproximar-se, porém não conseguiu ir até o fim. Era mais prudente esperar que eu saísse, até porque não demonstrara interesse pela cozinha quando entrara. E, com efeito, já ia saindo sem nem olhar o recinto de satisfação alimentícia.

Entretanto, o olfato mais uma vez traíra a barata(ou ela o traiu?): sendo falho para ela, foi abundante para mim.

Percebi no ato o cevado aroma no ar, e ao seu encontro ir não poderia deixar. Foi quando avistei a furiosa balada frustrada rumo ao vão da porta.

Quantos demônios não a devem Ter atormentado. Tão perto...e tão longe. E agora? Se lamentar pelo resto de seus dias? Não, era preferível a morte a viver conscientemente irrealizada a pulsão do fundo do âmago, a vontade profunda do ser. Era impossível continuar a se acomodar, como seria normal. Além do mais, não mais era jovem. Quem sabe não sentia próxima a malfadada morte, a eternidade em remorso, o inferno real do inútil "não-posso", a fazer a alma em angústia vagar pelo infinito. Estava sendo consumida. Precisava alcançar seu sonho aquela melancólica noite.

E partiu, com toda a pura convicção restante no mundo. Nada a impediria. Mesmo que tivesse que derrubar garrafas, fazer possível o dito impossível, ir além das impostas barreiras.

Voltou a minha casa, e de cara avistou uma bela taça feita de pedra são-tomé, com o mais belo liquido que já havia visto. Rubro vinho, estonteante sangue a ferver. Toda a sua vida era subjugada por este único e verdadeiro momento. O problema era simples: como conseguir. Seus movimentos eram muito limitados. Se estivesse com sua subjetiva razão em forma, saberia que aproveitar de todo néctar amado derramado seria perfeito para sua anatomia e vontade.

Mas a opressão a desestabilizara. Já era tremendo o esforço para saber o que queria. A melhor forma de consegui-lo, lhe fugia à mente. Seu pensamento estava dominado pela sedutora cor apenas. De tanto reprimir, agora em nada mais pensava. Foi então que percebeu que tinha asas. Nunca havia se dado conta disso. Perfeito!, deve Ter pensado. Com toda sua transbordante vontade voou em direção ao objeto de adoração. Com toda intensidade mergulhou no onírico lago em nirvana inconsequente. Não sabia usar direito suas - por tanto tempo atrofiadas - asas.

Mas a esta altura não mais importava. A vida não mais importava. Sua alma não mais se calava. Em êxtase se deleitou em sua morte. Estava no céu, não mais lhe importavam as asas que não sabia usar. Se soubesse, poderia em paz aproveitar a verdadeira vida da vontade que há.

O ícaro dos insetos faleceu, mas conseguiu o que muitos nunca iram conhecer. Encontrou e se deleitou o máximo que pode o seu sol, sua razão e desrazão;embebedou-se no grundlos.

Mais do que isso, descobriu que ela mesma é o sol de seu universo.

Ao imaginado céu não mais peço
Minh' alma encontrou sua razão e desrazão
Seu sol iluminado da mais pura emoção
Inebriado em êxtase da vida me despeço

Assim me pareceu ter pensado a barata, antes de seu regresso.

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