A Garganta da Serpente
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O homem sem importância e os sonhos do passado

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

“Os sonhos de um homem doente se distinguem frequentemente por um relevo inusual, pela expressividade e uma excepcional semelhança com a realidade.”
Fiódor M. Dostoiévski

Dirigia-se para casa. Vinha, como de costume, de mais uma noite insone de sábado, como sempre, passada a perambular por bares. Caminhou pela região da Marechal Deodoro, de cabeça baixa e com os ombros encolhidos a fim de espantar o frio. Esbarrou, sem querer, em uma mulher:

- Desculpe, moça.

Ela não respondeu, ele seguiu caminho. Alguns metros à frente, desconfiado, virou-se a tempo de vê-la olhando para um muro, ajeitando-se e indo embora.

Depois, viu uma confusão de pessoas na Amaral Gurgel. Não quis parar. Foi até o Deodoro Lanches para tomar a saideira e comprar cigarros.

Engoliu a cachaça. Sorveu a fumaça. A mistura das duas drogas fez com que ele se lembrasse da ideia... Ao pagar a conta, o dono do boteco, seu amigo, disse:

- Tudo bem, Edgar? Viu, faz um tempo que estou para te falar, você não quer pegar de volta algumas daquelas caixas de chocolate? Tem três fechadas e uma aberta.

- Não, Ivam, pode ficar. Também tenho umas no bazar.

- Tá legal. Ahhh, você viu a bagunça ali na Gurgel?

- Vi um monte de gente, mas...

- Parece que alguém se matou, pulou do Minhocão, caiu.

- É mesmo? Não vi nada, vou lá.

Ao ouvir aquilo, as sensações iniciais da cachaça e do cigarro passaram. Edgar ficou um tanto pensativo. Acabou mudando de ideia:

- Não, acho melhor não. Vou para casa dormir. Depois você vê o que foi e me conta. Tchau.

- Tchau. Bom descanso. Vem mais tarde?

- Hoje não.

Ivam observou-o sair do bar. Passou a mexer nas caixas de chocolate. Numa delas, a aberta, descobriu um pequeno cartão com os dizeres: “Telefone do tio”. Logo abaixo, um nome e um número... Sujeito esquisito esse Edgar. Boa gente, ele, mas sempre estranho. Por que será que deixou isso aqui dentro da caixa? Bem, quando ele aparecer de novo, devolvo o cartão... Em seguida, decidiu ver o que era a baderna na rua.

Edgar mora na região da Marechal Deodoro. Sua casa parece uma garagem. Após falar com Ivam, e sem dar atenção àquele incidente no Minhocão, foi para lá.

Para entrar, usa uma pequena passagem no meio de uma porta de ferro. Dentro, um humilde bazar. O lugar contém um pequeno quarto onde Edgar dorme.

Tudo bastante sujo. Seus pertences resumem-se a uma cama de solteiro, uma TV, um vídeo e um velho frigobar. Edgar abriu-o e encheu um copo d’água. Depois de beber, foi ao banheiro. No caminho, olhou para um caixote cheio de garrafas de cerveja que deixara atrás do balcão do bazar. As garrafas continham um líquido escuro; os gargalos, tampados com rolhas.

Voltou para o quarto. Deitou na cama para assistir TV. Ao ajeitar-se, esbarrou em um VHS esquecido por lá. Era uma gravação doméstica, com um adesivo para identificar um filme gravado. Já assistira muitas vezes: Sonhos do Passada . Olhou a fita com tristeza. Só foi interrompido por um comercial na TV.

A propaganda mostrava algo como namorados chegando a uma casa aconchegante, beijando-se afoitamente, esbarrando nas coisas e indo para o quarto. Tudo levava a crer que, em seguida, ocorreria uma cena de sexo. Na hora H, porém, o rapaz saía e ia direto para um carro.

Uma voz em off interrompia a ação e dizia que as pessoas não iriam perder tempo com mais nada, a não ser curtir o carro.

A mensagem incomodou-o um pouco. Ironizou que seria um afortunado uma vez que, ali, encerrado naquela solidão e sem ter o que fazer, se possuísse o carro, não teria que dispensar nenhuma mulher para aproveitá-lo. Ou será que era a falta de um carro que o impedia de ter uma mulher e uma casa como aquelas do comercial? Ou seria a ausência de uma casa idêntica que o impossibilitaria de ter o veículo e uma garota?

Estava ficando confuso. Seu raciocínio já não era muito bom àquela hora. Mulher... Foi pensando nisso que se lembrou de algo que guardava no frigobar. Foi até lá pegar. Eram caixas de chocolate idênticas àquelas que dera para o amigo do bar. Ele também iria pô-las à venda no bazar, afinal, não comia aquilo, só tinha comprado por causa de uma moça que sempre via no metrô - tentando vender os doces aos passageiros.

Ela aparentava ser um pouco mais nova que ele. Todos os dias a via insistindo para que comprassem os chocolates. Acabava levando um ou dois, mas não comia; acumulava-os na geladeira e, quando tinha uma quantidade grande demais, improvisava caixas, lacrava-as e dava parte delas para que Ivam tentasse vender no Deodoro Lanches.

O chocolate devia ser intragável, ninguém levava. Dia após dia, Edgar foi se afeiçoando à vendedora de tal modo que não conseguia mais tirá-la da cabeça. Talvez gostasse muito dela.

A moça desapareceu. Edgar nunca mais a viu. Descobriu que seguranças do metrô a tinham retirado de lá e apreendido sua mercadoria; por medo, ela não deve ter voltado.

Arrependeu-se de ter hesitado em puxar conversa com ela antes; de ter adiado dizer que realmente sentia compaixão, amor ou qualquer sentimento um pouco melhor do que a indiferença. Queria ter dito que seu desejo era ajudá-la, erguê-la alto, alto e para longe de toda aquela escuridão, toda aquela dor, toda aquela solidão.

Pensamentos confusos... Não sabia se devia reconsiderar as suas escolhas: repensar o seu modo de vida, o seu isolamento proposital naquela espelunca, a sua negação ao relacionamento com outras pessoas.

Aquele estado originava-se de pequenos dramas vividos; de frustrações ocorridas com pessoas queridas e nos empregos que tivera; e de decepções com a sociedade como um todo - situações que saíram do seu controle e se tornaram traumas profundos, varrendo-o para baixo de um tapete de ressentimentos.

Passou muito tempo sentado. Já devia ser tarde pois ouvia a movimentação da rua. Pensou se os vizinhos o viam chegando bêbado todas as manhãs de domingo, se se incomodavam por isso e outras indagações.

Em ambientes exteriores àquele isolamento, alguns símbolos de prosperidade contrastariam com seu estado desolador: uma família, um carro, uma boa profissão e amigos. Seu pai desejou tudo isso para ele; por isso Edgar decidiu estudar, progredir na vida até conseguir um certo conforto. Mas, ao chegar lá e tentar coexistir pacificamente com ideias que não compartilhava, flertar com a indiferença, com a falta de articulação de pessoas que só se preocupavam em liderar hordas de outras pessoas - acabou sucumbindo e renunciando a tudo por uma existência medíocre aos olhos de todos. Esses, a seu ver, assemelhavam-se a aros de uma imensa roda de madeira que girava lentamente, levando-os a uma existência confortável, apática e alheia a realidades torturantes ao seu redor. No final, Edgar decidiu deixar de ser um dos aros e abandonou tudo.

Foi quando comprou o bazar e se isolou, alternando dias monótonos de trabalho e noites de embriaguez. Batizou o lugar de Solitária e se auto intitulou O homem sem importância.

Estranhamente, após muito tempo isolado, o acúmulo de rancores doía-lhe muito. Sentia-se um homem repugnante que acumulava inconformismo; achava-se um ser desprezível por sua incapacidade de articulação para lutar contra todo tipo de degradação social que odiava.

No fundo, sempre vinha à sua mente a dúvida... talvez não devesse ter sido tão severo e radical. No seu íntimo, se arrependia de não ter sido capaz de fazer algo - mesmo a distância - para mudar as coisas, mudar aquela roda, que, para ele, girava rápido em direção a um fosso de indiferença.

Sentia, em alguns momentos, vontade de voltar para o convívio social. Mas só voltaria se fosse para tentar modificar as coisas... degradações no seu entendimento. Sozinho, não tinha forças para voltar. Precisava de laços afetivos, formas de ligação que o trouxessem aos poucos para a realidade. Alguém... alguém especial para ele...

Com essas doentias teorias, lembrou-se mais uma vez da moça do metrô. Os sentimentos que ele tinha por ela eram muito confusos. Passou a enxergá-la como uma espécie de ponte entre ele e a realidade da qual havia fugido. Pior: não sabia explicar como, mas passou a vê-la como a única esperança que teria de, quem sabe, um dia voltar para a sociedade, voltar de uma forma melhor. Passaria por cima de toda degradação moral, física e espiritual que enxergava e atacava violentamente. Esse sentimento transformou-se em verdadeira obsessão. Procurou por ela pelas estações e pelos trens do metrô. Não a encontrou mais... Sim, moço, conheço ela sim... Era uma que vendia uns chocolates. Uma moça bonita, não é? Os caras do metrô pegaram ela...

À noite, Edgar decide assistir mais uma vez ao filme da fita de vídeo, Sonhos do Passado. Não lembrava direito o nome do ator principal, somente aquela história famosa de que ele havia trabalhado no filme por uma ninharia. Ninguém confiava no projeto, nem aceitava atuar nele, mas, de forma surpreendente, aquele ator ganhou um Oscar pela obra. .

Pegou a fita. No velho adesivo quase descolado, escrito à mão, além do título, o nome do ator: Jack Lemmon.

Assistiu ao filme seguidamente pelo resto da noite, bebendo e fumando muito. A ideia foi ficando cada vez mais forte.

Aos primeiros raios do sol da manhã seguinte, o filme ainda passava. Edgar não o assistia mais. Arrumava as garrafas com aquele líquido... gasolina. Ele colocou-as ao longo de toda a Solitária e do bazar.

Fantasiou os momentos seguintes enquanto abria o registro do gás. Imaginou que, pela segunda vez em uma mesma semana, fatos estranhos abalariam o bairro: aquela morte no viaduto e a realização da sua ideia... Pensou em Ivam, do Deodoro Lanches, contando para alguém o que tinha ocorrido enquanto bombeiros fizessem um rescaldo.

Pensou nas degradações... pensou na moça do metrô - na dor e humilhação que ela pudesse ter sentido quando a expulsaram de lá.

Fantasiou o rosto dela, seu sorriso. Nunca a tinha visto sorrir... imaginava-a erguendo-se, superando as dificuldades... Sentia o peso, sentia... a... saudade... pensou nela erguendo-se, erguendo-se... para longe, para uma situação melhor...

O ar foi ficando cada vez mais insuportável. Encolhido em um canto, olhou para a parede... a pintura antiga caía...

A imagem daquela moça... seu semblante... imaginá-la, foi seu último pensamento enquanto acendia o isqueiro...

Inspirado pelo incendiário daquele filme... homem sem importância... bazar... Solitária... um monte de sonhos... sonhos de mudança que não se realizaram. Sonhos, muitos sonhos, todos sem nenhuma importância, considerados a partir de agora... sonhos do passado.

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