A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O desfile final

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

E muito devagar, as rosas se despetelaram. As pétalas iam caindo em silêncio...
Somente a solidão dos olhos de Deus puderam apreciar aquela cena...

(José Mauro de Vasconcelos)

- Aaaaaai, isso dói Roberto!

- Calma Vladimir, água oxigenada não arde tanto assim. Sua testa está bastante machucada.

- Machucada moça? Tá mancando tanto... Posso ajudar?

Vladimir ouvira aquelas palavras na manhã de domingo enquanto caminhava na pista de entrada da estação Santa Cecília do metrô.


- Bom amor, acho que com esses curativos a gente segura um pouco o sangue. Espera aí que eu vou pegar o gelo.

Virou para ver de quem era a voz. Parecia amigável e, por mais fiel que ele fosse a Roberto, sentiu-se atraído pelo rapaz que oferecera ajuda.

- Meus pés estão um pouco machucados. Dancei demais, sabe...

- Vai pegar o metrô?

- Sim.


- Acabei. Agora você vai me contar tudo que aconteceu. Vamos para o quarto.

Roberto tentava achar uma forma a conter o choro do parceiro.

- Venha, apoia em mim...

- Apoia aqui, segura firme que te acompanho até a entrada do metrô. Como você se chama? Em que estação vai descer?

- De... Denise, me chamo Denise. Vou descer no Belém.

- Mora lá?

- Sim, moro perto da estação.


- Pronto, relaxa agora e me conta o que diabos aconteceu. Fala porque você tá tão arrebentado assim.

Roberto colocou a cabeça de Vladimir no colo e entrelaçou as mãos no cabelo do namorado, sentindo os galos e machucados. Em dado momento, sorriu e disse:

- Fala... diga tudo... Denise...

- Denise uma merda, seu travesti filho da puta!

O rapaz transformou a voz amiga em um urro bárbaro. Passou então a golpear violentamente Vladimir até que ele caiu na entrada do metrô e se contorceu recebendo inúmeros chutes.

- Isso, seu filho da puta! Toma e aprende a ser homem!

A peruca de Vladimir foi arrancada e suas roupas rasgadas; alguns seguranças do metrô, alertados pelo rádio, correram para a pista de entrada da Santa Cecília onde o massacre ocorria.


- Se você pelo menos não tivesse insistido tanto para eu sair sozinho ontem... nada disso teria acontecido.

- Eu sei amor, me arrependo até o último fio de cabelo, mas era necessário. Nem os olhos de Deus poderiam ver o que se passou aqui hoje enquanto você esteve fora...

- Fora, vocês brigavam fora da nossa área, por isso a gente não te ajudou. E tem mais: porra, por que você tem que sair vestido que nem um filha da puta assim? Não sabe que aqui a coisa é preta? Aquele cara podia ter te matado, sabia? - disse um dos seguranças do metrô que nada fizera para impedir o espancamento.

- E olha aqui ôôôô bichona, cê tem duas opções. Ou some daqui rapidinho ou encara uma viatura e vai dar depoimento e corpo delito na delegacia. Que vai querer? - falou um outro segurança.


- Os olhos de Deus... lembra Roberto? Lembra quando você falou isso para mim pela primeira vez? Foi quando a gente comprou as fantasias para usar no dia da Parada. O dia em que a gente ia arrasar... arrasar no desfile final...

Os pensamentos de ambos retrocederam até o dia em que compraram as roupas coloridas e festivas. Estavam no centro da cidade, era um sábado. Compraram as fantasias, vagaram por botecos comemorando e, cansados e bêbados, enfim foram para casa.

Mundo, veja como estamos liiiiindas!!!! Parem as prensas e vejam todos vocês como somos maravilhosas! Nem os olhos de Deus poderão se fechar diante de nós na próxima Parada Gay, no Carnaval e no desfile final...


Vladimir, ainda no colo do namorado, suspirou:

- Quanta ingenuidade pensar que chegaríamos a ser tão notados, né? E cá estou eu, fodido, violentado, massacrado... Você acha mesmo que os olhos de Deus um dia vão se voltar para nós?

- Volta pra casa. Volta agora ou fica e vira a alegria da gilete dos presos, sua puta vagaba. - caçoou o delegado - Ahhhh, melhor enquadrar você de qualquer forma, né? Se sair daqui, o filho da puta que te espancou vai te foder na primeira esquina da cidade, certo? Então você vai ficar aqui e virar a dama da vez para os presos - decretou olhando sinistramente para Vladimir.


- Foi isso... um inferno. Eles me colocaram na cela junto com um monte de presos e você pode deduzir o final da história, não é?

- Machucado e humilhado...acho que não teremos mais fantasia, Parada Gay, desfile final, não é mesmo?

Lamuriando-se enquanto se erguia, Vladimir foi em direção ao espelho no canto do quarto. Roberto acompanhou seus passos e abraçou-o. Ambos ficaram em frente ao espelho.

- Foi o Fuinha, não foi Roberto? Foi o filho da puta que te ligou e te obrigou a ficar em casa ontem, né? Ele veio cobrar as dívidas do pó, não é?

Roberto nada respondeu.

- Só tem um jeito de pagar uma dívida dessas, não é? Por quê? Por que você foi deixar as coisas chegarem a este ponto? Eu falei para você deixar essa onda de droga de lado. Agora... agora o que será de mim sozinho?

Quando voltou à realidade, Vladimir não viu mais o namorado. Percebeu enfim que tudo não passara de ilusão, Roberto tinha sumido.

- Sumido, você pode escolher entre ser um sumido ou ser um arrombado assumido, seu putão. Rááááááá - gargalhou o delegado enquanto dispensava Vladimir.


O espelho que Vladimir olhava estava quebrado, havia cheiro de pólvora no ar e a pequena casa do Belém estava toda bagunçada. O espectro de Roberto, que conversara há pouco, desaparecera...

Cama revirada, armários destruídos, guarda-roupa escancarado, móveis e pertences quebrados e muito sangue por todos os cantos. Vladimir andou desesperançado pela casa reconhecendo roupas e pertences. Soltou um grito infernal quando viu, em um canto do espelho, rabiscado com sangue, a seguinte mensagem:

A todos os filhos da puta que dão o cu e não pagam as dívidas.
Vamos matar todos vocês.
Vladimir vai ser o próximo.


Logo abaixo dessas frases, havia um papel fixado com durex e, ao lado, mais um texto escrito com sangue:

Pega a cartinha de amor do seu namorado, traveco filho da puta.


O corpo de Roberto, despido e perfurado de balas, estava no banheiro. Braços e pernas amarrados, boca amordaçada, olhos furados e a cabeça enfiada na privada.

Vladimir, em estado de choque, lia o pedaço de papel escrito por Roberto e deixado no espelho pelos capangas do Fuinha. O texto, tão confuso quanto o bilhete de um suicida, expressava as desculpas de Roberto por ter deixado as dívidas com os traficantes terem saído do controle. Em meio à escrita desesperada, dezenas de declarações de amor e um pedido:

Fuja, desapareça. Eles vão pegar você também. É tarde e eles logo estarão aqui.
Como eu queria que a gente saísse na Parada, no nosso desfile final. Nunca esqueci o dia da fantasia... Como tinha dito, nem os olhos de Deus iriam nos ignorar.
Te amo, adeus.
Roberto.

***

Anoitecera e a fraca iluminação das ruas não permitia a plena visualização da exótica figura que andava rebolando desajeitadamente na colorida fantasia . Naquela pequena parte do bairro do Brás só um barzinho estava aberto. Alguns fregueses curiosos deixaram o bilhar de lado para mexer com o travesti que desafiava:

- Fuinha, seu filho da puta. Vem para fora me pegar! Vem, seu filho da puta! Vem terminar o teu serviço, acabar de levar pro inferno o farrapo que virei. Vem!

Assobios, risos e gozações partiram do bar. Vladimir, com os olhos vermelhos e inchados pela violência sofrida e pela dor da morte do namorado, continuou:

- Meu nome é Vladimir. Nasci tão homem quanto você, seu verme filho da puta. Homem de verdade você matou hoje lá em casa.

Vladimir engasgou e, perdendo o controle sobre o choro que tentava segurar, iniciou um arrasador pranto pelo namorado assassinado.

Inexplicavelmente, todos no bar silenciaram, só se ouvia o choro de Vladimir... ou... de Denise... Ele segurou os soluços e encarando secamente os homens no boteco, disse baixinho:

- Fuinha, vem cá terminar o meu desfile final...

Um estalo seco soou na rua. A bala certeira atravessou a testa de Vladimir. Ele caiu esperneando e imediatamente uma poça de sangue formou-se sob sua cabeça aberta. Três homens partiram do bar, seguiram em direção ao moribundo e descarregaram seus revólveres. Terminado o serviço, saíram calmamente.

***

Os primeiros a chegar foram uma senhora e um engraxate que ficaram mudos ao ver a cena. Em seguida, um aglomerado de pessoas se apinhava em frente ao cadáver. Um travecão fantasiado assim... coisa boa não deve ter feito para receber tanta bala - ouvia-se por ali.

Alguém tentou improvisar um cobertor de jornal, poupando assim as pessoas de verem a massa disforme que se transformara a cabeça de Vladimir.

Por fim, um jornal sensacionalista apareceu para fazer a cobertura da desgraça.

Uma mulher anônima e toda vestida de preto, vendo tudo, disse:

- Hoje farei uma triste, inútil e patética prece por este desgraçado. Espero que Deus tenha coragem de me ouvir...

***

Dias depois, o barulho de fogos de artifício e o som ensurdecedor de música eletrônica irromperam na Avenida Paulista. Milhares de pessoas, demonstrando à flor da pele suas diferenças sexuais, avançavam formando um conjunto vivo e fervilhante de alegria.

Câmeras fotográficas e filmadoras captavam flagrantes divertidos e momentos delicados de carinho, humanidade, integração e dedicação.

A cena mais inusual, entretanto, não foi vista por ninguém, pelo menos no plano humano de observação.

À frente de toda aquela massa humana, dois espectros em coloridas fantasias dançavam, beijavam-se e cantavam declarações de amor mútuo. Lideravam, sem que ninguém os visse, aquela manifestação pelo direito de serem felizes.

Nenhum humano pôde vê-los, nenhuma câmera pôde registrá-los. Todo aquele momento de êxtase e realização passou despercebido a todos.

Vladimir e Roberto guiavam a Parada Gay. Só os olhos de Deus puderam - se foram corajosos o suficiente - observar e desfrutar daquele momento, daquele desfile final no qual eles, contra toda adversidade, enfim estavam unidos, completos... e felizes...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br