A Garganta da Serpente
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Amargas lembranças da infância

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

"Ensina-me, Senhor, o caminho dos teus decretos, e guardarei a tua lei; de todo coração a cumprirei..."
(Salmo 119:33 ao 37)

As lembranças da infância não pareciam doces. Ele queria que elas fossem açucaradas como os copos sujos sempre deixados pelo pai para a mãe lavar.

Se não eram doces, os copos enganavam muito bem as formigas e as moscas que passavam pela pia da casa em Mogi.

Sempre tinha a curiosidade de saber o que era aquilo que o pai bebia. Quando ele e a mãe saíam, o menino pegava o copo e cheirava. O que sentia era qualquer coisa, menos doce... Doce é coisa que estraga os dentes, Pedrinho... respondia o pai quando o menino pedia que comprasse balas... Meu filho vai ser médico ou dentista quando crescer, não vai ser que nem o pai que é taxista, né filho?... dizia o pai, envergonhando o menino que sempre era levado para o bar.

Não dá isso pro menino, Zé... brigava a mãe quando o pai dava conhaque para o menino... É só pra aliviar a dor de dente dele, Maria, será que você não sabe disso... retrucava, chocando a esposa.

De uma coisa o menino gostava muito, gostava das inúmeras vezes em que ficava no colo do pai, ouvindo as histórias que ele contava na varanda da casa em Mogi. Ficava lá, ouvindo as histórias e olhando as estrelas.

As lembranças da infância não poderiam mesmo ser doces. Na mente do menino, o pai, decerto cansado de tanto deixar os copos com fundo açucarado para a mãe limpar, desapareceu... Papai cansou de enganar as moscas e as formigas?... perguntava o menino.

As lembranças da infância em Mogi, realmente, não poderiam ser doces. Tudo lá durou pouco. Durou até o menino saber que o pai não se cansara de enganar as moscas e as formigas. O pai cansara-se de tanto sono, cansara-se de tanto beber naquela noite; cansara-se e dormira, justamente, no volante do táxi que se espatifou, proporcionando, além da gasolina do tanque, um corpo encharcado de cachaça para que o fogo tomasse força e a tudo consumisse.

As lembranças da infância jamais poderiam ser doces. Quando deu por si, já não era mais menino, nem estava mais onde nascera, tinha vindo para a capital; não era tão longe, mas era diferente de Mogi. Em São Paulo, casara-se e aprendera o costume do pai, mergulhava na pinga sempre que podia. Não teve filhos, mas sua esposa era separada e tinha um menino, Vinícios, a quem afeiçoou-se muito.

Se aquele táxi não tivesse explodido, o pai talvez estivesse vivo. Vivo e frustrado. O menino não era mais menino e também passara longe de ser médico.

Em vez de pensar na faculdade de medicina, preocupava-se muito mais com o trabalho na fábrica, com a mulher, com o enteado, com o aluguel e com a cachaça que abria e fechava o dia.

- Chega, Pedro! Pelo amor de Deus, homem! Que você quer fazer? Passa o Vinícios pra cá!

- Deixa disso, eu nem bebi muito.

- Não gosto que faça isso na frente do menino... Meu Deus, Pedro... você precisa de ajuda. Pára de beber assim. É tão cedo...

- Fui criado assim....vou morrer assim!

Herdou o insalubre hábito do pai, ou seja, cansou-se e dormiu. Cansou-se e dormiu não no volante de um táxi, mas - não menos cruel - na máquina da fábrica, deixando lá, além de três dos cinco dedos da mão direita, o emprego, e, por ignorância de seus direitos trabalhistas, uma soma razoável recebida na rescisão, em decorrência dos danos provocados no equipamento.

Se parte da mão o deixou, os horrores não. Escapuliram-se pelos dedos que lhe faltavam, a mulher, o enteado e a casa.

... Ajudem ele, por favor. Ele não é o monstro que vocês pensam. Ele só bebeu demais, nunca ia bater no Vinícios daquele jeito se não fosse por causa da bebida. O Pedro é um homem doente, vocês não veem isso? Meu Deus! Se ele não fugisse os vizinhos iam matar ele...

Tentou, e como, abandonar o vício. Vencido pela dependência, doente e amargurado, viu fugir o resto de dinheiro; exauriu-se no fundo das garrafas esvaziadas. Foi parar na rua.

“E esse vagabundo, que nem é pai do menino, sumiu depois de bater na criança, na mulher e quebrar a casa inteira. Fugiu pelos fundos. Mostra aí, Produção! Mostra a foto do vagabundo. Eu digo que quando a violência não está na rua, está dentro da casa da gente... Vamos fazer um pequeno intervalo enquanto a Produção providencia a foto desse... marginal... desse monstro que encheu a cara e espancou o filho e a mulher.”

Já não era mais um menino, e sim um velho cujo cérebro havia sido maltratado pela dependência química e pela enorme solidão. Até tentou subsistir como marreteiro no centro da cidade; ganhou muito, não muito dinheiro, mas sim muito murro, soco e pontapé dos outros mais espertos de quem sublocava os pontos.

O último grande projeto foi vender doces nos ônibus, atividade que até deu certo, não fosse a fraqueza habitual com o álcool. Fraqueza que o fazia gastar o ganho diário nos bares.

Para chamar a atenção dos passageiros dos ônibus e vender os doces, arrumara um chapéu ridículo, colorido e deformado. Obviamente, isto não o ajudou muito.

Fragilizado e levado a um estado de semidemência, passou a fantasiar suas recordações de infância. Queria, então, poder voltar no tempo e ver as estrelas como na época em que ficava no colo do pai. Entretanto, deu por encerradas todas as tentativas de largar o vício. Chorava muito e entrava no perigoso território da autocomiseração quando decidira morrer... definhar...

Apagou todos os possíveis registros de sua pessoa, RG inclusive. A partir daquele momento, nada de comer, só beber.

- Zé, será que você não tem mais respeito por mim ou pelo garoto?

- Quê quê foi mulher? Não começa!

A esposa insiste:

- Zé, é cedo. Já vai começar? Beber tão cedo... Meu Deus...

- Esquenta não, a merda da minha história já tá escrita.

- Zé, poupa pelo menos o Pedrinho. Ah, vou voltar para o hotel.

Não a observação das estrelas, mas a primeira vez que o menino viu o mar...

As lembranças da infância, infelizmente, nunca foram doces, mas o fundo dos copos era açucarado. Igualmente açucaradas talvez fossem as suas roupas agora, dada a quantidade de moscas que o rodeavam.

A primeira medida para chegar ao fim foi instalar-se próximo a uma padaria, ao lado do viaduto Guadalajara, onde dormia. Decidiu que não pediria nada aos clientes, nem aos funcionários da padaria. As cachaças que lá tomasse deveriam ser pagas por ele mesmo, não importava como. Rezava, porém, para que o fim chegasse antes que seu dinheiro acabasse. E o dinheiro foi acabando...

Numa das vezes que entrou na padaria, ele aproximou-se do balcão. Segurava uma moeda - por sinal, a última que lhe sobrara.

Havia um casal tomando café. O rapaz, corpulento, deixava à mostra os músculos adquiridos à custa de muita academia. A moça, por sua vez, devia imitar o visual de alguma artista.

O balconista, que o conhecia e sabia que ele fazia questão de pagar as cachaças, até tentou avisar, mas não houve tempo. De uma sacada só, o rapaz desferiu o golpe.

Velho e moeda voaram para fora da padaria. Traçaram trajetórias opostas e um nunca mais encontrou o outro... Que merda de cidade, não se pode andar dez metros sem que alguém venha pedir esmola...

Uma moça e um senhor caminhavam em direção a um sobrado que ficava no fim de uma pequena rua sem saída. Ao entrar, a moça olhou a figura imóvel em frente à casa. O homem disse a ela:

- É só um velho de rua, não faz nada, está aí parado já faz muitos dias.

- Me pareceu estranho. Veja só o chapéu!

- Não, pode confiar, não reage a nada, nem a chuva, nem a sol. Até tentei dar um prato de comida, deixei aos pés dele e está lá, intacto até hoje, pode conferir - concluiu e entrou na casa, sendo logo seguido pela moça desconfiada.

Muito tempo depois, ela saiu do sobrado, dessa vez veio só e encarou novamente o velho. Este retribuiu o olhar. Ambos encararam-se até que ele se curvou e tocou o chão com o corpo.

Deve estar bêbado. Onde vamos parar com toda essa gente na rua?

...O mar arrebentando em ondas na praia de Peruíbe. Um feriado prolongado. A primeira vez que o menino viu o mar... Pode voltar para o quarto do hotel, Maria. O que está escrito no céu, no mar, na terra...

- Zé, dá um tempo homem! - falou o cunhado - Não venha com este papo de destino não. Poupa o menino dos teus defeitos.

- Tá certo. Vocês... você e a Maria tão certo... - Levou o copo à boca - Pedrinho! Pedrinho! Vêm cá, moleque! - chamou o filho.

- Zé, meu Deus, homem! Quê você vai fazer?

- Nada não... Pega aqui filho, pega a mão do papai. A vida do papai não é doce, filho. Num vai pelo mesmo caminho -  De uma golada, Zé entornou o resto do conteúdo do copo.

Ciclo. Condicionamento... Maria, esta carta que você encontrou.... Sistema. Regras definidas. Submissão... Será que o Zé escreveu isto mesmo, Maria?... De onde não se foge quando não se tem forças para fugir... Se for, Maria... Sistema que esmaga quando se deixa esmagar...O acidente... o táxi... foi o Zé... ele se matou.

Ainda no chão, o velho virou-se e olhou para cima. Viu, pela última vez, um céu cheio de estrelas, como aquelas que via no colo do pai. Aos poucos tudo foi ficando escuro, mas as estrelas ainda estavam lá... Enxergava-as como nunca tinha feito; elas eram tão raras de se ver naquela grande cidade... tão raras quanto a primeira e única vez que ele viu o mar... tão raras quanto suas lembranças da infância... jamais doces.

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