A Garganta da Serpente
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Um cheirinho a brilhantina

(Armindo Guimarães)

Era de manhãzinha e o sol já batia forte e risonho.

Lá foi ele de sacola de pano ao ombro para o fim do mundo, a setenta quilómetros de casa. A mãe deixou-o na camioneta onde já estavam outros meninos e meninas. Alguém o fez ocupar um lugar, não à janela como ele tanto queria, mas ao lado de uma menina da sua idade e cujos cabelos deixavam no ar um cheirinho a brilhantina que lhe entrava pelas narinas adentro. Durante a viagem até ao fim do mundo, o menino e a menina pouco ou nada disseram, excepto quando faziam coro com os outros meninos, cantando: "Senhor chauffeur, por favor, carregue mais no acelerador! E vinte e sete, e vinte e sete, e vinte e sete, bibó chauffeur da camionete!".

Finalmente e para contentamento geral, a camioneta chegou ao fim do mundo e todos saíram dos seus lugares ansiosos por calcarem terra, qual Cabral pisando Terras de Vera Cruz e qual Armstrong pisando solo lunar.

Ele e a menina só se viram no dia seguinte, vestidos com as roupas das colónias de férias. Ele, com uma espécie de fato-macaco até aos joelhos, de tecido aos quadradinhos azuis e brancos. Ela, com um vestido também até aos joelhos, igualmente de tecido aos quadradinhos, não azuis mas vermelhos e brancos.

Era a hora do recreio e enquanto toda a meninada corria e gritava jogando à bola, andando de baloiço ou de escorrega, ele, a um canto, limitava-se a observar os outros brincando, quando, de repente, olha para o lado e viu que não estava só: a cinco metros estava a menina que com ele tinha viajado na camioneta. Olharam-se nos olhos e sorriram. Ela tirou da sua sacola 6 pedrinhas coloridas, 3 vermelhas e 3 azuis, convidando o menino para um jogo a dois. Ele sorriu de contente lembrando-se que era o melhor da sua rua naquele jogo.

Desde então, nos recreios, os dois meninos gostavam era de brincar às pedrinhas, sempre alheios às brincadeiras dos outros meninos correndo e gritando.

No dia em que deixaram o fim do mundo e a camioneta os levou de regresso a casa, o menino e a menina sentaram-se mais uma vez lado a lado, com a diferença que, desta vez, a menina disse para o menino: "Queres ir tu à janela?" e o menino de imediato respondeu: "Quero!". Mas ainda hoje o menino se interroga para quê, pois durante toda a viagem só via era a menina.

Por vezes, uma breve brisa vinda da janela entreaberta levantava ao de leve os sedosos e delicados cabelos da menina, impregnando no ar à sua volta um familiar e delicado odor a brilhantina.

"Senhor chauffeur, por favor, carregue mais no acelerador! E vinte e sete, e vinte e sete, e vinte e sete, bibó chauffeur da camionete!".

Por fim, a camioneta parou e todos se beijaram e abraçaram com a alegria da chegada.

"E vinte e sete, e vinte e sete, e vinte e sete, bibó chauffeur da camionete!".

Contudo, a alegria da chegada foi para o menino e para a menina a tristeza da despedida. Não houve um beijo, não houve um abraço, não houve um adeus, mas apenas uma troca de olhares presenciada pelo mesmo sol que os viu partir e que os viu chegar.

Chegou a noite e com ela o cansaço. Nos braços de Morfeu dormiu o menino.

De manhã, ao despertar, o menino viu a seu lado a sacola de pano que a sua mãe havia despejado de toda a saudade nela guardada.

Junto à sacola, três pedrinhas vermelhas olhavam-no sorrindo e um cheirinho a brilhantina entrou no seu quarto.

(2007)
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