A Garganta da Serpente
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Dialética inacabada

(Ana Gusmão)

E mudo sempre sem destino para mudar pelo simples ato de mudar mudo para o alto da minha cabeça que me faz sonhar com símbolos pré históricos resquícios do que era quando não mudava e vejo agora melhor que mudo por hábito pelo fracasso de me sentir parado no meio do buraco negro do meu peito e mudo pelo rumo das formigas que correm saltitantes para colonizarem grupos linguísticos diversos mudo estou pois não posso sovar o destino do meu sujeito consequente demais de tudo que represento para os grupos de convivência dos marginalizados do bairro e mudo para o por do sol que me transpõe para a África sem mudar de moeda ou de visto ou de desejo e mais uma vez mudo para a direita que me dá fome e ânsia de comer tudo agora em que posso caminhar livre por essas sementes de pulsão de ser e mudo para o passado que me liberta de qualquer compromisso e me regala com um doce flash de mel de dor que me conforta porque um dia eu venci e mudo mudo mudo mudo sempre mudo o que posso e o que não devo mudo meu sexo aberto na madrugada e corre na frente de mim e o alcanço na esquina desconfiado se conseguirei reconhecê-lo depois de tanta transformação e que fui obrigado depois do álcool e do excesso de desconfiança e mudo para o vizinho que é sempre estranho e muda suas mudas de plantas com nojo e rio muito do revólver exposto na cintura e a cara arrebentada de acertos do tráfico de drogas e mudo de expressão mudo de convicção mudo de dogma mudo de tudo mudo de mãe e pai para variar a minha genética que me coxeia e me tira a resistência de saltar por entre camas e geladeiras mudo sempre mudo urgentemente mudo como quem se perde no próprio movimento de contar os fios dos cabelos do bebê pequeno tirano que encanta e apavora a toda humanidade por esfregar na cara de todos a superioridade da não experiência do viver mudo de regime de grãos integrais e de regime político mudo fico com o infinito da arte que não se leva nada mudo transpareço a rotina de soluçar todos os minutos da minha vida mudo o lugar do rabo do cachorro mudo o lugar de Deus e do Diabo mudo a consistência da sopa da pedra do fogo e de todos os elementos da tabela periódica mudo para perto da lagoa que ecoa roça onde moro. Só não mudo meu amor ao impossível.

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