"Agora, mais do que nunca, eu preciso dos perdedores
do meu lado...Preciso dos que anseiam por justiça e dos desesperançados.
Preciso dos famintos e dos enfermos. Preciso dos meus fantasmas de sempre.
Porque eu não quero nada sem estar com eles."
(Plínio
Marcos)
A velha hesitava em pegar a garrafa da prateleira no pequeno mercadinho do
Brás. Talvez estivesse com vergonha, talvez fosse o nervoso que sentia
pela humilhação passada recentemente... Como pude sê
tão idiota? E logo numa faculdade, cheio de gente chique. Que vergonha!
Como pude ir lá sem nem sabê lê ou falá direito?
Uma queimação no estômago a atacou. A dor forte que tomou
conta do seu ventre produziu um calor que a fez suar e perder momentaneamente
o controle dos movimentos.
Não havia mais tempo para hesitações. Pegou a garrafa de
51, deu alguns passos para trás e, sem querer, esbarrou num jovem que
tentava alcançar um vinho, também na mesma prateleira.
- Desculpe, moço.
- Foi nada não, tia.
Recobrando-se, ela se afastou até um ponto da loja que não permitia
que ele visse o que pretendia fazer. Então, a velha percorreu com os
olhos toda a superfície da 51 à procura da etiqueta. Achando,
arrancou-a com cuidado, amassou e jogou fora. Voltou então até
o rapaz que já estava indo embora:
- Moço, moço, você pode vê quanto custa pra mim? Tô
sem meus óculos e não consigo enxergar o preço.
Ele pegou a garrafa e procurou a etiqueta.
- Peraí, tia, esta aqui tá sem preço, deixa eu pegar outra
- respondeu, já sacando outra 51 da prateleira. - Tá aí,
tia, esta aqui tá com preço, custa três reais.
- Obrigada, filho.
Em seguida, andou rápido para o caixa, mas quando já estava perto,
diminuiu o passo ao ver duas senhoras conversando na fila. Uma delas levava
pela mão uma criança que, a julgar pela diferença de idade,
devia ser sua neta. Elas empurravam carrinhos abarrotados de compras. Conversavam
animadamente:
- Não digo para a senhora, dona Mercedes, que esse governo não
tá nem aí pra gente? Antes nós levávamos mais de
um carrinho desses aqui ó!
- É verdade, dona Dalva, nós não podemos ter mais nada
mesmo, nem uma geladeira cheia no fim de semana quando as filhas vêm visitar
a gente, né mesmo?
A velha da garrafa de 51 ficou estática, mais parecia um espectro dentro
do mercado. As duas amigas continuavam a conversa. Breve, após dois ou
três fregueses, chegaria a vez de dona Dalva passar suas compras.
Havia tempo suficiente para as amigas denunciarem ainda mais suas indignações
frente aos rumos do país. A neta da dona Dalva puxava impacientemente
a manga da blusa da avó e implorava:
- Vó, vó, vó, leva mais um doce, vó, leva só
mais um, vó!
- Fica quieta, menina, não te disse que a vovó não pode
levar mais nada. Veja só, dona Mercedes, não disse pra a senhora
que a coisa tá brava pra gente que é da classe média?
- É sim, dona Dalva, é sempre a gente, sempre a classe média
que paga a conta. Pobre? Pobre tá acostumado a não ter nada nunca,
nem sente falta. Não é que nem a gente que vai fazendo corte,
fazendo corte todo mês. Vai cortando, cortando, ficando cada vez com menos.
A velha da garrafa de 51 parecia agora um desses monumentos urbanos que as pessoas
nem notam mais. Ela poderia ficar ali o resto do dia que ninguém lhe
daria importância.
Mesmo assim, achou melhor voltar até a prateleira de bebidas, colocar
silenciosamente a garrafa em seu lugar e sair dali o mais rápido possível.
***
Deus, como fui besta! Como pude ir lá na faculdade? Um lugar tão
cheio de gente bonita, procurá emprego sem podê lê ou escrevê...
E a Marisa... como vou falá pra ela o que aconteceu? Ela bem que avisou.
Minha filha sempre tem razão, mas eu teimei, teimei e fui lá...
Recordações oprimiam a velha enquanto andava pela rua ...Sim,
senhora. Estamos precisando sim. Precisando de alguém para trabalhar
no atendimento do balcão, só um minuto que eu vou pegar a ficha.
Deixara de levar a 51, talvez por vergonha de comprar pinga na frente de todas
aquelas pessoas. Talvez por vergonha de adquirir algo tão revelador de
seus hábitos na frente daquela criança, na frente das desconhecidas
dona Dalva e dona Mercedes, ou na frente de quem quer que estivesse por lá.
...Senhora, me desculpe, mas para trabalhar aqui tem que saber ler, escrever
e fazer conta.
Mais recordações da vergonha passada recentemente a amarguravam.
Ela deixara a garrafa e saíra do mercadinho, porém, não
abandonara a ideia inicial de comprar a 51. Iria atrás da bebida.
Sim, acharia um lugar mais fácil para comprar a cachaça, mais
discreto...
***
Com uma rápida passada de olhos era possível ver todo o espaço
do pequeno bar, próximo a Celso Garcia. Ao balcão, alguns clientes
tomando cerveja, do lado direito do caixa, algumas mesas e numa delas encontrava-se
um homem de mais ou menos trinta e cinco anos. Ele tinha um rosto vago, um ar
inexpressivo. Fumava, bebia cerveja e observava tudo serenamente.
Do lado oposto, encontravam-se mais algumas mesinhas, quase todas vazias. Em
uma delas estava uma senhora. Ela bebia de uma garrafa de 51, comprada ali mesmo.
Encheu um copo americano e depois começou a tentar enfiar a garrafa dentro
da bolsa.
A tarefa de guardar o litro não era das mais fáceis. Parecia não
haver espaço suficiente dentro da bolsa. Alguns objetos foram retirados
e, de repente, um pequeno bolo de papéis esparramou-se pela mesa.
Imediatamente a velha começou a recolhê-los. Alguns deles eram
recortes de jornais. Enquanto juntava as coisas, sem querer, visualizou um recorte
especial para ela. Ficou quieta por um razoável espaço de tempo,
apenas observando a foto do jornal. Ahh, se eu soubesse lê... Após
um longo intervalo, ela enfiou novamente os papéis dentro da bolsa.
Enquanto remanejava os itens, o homem de rosto inexpressivo, que a tudo acompanhava,
bebeu o resto da cerveja, se levantou e foi para a mesa da velha que, enfim,
terminava a arrumação e tomava uma generosa quantidade de cachaça.
Ele chegou-se até ela e disse:
- Posso me sentar com a senhora?
A velha, devido aos goles da bebida, tonta e desnorteada, restringiu-se a balançar
a cabeça em sinal de aprovação. O homem sentou-se ao seu
lado.
Neste momento entraram algumas pessoas no bar. Eram três homens que vestiam
uniformes e carregavam capacetes.
- São todos peões de obra - comentou o homem de rosto inexpressivo
à velha; ela nada respondeu.
Os três peões encostaram-se no balcão. Uma moça toda
solícita veio atendê-los.
- Que vai tomar hoje? - perguntou a um dos peões.
Enquanto isso, o homem de rosto inexpressivo falou novamente:
- Veja aquele do meio, aquele com quem a moça do bar falou. Ele vem aqui
todos os dias com os mesmos amigos e sempre pede uma pinga.
O peão, coçando o nariz, dirigiu-se à moça:
- Vou tomar... vergonha na cara! - respondeu dando em seguida uma gargalhada.
Os outros amigos também riram, a moça do bar divertia-se e o homem
de rosto inexpressivo continuou:
- A garota vai pregar uma peça nele, veja só. Ela já havia
combinado com os amigos dele, já tinha pensado em tudo. Este peão
todo dia toma uma pinga aqui. Hoje ele disse que vai tomar vergonha na cara
em vez de pinga. Ele sempre fala isso.
Os amigos do peão da pinga queriam rir, mas se seguraram. Sem que ele
visse, a moça do bar encheu um copo americano com água da torneira
e deu para ele. Quando começou a beber, não notou a falta do cheiro
de álcool. Então, franziu a testa, caminhou para fora do boteco,
esticou o pescoço e cuspiu parte da água na rua. Reclamou:
- Merda, tá pensando que eu tô doente? Que não posso mais
beber? Põe aí a minha cachaça, aí ó! Porra!
Todos começaram a rir e, passados alguns segundos, nem mesmo o próprio
peão enganado aguentava mais. Disparou a rir também. O homem
de rosto inexpressivo recomeçou a falar:
- Eles sempre vêm aqui, eu também venho quando posso. A obra onde
eles trabalham fica no final do quarteirão. A diversão deles é
essa... vir aqui quando podem. Nenhum deles gosta do que faz, recebem pouco,
trabalham com raiva do patrão. Um peão morreu no começo
do mês... - fez uma pausa para acender um novo cigarro - Esse da cachaça,
o do meio, então, ele se culpa até hoje por ter causado o acidente.
A empresa ainda não descobriu, mas com certeza descobrirão...
Desde então, ele se tortura por ter causado a morte do amigo... vem aqui
e entope-se de pinga a qualquer hora. Posso imaginar que, a cada dia que ele
sobe na obra, fica rezando para que um outro acidente o mate também.
É esta a situação. São esses alguns dos desgarrados
do bairro.
Os três amigos pediam agora uma cerveja. O peão da pinga pediu
mais uma dose, desta vez tomou o cuidado de pedir uma água que passarinho
não bebe.
- Não sei por que venho aqui, só sei que as pessoas acham estranho
eu conversar tanto com estes desgraçados e saber tanta coisa assim. Tenho
um amigo, uma pessoa boa e de bom coração, que sempre me questiona
por que gasto meu tempo pensando e me preocupando com essas pessoas sem luz,
sem estrela. Às vezes, nem mesmo sei o motivo por que faço isso...
Geralmente quando ele me pergunta esses assuntos eu sorrio e desconverso.
Os peões continuavam, animadamente, o papo no balcão do bar.
- Às vezes eu me sinto um tolo por gastar tanto tempo pensando nessas
pessoas. Esse meu amigo, o que eu falei, me ridiculariza por isso. Ele reduz
tudo o que eu sinto a perguntas banais: Por quê você faz isso?
Pensa que é um intelectual?
A velha bebeu um pouco mais do copo, o homem de rosto inexpressivo apagou a
bituca e imediatamente acendeu outro cigarro.
- Imitando o mesmo jeitão desse meu amigo, eu respondo que... não
sei por que faço isso... Eu tentei diversas vezes esquecê-los,
me virar, ganhar minha vida da melhor forma possível. Cheguei até
a conseguir esquecer esses miseráveis por alguns dias... Quando faço
isso, meu coração é tomado por uma tristeza tão
grande...
A fumaça do cigarro subia formando espirais entre ele e a velha. O ambiente
tornava-se cada vez mais pesado. A porta do banheiro abriu-se e um homem saiu
de lá. Saiu do banheiro também um cheiro de imundície,
lixo em decomposição e álcool. O trinômio de cheiros
invadiu a mesa e misturou-se à fumaça do cigarro do homem de rosto
inexpressivo, tornando o local sinistro.
- Às vezes eu sinto tanta dor, tanto vazio... Às vezes eu não
sei explicar por que... os amo... tanto...
Ao ouvir essas últimas palavras, a velha pareceu despertar da sua catatonia.
Murmurou:
- E...eu queria tanto que eles estivesse aqui... vivos. Eles era tão
inteligente, falava umas palavra tão bonita, sabia dizer coisas bacanas...
- disse a velha enquanto tremia tentando levar o copo mais uma vez à
boca.
Por fim, desesperou e bebeu o resto de uma tacada só. Então, ela
abaixou o rosto entre as mãos e começou a chorar:
- Deus, como eu queria que eles estivesse aqui...
***
O corpo inteiro tremia enquanto, em um beco pequeno e malcheiroso, tentava passar
o conteúdo que restava da 51 para a garrafinha de água que adquirira
no boteco, minutos antes de sair de lá... Deus, como eu queria que
eles estivesse aqui...
Sim, ela queria que eles estivessem aqui. Aqui e vivos. Também queria
que todas aquelas crianças também estivessem vivas agora. Todas
aquelas que, um pouco antes do ano de euforia e glória, foram eliminadas.
Por quê? Por que fui lá? Por que não fui dá atenção
ao que Marisa me disse?
- Mãe, esta lanchonete aqui da faculdade, esta que fica perto da xerox,
então, ela tá precisando de pessoa para trabalhá.
- Marisa, seria bom trabalhá aqui, a gente voltava junto para casa todo
dia e...
- Não, mãe, pensando melhor, não... acho que eles querem
que...
- Eles não querem que a pessoa seja parente de quem trabalha na faculdade
também, né?
- Não, não é isso, mãe, é que...
Memórias... torturas, sofrimentos, perdas, humilhações,
lembranças do ano de euforia e glória.
A garrafa de 51 estava quase pela metade quando saiu do bar. Terminava agora
de colocar o restante na garrafinha de água. Decidira fazer isso para
disfarçar e poder beber sem chamar a atenção das pessoas
na rua enquanto andasse.
Olhou para o objeto simples e inofensivo, mas que continha o veneno daquele
dia, o combustível que a faria sair a esmo pela cidade.
- Eu sei, Marisa, você tem medo que sua mãe beba de novo, não
é?
- Não é isso, mãe, é que...
- Tem medo que eu apronte se trabalhá aqui, tem vergonha das suas amiga
se elas vê sua mãe bêbada. Mas fica sabendo que faz mais
de mês que num ponho nada de pinga na boca e...
- Fala baixo, mãe, a gente tá conversando entre nós, não
com todo mundo.
- Tá, tá, desculpa. Mas fica sabendo que num bebo mais, que...
- Mãe, não é isso, é que... acho que... tem que...
saber ler para trabalhar aqui, e...
A velha andava desnorteada pelas avenidas, vielas, ruas; as memórias
retornavam a ela com força.
Eram agora, além das recordações recentes, outros fatos
que afloravam. As lembranças da perda familiar, da perda dos amigos que
ela tanto queria que estivessem aqui e do... ano de euforia e glória...
***
O país estava em um ano de euforia e glória. Após a filha
sair para o trabalho, dona Joana ficava arrumando a casa, sempre de olho nas
notícias daquele período que prometia ser triunfal. Acompanhava
tudo pelas ondas transmitidas pelo rádio ou pela televisão, únicas
companheiras na solidão daquelas tardes.
Na cozinha, ela arrumava as coisas e, quando tinha a certeza de que a filha
não voltaria por um tempo, sacava da garrafa que mantinha escondida atrás
das latas e conservas. Bebia, então.
Ingeria uma dose quando animada, duas quando triste, três quando se desesperava
comparando o ano de euforia e glória aos fatos recentes da sua vida.
Era um ano de euforia e glória e as expectativas realizavam-se. O país
sagrara-se campeão mundial. Mas o ano de euforia e glória também
era o ano do primeiro aniversário dos fatos que a traumatizaram, os fatos
que a muitos horrorizaram. E houve quem tivesse achado boas todas aquelas coisas.
Sim, houve quem tivesse achado bom todas aquelas crianças - boas ou más
-, com seus sonhos e infernos particulares, gostando ou não de futebol,
gostando ou não de suas famílias, terem suas vidas encerradas.
Deus, e o Betinho... lá... estendido... todo encharcado de sangue...
Essa era a recordação que arremessava dona Joana para a quarta
dose, para o território perigoso da perda do juízo, para o estado
que provocava a maior parte das brigas quando Marisa voltava do emprego:
- Porra, mãe, bebeu de novo?
- É que... que... o Betinho, filha...
- O Betinho quê, mãe? Quê? Quê? Será que mesmo
morto o meu irmão tem que ser motivo pra senhora beber? E os amigos da
ONG, a morte deles também é motivo pra senhora encher a cara?
Passara-se um ano desde aqueles fatos terríveis e a sociedade parecia
esquecer facilmente das coisas que a ferem. A história prossegue, os
arquivos policiais crescem e a memória turva-se.
Mas uma terra violenta sempre pode parir novos filhos. Filhos do ódio
para incomodar. Então, foi o que aconteceu. Alberto e Edgar, pai e filho
negros vindos de uma ONG de direitos civis, começaram a investigar, a
realizar a grande empreitada de suas vidas efêmeras.
Tiveram de ir até a casa de dona Joana, travar contato, tomar depoimentos.
Acabaram se tornando grandes amigos. Marisa foi a primeira a admirar a inteligência
daqueles pai e filho tão empenhados em descobrir e levar à justiça
aqueles que haviam matado Betinho e todas as outras crianças um ano antes.
Sempre que Alberto e Edgar apareciam, era uma alegria, uma esperança.
Certa vez eles vieram e trouxeram um gato para dar de presente a elas.
- Esse gato tem... deixa ver... cara de Mário. Sim, Mário. Esse
será o nome do bicho.
- Sei não, Marisa, ele tá mais com cara de Osvaldo, Henrique,
sei lá...
- O bicho é bonito, né, mãe? O seu Alberto e o Edgar disseram
que era de uma das vítimas, agora é nosso. Vai se chamar Henrique,
então.
- Como é mesmo o nome daquele negócio que eles faz parte Marisa?
- ONG, mãe.
- Oooo... o que, filha?
- Uma ongue, mãe, é assim que se fala.
***
Uma investigação, pai e filho inconformados com a impunidade.
A impunidade que não era digna dos jornais campeões de vendas.
O fim das vidas, o fim dos homens, o fim dos nossos homens. Eles, pai e filho
negros, estavam indo longe demais, como as mães de Acari ou como as mães
da Praça de Maio um dia foram. Seria fácil contorná-los,
eliminá-los, esquecê-los em época de euforia e glória.
Vieram então os tiros. Doze em cada. Poderiam ter sido dois, um bem certeiro
em cada, Alberto e Edgar. Teria sido mais elegante e menos cruel. Mas elegância
não existe para os algozes, os executores; e crueldade gera medo, que
por sua vez produz silêncio.
- Marisa, agora eles também tão morto, Marisa, meu Deus...
- Calma, mãe, eu também... eu também tô chocada,
ohhhhh! Meu Deus, meu Deus, meu Deus...
***
Era época de euforia e glória, no atraso de anos. Os negros, pobres
e analfabetos, esses sim, também estavam no atraso. Mas não no
atraso de anos, e sim no atraso de vidas inteiras, na ausência de justiça.
Não seria uma Copa do Mundo que reabilitaria os menos favorecidos pela
sociedade, mas o resgate de suas dignidades.
Aos vencedores, os troféus e medalhas; aos heróis, pequenas notas
de jornal. Aos vencedores, a calorosa recepção; aos heróis,
os doze tiros e as vielas molhadas da grande cidade - no atraso de suas existências
e na ausência de justiça.
Mas como a vida continua, nada mais correto do que recolher seus corpos. E como
era época de euforia e glória, seria fácil esquecê-los.
***
Na solidão daquelas tardes, ondas transmitidas pelo rádio embalavam
a viagem embriagadora de dona Joana enquanto arrumava a casa prevendo a briga
com a filha que voltaria à noite do serviço.
- Marisa, depois da morte deles a tal da ongue disse que seria melhor se a gente
se mudasse pra outra cidade. Foi o que a gente fez, filha, mas sua mãe
precisa trabalhá. Num aguento mais vê você se matando
naquela xerox da faculdade. Filha, aquilo num dá não.
- Eu sei mãe, mas se eu voltar a estudar, eu acho que...
- Voltar a estudar como filha? Como? Como se o que você ganha mal dá
pra gente pagá as dívida? São Paulo é muito grande,
não tô nem te vendo direito mais e...
***
Ano de euforia e glória. Amanheceria após as atrocidades ocorridas.
Amanheceria e os campeões retornariam milionários. A eles, os
troféus e as medalhas. Aos que bancaram os heróis, aos pobres,
ao pai e ao filho negros que investigavam, os doze tiros. A todos, na vergonha
do silêncio, só restou enterrar os mortos... que se foram... com
o atraso de vidas e com ausência de justiça.
Isso foi há muito tempo, hoje elas estavam estabelecidas em São
Paulo mas os problemas continuavam.
***
Andava a esmo pela cidade recordando-se dessas coisas, garrafa de água,
que disfarçava a cachaça, à mão e lágrimas
nos olhos.
...Sim, senhora. Estamos precisando sim. Precisando de alguém para
trabalhar no atendimento do balcão, só um minuto que eu vou pegar
a ficha.
Uma dose.
...Senhora, me desculpe, mas para trabalhar aqui tem que saber ler, escrever
e fazer conta.
Duas doses.
...tá aí tia, essa aqui tá com preço, custa três
reais.
Três doses.
...pobre tá acostumado a não ter nada nunca, nem sente falta
Quatro doses.
...às vezes eu sinto tanta dor, tanto vazio. Às vezes eu não
sei explicar por que os amo tanto...
Cinco doses.
Dona Joana pegou um ônibus que a levou até o Terminal Carrão,
de lá rumou a pé por um longo tempo. Estava agora em frente ao
portão. Ele era alto, mas estava aberto. Ela não sabia ler, mas
aquele lugar não necessitava de dizeres para ser identificado. Estava
no cemitério, no Cemitério da Vila Formosa.
***
Permitam-me, meus irmãos, tomar a liberdade de alterar as preces que
embalarão nossos amigos mortos, Alberto e Edgar. Mudar meu discurso para
melhor expressar nossa indignação perante a violência, perante
o horror que nos espreita.
A visão que se tem ao entrar no Cemitério da Vila Formosa é
desoladora. Morros inteiros tomadas por cruzes, todas iguais, todas silenciosas,
todos ali... igualados...
Permitam-me, meus irmãos, manifestar aqui a minha dor, o meu luto
pelos que um dia brigaram pela igualdade, pelo reconhecimento dos direitos,
pela diminuição das diferenças, pela extinção
das coisas que nos separam.
Ahhh, como eu queria que eles estivesse aqui... pensava dona Joana enquanto
andava por entre as cruzes, várias delas. Todas sem jazigos perpétuos,
sem ostentação, sem novos significados, todos juntos, todos iguais...
Goles tomados da garrafinha a moviam. Tinha portanto, combustível à
mão.
Permitam-me aqui, meus irmãos, expressar o meu vazio, a minha solidão,
a minha compaixão, o meu sentimento mais caro, mais valioso...
Subversão do espaço... Dona Joana passou esbaforida por três
garotos que empinavam pipas dentro do cemitério.
Permitam-me aqui, meus irmãos, entregar-me à tristeza, ao sofrimento
e assumir uma postura crítica diante da morte, da inutilidade dos nossos
atos, das nossas ações que almejavam ser importantes aos nossos
iguais.
Riqueza tornada pobreza... tudo igual... as cruzes, o solo contaminado do cemitério
e as árvores pouco saudáveis...
Permitam-me aqui, meus irmãos, entregar-me aos mais profundos sentimentos
da melancolia.
Permitam-me aqui, meus irmãos, manifestar a minha insatisfação
para com a espécie humana, para com a raça que mata, tortura,
massacra os seus iguais, os seus melhores homens...
Nos limites da cidade... os cemitérios situam-se nos limites da cidade.
A cidade... esta, por sua vez, avança brutalmente em direção
aos limites... avança, sempre...
Permitam-me aqui, meus irmãos, manifestar a minha impotência
perante tanta atrocidade... Esses nossos amigos mortos, Alberto e Edgar, pai
e filho que investigavam, são mais do que se pode concluir pelas notinhas
de jornal. Eles jamais voltarão da sua viagem interminável...
a cada momento eu os sentirei perto de mim. A cada momento eu os terei perto,
ao alcance do pensamento... a cada momento... a cada instante.
Permitam-me aqui, meus irmãos, rezar a Deus e pedir para ser competente
o suficiente no intuito de falar a vocês que aqui estão, infelizmente,
reunidos pela dor da perda dos nossos melhores homens, dos nossos queridos irmãos.
Lugar de miséria, dos que pouco tiveram quando vivos... Descansam agora,
sob sete palmos de terra e embalados em caixões baratos, apodrecidos...
Permitam-me aqui, meus irmãos, confessar a minha fraqueza, o meu pesar,
o meu fiasco como cidadão. Meus irmãos, hoje, mais do que nunca,
eu desafiaria Deus para um dia elevar nossos amigos aqui mortos... elevá-los,
iluminá-los.
Apodrecendo, os mortos da cidade estão apodrecendo. Dona Joana percorria
os espaços do cemitério, tinha lágrimas nos olhos...
Ela pisou em alimentos usados nos despachos de umbanda, de oferenda. Não
conseguia raciocinar de forma linear, seu corpo estava completamente entorpecido
pelo álcool.
Apesar de embriagada, ela viu algumas pessoas desoladas, comendo restos, comendo
as oferendas, comendo pipocas deixadas nas macumbas.
Desertos imensos delineavam-se frente aos olhos de dona Joana. Mendigos malcheirosos
aproximavam-se dela mostrando dentes apodrecidos e peles avermelhadas pelo álcool.
Lembrou mais uma vez das conversas com a filha:
- Mãe, eu sei que a senhora precisa de ajuda, precisa ouvir algum médico
e...
- É, Marisa... eu devia fazer como aquele padre no dia do enterro deles,
né? Devia assumir meus erros.
Permitam-me aqui, meus irmãos, prestar a minha última homenagem
aos nossos melhores homens. Os seus caixões estão lacrados, lacrados
pela violência, lacrados pela dor. Seremos nós humanos? Seremos
nós justos quando precisarmos ouvir nossos iguais?
O padre silenciou, abaixou a cabeça e, após um razoável
intervalo, voltou a falar. Dessa vez ele leu uma pequena oração.
Os dois caixões lacrados desceram ao solo. Era o fim... Alberto e Edgar
estavam enterrados...
Permitam-me aqui, meus irmãos, confessar-me um inútil, um desesperançado,
um amargurado... Hoje assistimos à morte de nossos irmãos que
nada desejaram além do que qualquer um desejaria: igualdade, justiça,
reconhecimento... Tudo ficou no caminho, meus irmãos.
***
Colinas de dor abraçavam dona Joana. O ar parecia escapar de seus pulmões.
Cansada, acabou por encostar-se numa cruz.
Ao levantar-se e tentar prosseguir no caminho, ela avistou algo diferente. Viu
entre as cruzes azuis e rosas do cemitério, um gato deitado.
- Mãe, o gato que eles deram pra gente sumiu.
- Filha, dizem que gato não fica onde morre gente.
- É, o gato já não estava aqui quando eles morreram.
- Vai ver ele sabia o que ia acontecer.
Dona Joana levantou-se e foi em direção ao gato.
O bicho é bonito, né, mãe? Eles disseram que era de
uma das vítimas, agora é nosso. Vai se chamar Henrique, então.
Ela descuidou-se, tropeçou, caiu para o lado esquerdo e rolou por um
barranco.
O nariz e o joelho começaram a sangrar como uma cachoeira. A garrafinha
espatifou-se e o rosto mergulhou feio no chão podre do cemitério.
Ficou consciente mas imóvel. Iniciou, pela segunda vez, um choro desesperado.
Então, entre soluços, levantou a cabeça para ver o gato
mais uma vez. O que viu então a chocou profundamente.
Limpou-se, levantou-se e certificou-se de que não havia ninguém
por perto. Em seguida, mancou em linha reta até chegar perto do que tinha
avistado. Dona Joana atribuiria as visões que teve às macumbas
que vira no cemitério. No entanto, seu estado era tão miserável
que não concluiu nada. Ela apenas olhou para aquela cena aterrorizante.
Nada, nada no mundo poderia explicar aquela visão. Dona Joana estava
em frente a oito imagens. Oito estátuas. Oito estátuas femininas...
Deus, nesse cemitério nunca teve estátua...
Todas tinham lágrimas nos olhos...
***
Vencendo o medo e a estranheza que sentia, dona Joana foi em direção
às estátuas que se posicionavam umas ao lado das outras, formando
um círculo.
O vento assobiava em seus ouvidos e o ar ao seu redor começou a ficar
gelado, torturando-a. Segurou a respiração e olhou mais uma vez
para a cena a sua frente.
As imagens ainda estavam lá, todas elas. Passou a ouvir um zumbido indecifrável,
estridente e angustiante que a fazia sentir uma sensação de agonia.
Como guiada por uma força externa, entrou no círculo formado pelas
oito imagens femininas. Notou que todas tinham lágrimas nos olhos.
Então, uma emoção diferente apoderou-se dela. Sentiu-se
segura, reconfortada. Escolheu uma das estátuas, fixou o olhar e tocou-a
levemente.
Uma sensação de calor emanou do corpo de pedra, aquecendo dona
Joana até que ela não suportou mais o toque e afastou-se assustada,
quase caindo para trás.
Nesse momento, algo ou alguém parecia falar dentro da sua cabeça.
As estátuas, por sua vez, estavam ligeiramente diferentes, pareciam envoltas
em uma névoa, uma aura.
Passou a ouvir vozes e o corpo não a obedecia mais. Tentava cerrar os
olhos e nada. Tentava abaixar a cabeça e nada. Tentava tampar os ouvidos
e nada. Tentava correr e nada. Tentava encolher-se e nada.
Seu olhar foi guiado lentamente para cada uma das estátuas. Passou a
ouvir vozes dentro da sua mente. A pulsação acelerou quando a
primeira estátua, com lágrimas nos olhos, apresentou-se:
Sou a Coragem. Estou acima do medo e odeio a covardia. Sou amiga dos
heróis, aquela que serve ao bem. Eu acabo, quase sempre, em sacrifício.
Sou distanciada da vaidade, do orgulho. Eu sou a Coragem, não sou igual
àqueles que mataram os seus amigos e o seu filho. Eu estava ao lado deles,
tentando, porque é esta a minha missão, aguentar o medo.
Seus amigos, hoje mortos, precisaram de mim. Precisaram dos meus serviços
para pensar, lutar, reagir e não sofrer mais.
Eu fui ao encontro deles. Fui porque eles sabiam que era preferível sofrer
do que ficarem parados.
Seus amigos precisaram de mim para vencer o medo, para esquecer o sofrimento,
para fazer da vida algo mais do que silêncio.
Por tudo o que eles fizeram, e pelo fim que levaram, tenho lágrimas nos
olhos.
Dona Joana teve seu olhar redirecionado para a segunda estátua cujos
olhos tinham lágrimas:
Justiça. Esse é meu nome. Sou a liberdade dos outros,
não pertenço a ninguém mas estou à disposição
de todos. Sou a igualdade entre as pessoas. Me junto à força,
mas a força sem a minha ajuda é muito ruim. Ruim assim como a
execução dos seus amigos e do seu filho. Seus amigos brigaram
para me levar até as famílias de todas aquelas crianças
mortas.
Na minha falta, quem ganha é o ódio, o sangue, a morte e a dor.
Porque não pude ser levada pelos seus amigos até as pessoas que
eles queriam defender, tenho lágrimas nos olhos.
O corpo de dona Joana permanecia petrificado diante das imagens. Era a vez da
terceira delas apresentar-se, mais uma vez notava-se que tinha lágrimas
nos olhos:
Chame-me de Generosidade. Muitos podem viver sem minha presença,
mas quando me faço existir nos corações das pessoas, levo-os
em direção aos outros, aos semelhantes, a nós mesmos quando
estamos livres do egoísmo.
Aqueles que você tanto queria que estivessem aqui se juntaram a mim e
à minha irmã Justiça; buscaram a bela Compaixão,
que está ao nosso lado; envolveram-se com a Misericórdia e ajudaram
a senhora e a sua filha, Marisa, com toda bondade.
Pelo amor e saudade daqueles que se foram sem que eu tivesse ido ao seu encontro,
tenho agora lágrimas nos olhos.
A estátua seguinte, emendou o diálogo:
Crueldade. Sim, crueldade tem sido tudo que a senhora tem passado. A crueldade
da perda do seu filho e dos seus amigos; a crueldade de lugares em que não
se adapta mais; a crueldade de pessoas que não estão preparadas
para aceitá-la; a crueldade de gente que só quer distância
porque, para eles, a senhora é um lixo.
Eu sou a Compaixão, o contrário de tudo isso. O contrário
da indiferença. Eu sou o sentir, o lugar do outro. Estou entre o que
sofre e o que entende o que é sofrer.
Meu nome é Compaixão, mas também me chamam de ...
Respeito. Estou do lado dos que mais necessitam, sou igual a eles e nada quero
caso seja afastada. Sou a Compaixão e sei que a senhora me compreende.
Pelos seus desejos, pelo carinho e pelas coisas tristes que a senhora sente
hoje, tenho lágrimas nos olhos.
Os braços de pedra da Compaixão pareciam gesticular e dirigir-se
à próxima estátua, que também tinha os olhos marejados
de lágrimas. Ela falou:
Sou Misericórdia. Estou acima do ressentimento, do ódio
que os assassinos do seu filho e dos seus amigos tiveram. Minha missão
é vencer o desejo de vingança ou a punição exagerada.
Não é minha função impedir o combate, mas cessar
o ódio, permitindo, portanto, que a irmã Justiça chegue
perto das pessoas.
O ódio é a tristeza, e, por isso hoje, tenho lágrimas nos
olhos.
A sequência de imagens de pedra estava quase completa. A próxima
era singela, mas não menos bela. Sua voz parecia fraca e embargada pelas
lágrimas, mas ao mesmo tempo era doce:
Acrescento sentimentos à minha irmã Misericórdia. Somos
bem unidas. Sou Humildade e não tenho sido entendida direito.
Me confundem com um espírito pequeno, com a falta de consideração
com as pessoas e consigo mesmo. Não sou o remorso, não sou a consciência
pesada, não sou a vergonha.
Sinto-me tão perto da senhora, sinto sua tristeza, e por isso tenho lágrimas
nos olhos.
A penúltima estátua, chorosa, falou na mente de dona Joana:
Difícil será me fazer compreender neste momento de dor que
a senhora está passando. Difícil, mas importante, é aguentar
o sofrimento dos outros, a injustiça, o horror, a indiferença.
Sou a Tolerância, sou contra o fanatismo.
Sei que é duro para a senhora falar sobre tolerar quando os assassinos
e as coisas que eles cometeram ainda estão vivos na sua memória.
Sei da dor, da solidão e dos vícios que estão maltratando
a senhora.
Por tudo isso, hoje tenho lágrimas nos olhos.
Era a vez da última imagem, a mais imponente de todas. Sua beleza e altivez
não pareciam abaladas pelas lágrimas que tinha nos olhos. Com
orgulho, disse:
Sou quem comanda, não quem obedece.
Sou a vida rodeada pela morte.
Sou um sentimento que nem a morte pode eliminar.
Neste momento, o corpo de dona Joana foi ficando mais solto. Sentiu medo. O
coração acelerou ainda mais, a vista começou a arder e
voltou a sentir o vento frio do ambiente a seu redor.
Sou ansiosa num instante.
Sou calma em outro.
Sou incondicional, e a senhora sabe disso.
- Porra, mãe, não disse para a senhora não vir aqui de
novo. Qué fazê eu passá vergonha na frente dos amigos? -
soou pelos campos do cemitério, interrompendo o transe de dona Joana.
- Be... Betinho??? - chamou, saindo da rigidez e virando-se em direção
àquela voz.
Alguns metros adiante, viu a figura do filho. Ele recomeçou a falar efusivamente:
- Caralho mãe! Vai andando, vai andando, depois a gente conversa.
Desesperada, mancou o mais rápido que pôde, aproximou-se do filho
e o abraçou com força.
- Betinho, meu Deus, que bom, que bom! - disse, enquanto encostava a cabeça
do filho ao peito.
A última estátua, que a tudo observava, tornou:
Sou incondicional, como o sentimento que algumas mães têm pelos
filhos.
Ela ficou abraçada a Betinho até o momento em que sentiu uma sensação
de frio e um cheiro de carne podre emanar dos braços. Em questão
de segundos, um enxame de moscas a rodearam. Horrorizada, gritou. Betinho recobrou-se
e falou:
- Poooooorr-a-a mã-e-e, nã-u-m dis-se qu-e nã-u-m e-ra
par-a a senh-ora vir aqu-i ma-is...
A voz foi ficando mais distorcida e irreconhecível. Os olhos encheram-se
de um grosso e espesso líquido rubro que começou a vazar e escorrer
pela face. Ele tentava falar mas da sua boca só saíam vermes que
rastejavam e caiam às centenas no chão.
Betinho abaixou a cabeça e dona Joana viu na nuca dele dois imensos buracos
de onde saiam fumaça e muito sangue.
Ia desfalecer. Mais uma vez seu corpo pareceu tomado por uma energia que a imobilizou
e a fez voltar-se para a última estátua.
Sou, como disse, parecida com a sensação que uma mãe
tem pelo filho.
Sou forte. Nem raiva, nem tristeza, nem vazio podem me derrubar.
A força que prendia o corpo de dona Joana começou a diminuir.
Voltou a sentir-se mais relaxada e foi aos poucos sendo abaixada até
o chão. Na posição em que ficou não podia mais ver
a estátua, ainda assim a ouvia.
Sou quem brilha na falta de alguém.
Sou difícil, sei, mas a senhora me entende.
Acompanho minhas irmãs que vieram aqui hoje, apesar de saber que sempre
estivemos ao seu lado e daqueles que a senhora queria que estivessem aqui hoje.
Sempre estive perto, nem sua dor ou lágrimas que hoje derramo podem me
afastar de você. Sou...
Amor.
***
- Senhora! Senhora! Tá tudo bem?
- Be... Betinho, sua mãe vai levá você pra casa, filho...
eu...
- Senhora, vem comigo, por favor, a senhora não pode ficar aqui, escurece
rápido nessa época do ano.
- Vâmo, filho, já disse pra você num ficá na rua com
esses meninos.
O funcionário do cemitério, todo desajeitado, tentou apoiar dona
Joana e conduzi-la para a saída:
- Senhora, deixa eu ajudar a senhora. Venha, pego a sua bolsa.
Começaram a andar lentamente. Para acalmá-la, tentava puxar assunto:
- O joelho da senhora tá sangrando. Vamos até a Administração
para fazer um curativo.
Vendo o machucado, ela murmurou:
- Ele tá morto... A cabeça dele tinha sangue, igual ao meu joelho.
Não, meu Deus! Ele tá morto, eu sei!
- Quem senhora? Quem está morto? - implorava, inutilmente, enquanto dona
Joana desvencilhava-se dos seus braços e caía mais uma vez chorando.
- Senhora, vamos, eu ajudo a senhora, se levanta por favor.
- Be... Betinho, eu disse pra você, filho, disse pra voltá pra
casa... Sua irmã tá sentindo sua falta. Betinho...
Ele já não sabia mais como ajudar; entre soluços, ela continuava
a dizer palavras estranhas:
- O... onde elas estão? Onde?
- Elas quem, senhora?
Levantou-se e procurou em vão pelas estátuas. Tudo o que podia
ver eram cruzes azuis e rosas.
- Elas tavam aqui, bem aqui.
Não havia sinal delas, mas dona Joana viu novamente aquele que tinha
ocasionado o seu tombo no cemitério.
- O... gato, é ele, Marisa! O gato que eles deram pra gente... tá
lá Marisa, tá lá!
Andava com dificuldade na direção do gato que, novamente, via
deitado entre as cruzes do cemitério.
- Se... senhora, não... a senhora pode se machucar.
Alcançando-o, ela abaixou-se até a altura do gato. O funcionário
do cemitério não conseguiu impedir que ela tocasse no animal.
Um grito agudo e triste ecoou pelo cemitério enquanto dona Joana erguia-se
com o animal nas mãos. Ele olhou enojado para a cena.
Nas mãos dela, o gato inerte. Os olhos pareciam fixar-se em um ponto
qualquer perdido no espaço. Chocado, o funcionário do cemitério
deixou escapar:
- Puta que pariu!
Da boca do gato morto, formigas; da barriga aberta, tripas; do pêlo surrado,
feridas.
Dona Joana, contendo lentamente o choro, abaixou-se e colocou-o no chão;
passou a mão nos olhos dele.
O cemitério retornou ao seu silêncio habitual e o funcionário
aproximou-se dela para tentar confortá-la:
- Senhora, ele está morto, não há nada para se fazer aqui.
A gente enterra ele depois e...
- E... eu queria... queria tanto... que eles estivesse aqui... - disse, entre
soluços, enquanto abria a bolsa, retirava o recorte de jornal e entregava
a ele.
O homem desdobrou o papel e viu a manchete amarelada:
Pai e filho são mortos com doze tiros
Líderes da ONG que investigavam chacina de crianças são
mortos brutalmente...
Leu o recorte e compreendeu parte do que dona Joana quis dizer:
- Senhora, essas pessoas não estão enterradas aqui. Elas morreram
faz tempo e nem foi nessa cidade. Venha, por favor.
Aceitando o apoio, dirigiram-se para a saída. Olhou mais uma vez para
o campo onde tinha visto as estátuas. Não havia nenhum sinal delas
por lá. Dona Joana deixou escapar fracamente:
- Onde eu vou... e o que vou fazê?
- O que senhora?
- Onde eu vou... e o que vou fazê?
Recordou mais uma vez o dia em que Alberto e Edgar foram sepultados. Os enterros
não costumam mais ser acompanhados por sermões religiosos, porém,
naquela ocasião, o padre - amigo de todos - fez questão de discursar.
Assim que a cerimônia acabou, dona Joana e Marisa foram conversar com
ele.
Espero que eles obtenham a paz que tanto procuraram. Espero também
que vocês possam reconstruir as suas vidas longe daqui.
Quando eles vieram até a minha igreja, no meu entender, não passavam
de uns aventureiros, uns idealistas, nada mais. Ao conhecê-los melhor,
vi que eram muito mais do que isso. Com o tempo, eu descobri que eram homens
muito virtuosos. Então viramos amigos.
Eu também sou um pouco culpado pela morte deles. Eu os incentivei a levar
o processo até as últimas. Quis que eles fizessem tudo dentro
da lei, confiei na justiça, confiei em valores, confiei cegamente nas
pessoas. Arrastei Alberto e Edgar para esse fim, assim como pus em risco a vida
de vocês e dos parentes de todas as vítimas do massacre. Meu Deus,
como fui idiota... tem gente dentro da própria polícia envolvida
no que aconteceu com as crianças, com o Betinho, com Alberto e com o
Edgar. Nós mesmos não temos mais segurança de nada. Na
verdade, nem quero mais ter segurança, não quero mais sentir medo.
O medo virou raiva, e eu tenho muita raiva agora. Raiva da situação
em que ficaram as crianças que sobreviveram ao massacre... na mão
do tráfico, na mão da... polícia. Raiva desse sistema judiciário...
Eu maldigo uma série de coisas hoje, Deus sabe que não mereço
mais exercer o sacerdócio. Tudo aquilo de que falei, agora há
pouco no enterro, deixa claro que devo me afastar. Eu não acalmei os
ânimos, trouxe mais ódio, mais revolta às pessoas. Me desvirtuei...
Virtudes... minhas virtudes parecem ter sido enterradas hoje com nossos amigos.
Sinto como se elas tivessem ido embora, e Deus sabe desse meu sentimento.
Espero que um dia essas minhas virtudes, que se foram com eles, possam ser redescobertas,
desenterradas por vocês. Desejo que isso aconteça na situação
e no lugar mais inesperados. Hoje e sempre, rezarei por vocês.
- Onde eu vou... e o que vou fazê? Onde eu vou... e o que vou fazê?
Um vento soprou forte anunciando o fim da tarde e a morte do resto da luz. Abraçados
e tristes, ambos caminharam para fora do amargurado espaço do Cemitério
da Vila Formosa. No coração dela, um vazio e uma saudade imensos
daqueles que ela queria que ainda estivessem aqui.
Passou pela sua cabeça imagens de dias melhores, de momentos em que ela
foi muito mais feliz, com Betinho e Marisa. Momentos que aos poucos foram se
desfazendo para dar espaço a imensas trevas.
Onde eu vou... e o que vou fazê? Onde eu vou... e o que vou fazê?
Onde eu vou... e o que vou fazê?