A Garganta da Serpente
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Sentimentos Comuns

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

“O homem que sonha acordado é mais capaz de enxergar a realidade do que aquele que sonha apenas enquanto dorme.”
Edgar Allan Poe

O vento corta o rosto. Cabelos são bagunçados pela velocidade. Capacetes - deixados na parte de trás da moto - testemunham o desrespeito à lei que torna seu uso obrigatório.

Mais leis burladas: faróis vermelhos cruzados, limites de velocidade ultrapassados. Tudo, com certeza, vale à pena; neste momento ela desfruta do prazer, da companhia do rapaz.

Breve, as coisas iriam melhorar ainda mais. Em questão de minutos, ela experimentaria do sonho comum a toda adolescente normal da sua idade. Sonho que alguns tentam reprimir.

A moto parou em frente ao motel. Lá dentro, ela não perdeu tempo e tomou a iniciativa; as amigas vinham dizendo que os rapazes hoje em dia valorizavam mais as meninas que tomavam a iniciativa. Se entregou por completo.

Ela teve um pouco de medo, claro. Receou que ele talvez reagisse mal à sua investida. Os medos dissiparam-se tão logo o rapaz retribuiu ao seu ataque inicial. Reagiu sim, e bem.

Entrelaçaram-se, sentindo o calor do corpo um do outro. Belos corpos da tenra juventude, dos melhores momentos da vida, dos melhores sentimentos comuns a todos.

Sua bela forma feminina parecia reluzir enquanto eles faziam amor, intensamente, várias vezes durante toda a noite.

Aproveitaram cada minuto daquele momento mágico. Valorizaram o alto preço pago pelo quarto. Preço elevado para os seus padrões. Ele, um rapaz que contava com um modesto emprego; ela, uma adolescente que ainda não trabalhava. Deveriam, portanto, aproveitar ao máximo.

A música ruidosa de um antigo disco cheio de riscos e marcas tocava como a desafiar os tempos modernos da era digital. Uma televisão fora do ar emitia luzes e ruídos indefinidos denunciando a hora adiantada.

Isso era o que ficava fora do banheiro onde ela estava. Lentamente, retirou a mão do meio das pernas quando terminou de gozar e encerraram-se as sensações. As imagens do ritual de amor ficavam cada vez mais distantes...

Cessara o vento cortante na moto. Cessara a dança prazerosa no quarto. Sumira o rapaz imaginário. Esvanecera a improvisação mental daquela noite.

Ela permaneceu solitariamente sentada por mais alguns minutos. Os sons desafinados vindos do quarto ainda preenchiam o pequeno ambiente.

Ninguém jamais imaginaria seu esforço mental para visualizar todas aquelas cenas, aquela história que embalava os movimentos frenéticos no banheiro. Será que as pessoas próximas a ela reagiriam bem se descobrissem esses atos cometidos por alguém com todas as deficiências que ela tinha?

Depois de se masturbar, sentir culpa era algo constante. Contrariamente às outras vezes, porém, aquela noite havia sido diferente. O rapaz imaginado parecia tão real, e a situação criada tão boa, que tudo aquilo não parecia vir de uma pessoa como ela. Se era capaz de imaginar aqueles momentos, poderia escrever, cantar, pintar, enfim, expressar todas as coisas prazerosas que a vida de pessoas normais proporciona.

Alguns sons, no entanto, ecoavam violentamente em sua mente, fazendo com que ela relembrasse as cruéis palavras recentes que ouvira...

Levantou-se, limpou-se e foi para o quarto ainda despida. Lá, um grande espelho refletia o corpo flácido, sem força. A barriga traçava um desenho absurdo, o gogó desafiava as leis da física, os cabelos pareciam uma afronta e os olhos... sem luz, sem expressão...

Encontrou no guarda-roupa a mochila do irmão. Irmão... ele estava desaparecido já há algum tempo. O tio tentara achá-lo sem êxito, percorrera inúmeros lugares sem obter nenhuma pista. O tio? Era o mesmo que falara para aquela estranha... Esta é Helena...

Abriu a mochila, retirou o canivete. Pressionou a mola que automaticamente acionou a lâmina. Estava pronta para as mudanças a fazer.

Primeiro, um naco de cabelo foi arrancado... Esta é Helena, a irmã de criação dele...; em seguida, despachou para o lixo as sobrancelhas e algumas unhas... Ela tem problemas mentais...; por fim, esticou o pescoço tanto quanto pôde e encostou a lâmina... Não sabemos que tipo de problema ela tem, a família nunca teve muito dinheiro para médicos...

Dois líquidos diferentes escorreram pelo corpo: uma lágrima e um filete de sangue... Só sabemos que ela...

Respirou fundo. Os ruídos da televisão e da velha vitrola pareciam implorar para que reconsiderasse... Só sabemos que ela não tem consideração pelos outros... não consegue ter um sentimento comum como...

Às últimas lembranças das palavras pronunciadas pelo tio, Helena desistiu e afastou o canivete da garganta. Iniciou um choro em cascata, violento, amargurado, arrependido... Sentia-se menos mulher agora. Fracassara a tentativa de mudar o corpo pela mutilação, mas as cenas anteriores, imaginadas no banheiro, haviam triunfado.

Era capaz de sentir, ao menos àquelas vezes, sentimentos comuns... os mesmos da adolescente normal que nunca fora, ou do padrão de mulher que nunca seria.

Provaria para o tio tudo de que era capaz, se ao menos conseguisse demonstrar a ele as coisas que conseguia imaginar. No entanto, tudo estava encerrado, o corpo machucado e a mente voltara à confusão de sempre - estado impróprio para divagações.

Desligou os aparelhos, guardou o canivete e deitou-se lentamente na cama, entregando-se ao cansaço e a um sono sem sonhos ou sentimentos comuns.

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