A Garganta da Serpente
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Bourg La Reine

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

"Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita..."
(Italo Calvino)

Ele não gostava de shoppings, mas uma amiga havia comentado que uma livraria de um shopping famoso estava vendendo o último livro do Salgado com vinte por cento de desconto, então, o esforço de ir até lá valeria a pena. Passou em casa, trocou de roupa, pegou o ônibus e, sem perda de tempo, já estava dentro do metrô em direção às compras.

Sentou-se calmamente e quase cochilava quando notou uma pequena algazarra. Três grupos distintos chamaram-lhe a atenção. O primeiro era formado por duas adolescentes, talvez indo para o cursinho ou mesmo para a faculdade. Cheias de energia, falavam demais e riam em profusão. O segundo grupo era um trio de amigos, todos na faixa dos trinta e poucos anos. Estavam em pé, calados, pareciam meio abatidos e demonstravam-se incomodados com a dupla de amigas. Dentre os rapazes, um destacava-se mais, possuía um semblante bem inexpressivo. O terceiro que tinha chamado sua atenção na verdade não era um grupo, mas sim, um senhor em uma cadeira de rodas. Era bem velho e de aspecto sofrido.

Faltavam ainda algumas paradas até que ele chegasse à estação que dava acesso ao shopping onde pretendia comprar o livro. As moças continuavam a rir e a conversar bem alto.

Na próxima estação aconteceria a parte mais marcante daquela curta viagem. As portas abriram-se, pessoas desceram, outras subiram e, dentre essas, uma figura que ensejaria reações diversas. Pena, por parte do grupo de rapazes e do velho da cadeira de rodas. Curiosidade, por parte dele que estava indo comprar o livro. Chacota, por parte das duas adolescentes. Indiferença, por parte da maioria dos demais.

A pessoa em questão era um velho aparentando ser um morador de rua. Até aí, nada de tão excepcional, o problema era um chapéu que ele usava, cuja cor e formato bizarro arrancaram risos e piadas das duas moças. O mendigo dirigiu-se para o fim do corredor, a parte em que o velho da cadeira de rodas se encontrava. Andou cambaleando de forma a denunciar sua embriaguez. Os três amigos silenciaram. Ele, que ia para a livraria, continuou a observar tudo.

O metrô arrancou da estação ocasionando um solavanco. O velho do chapéu engraçado desequilibrou-se e tentou agarrar em um ferro. Conseguiu. As moças riram. Os três amigos as reprovaram com o olhar.

Um aumento final na velocidade do trem causou um segundo solavanco, imperceptível para a maioria das pessoas mas suficiente para fazer o mendigo pender para o outro lado. Tentou agarrar-se novamente, dessa vez com a outra mão. Não conseguiu e desabou no colo do homem da cadeira de rodas. Depois do susto, eles começaram a brigar.

- Vejam, foram feitos um para o outro - brincou uma das moças e então ambas gargalharam bem alto. O homem sem expressão as mantinha sob severo olhar.

O senhor da cadeira de rodas, tentando desvencilhar-se do mendigo, soltava toda sorte de palavrões. O velho do chapéu tentou levantar-se, recompor-se. Começou a argumentar:

- Di... disculpa moço. Eu tentei agarrar, mas minha mão... - explicava-se enquanto levantava a manga da camiseta deixando exposta uma das mãos meio deformada, contando apenas com dois dedos.

O homem da cadeira de rodas olhou assustado. Os rapazes, as adolescentes e ele, que se dirigia para a livraria, foram as pessoas que melhor puderam acompanhar o diálogo dos dois homens.

- Tá bom, desculpe, não sabia. Mas vê se toma mais cuidado, eu também sou deficiente físico - finalizou.

O homem de rosto inexpressivo não tirava o olhar de ambos. De repente ouviu uma das moças tecer o seguinte comentário:

- A mão dele parece um gancho, raaaaaa.

Foi o suficiente. Ele saiu de perto de seus dois amigos e dirigiu-se para as garotas. Pediu licença e falou:

- Desculpe-me moça, logo vejo que você é bem mais nova que eles - disse apontando para os dois velhos - noto também que você tem uma boa aparência, um corpo bonito e desejável. A única exceção talvez seja essa sua pequena barriguinha que a camisetinha deixa aparecer. Talvez ela seja fruto de algum mau hábito seu, como por exemplo, um lanche do McDonald's, chocolates para descarregar as tensões durante as provas ou mesmo um barzinho em que vai sempre após as aulas, afinal ninguém é de ferro, não é mesmo? Tudo isso são, de certa forma, estimulantes para a sua rotina, certo?

- O que você quer? Eu só estava brincando...

- Fica quieta, tá todo mundo olhando para a gente - interrompeu a outra amiga.

Ninguém mais ria ou falava. Todos, em silêncio, prestavam atenção no que o homem de rosto inexpressivo falava:

- O que você passaria a tomar se fosse parar na rua?

- O... o que?

- Sim, que tipo de hábito teria para estimular o dia a dia se acordasse na rua como... ele? - apontou para o velho do chapéu.

A moça ficou vermelha, os olhos encheram-se d'água. Teve muita vergonha:

- E.. eu não fiz por mal...

- Inferno particular para uns, motivo de gozação para outros - falou pondo fim ao diálogo com ela enquanto voltava-se para os dois amigos que ficaram para trás.

O clima lá dentro estava opressivo. Ele agradeceu por faltar apenas mais uma estação até que chegasse ao destino almejado, pudesse descer e ir até a livraria comprar seu livro. Ficou, na verdade, mais tranquilo por sair daquele ambiente pesado.

Levantou-se e ficou à porta esperando para saltar. Prestou atenção a todos pela última vez.

O homem de rosto inexpressivo olhou para as figuras amarguradas do velho do chapéu berrante e do homem na cadeira de rodas. Então disse:

- Será que um dia eles foram felizes?

Os amigos emudeceram. Somente após um longo silêncio um deles respondeu:

- Eu acho que não.

As moças ficaram quietas, a que falou com o homem de rosto inexpressivo parecia que iria chorar.

Um silêncio de catedral e uma insuportável onda de tristeza apoderaram-se das pessoas no vagão. Todos os passageiros voltaram-se para os seres humilhados e expostos à gozação naquele fim de tarde. Seres imperfeitos, ridicularizados e há tempos desonrados...

Ele sentiu-se aliviado por descer na estação do shopping.

***

Pareceu severo demais com as meninas, mas ao mesmo tempo acho que... estava certo - pensava enquanto caminhava pela plataforma que o levaria à entrada do shopping. Não pôde ficar indiferente a tudo o que tinha acabado de ver no metrô, mas não sabia o que pensar. Qual opinião formar sobre o homem de rosto inexpressivo e seu discurso? E sobre os deficientes? Pensar em uma forma de inclusão social deles parecia ainda pior. Ambos tão expostos, o que fazer? - filosofava.

Nesse momento de perplexidade, sua expressão se alterava dando-lhe ares de sociólogo preocupado com as camadas mais desamparadas. Nada mal, ainda mais quando se está indo justamente comprar um livro como o do Salgado - refletia.

Por mais sarcasmo que suas ações ou pensamentos pudessem conter, ele era uma pessoa que acreditava sinceramente na importância das causas sociais. Só não sabia como se articular para solucionar nenhuma delas.

Tais reflexões fizeram com que os ares de sociólogo preocupado com as camadas mais desamparadas desmanchassem-se. Em lugar daqueles ares vieram outros. Dessa vez eram ares de pessoa desolada frente a impotência e frente a incapacidade cotidiana de amenizar os sentimentos de seus iguais.

Mas aquelas novas sensações não duraram muito. Alteraram-se subitamente...para pior... Os sentimentos metamorfosearam-se em ares de desolação total.

Deus, por que ninguém do metrô ou do shopping o ajuda? - questionou-se ao avistar uma nova figura, uma de rosto ainda mais inexpressivo do que o homem de minutos atrás. Era um deficiente, dessa vez um jovem cujos danos não eram físicos como os daqueles homens vistos no metrô. Sua deficiência era pior: deficiência mental.

E está ali, sentado bem em frente à entrada do shopping e seus robustos seguranças. Bem no meio da plataforma e de sua arquitetura funcional. Bem no meio de todos nós e de nossa indiferença. Está lá... pedindo dinheiro... E eles do metrô dizem: "não deem dinheiro às pessoas nos vagões, colaborem diretamente com entidades de auxílio com reconhecimento público", ou coisa parecida. Poderia ser diferente, algo como: "não deem dinheiro a pessoas nos vagões, colaborem diretamente com o metrô para que as encaminhemos para entidades de auxílio com reconhecimento público..." - torturava-se.

Calma, não faça julgamentos precipitados homem! - acalmava-se afastando os ares de desolação total a favor de ares de sujeito comum.

***

Pouco tempo depois ele já estava na livraria. Caminhou até encontrar o novo livro do Sebastião Salgado que tanto queria.

Retirou um exemplar lacrado de uma pilha que estava bem no centro da loja e, de imediato, provou a força daquele trabalho. Nem precisou ver o exemplar, que estava à mostra, para verificar o peso das imagens. Nossa, deve ter mais de três quilos! Salgado é bom fotógrafo, mas realmente faz livros de peso - brincou consigo mesmo. Que falta de respeito homem! Nem parece que está aqui porque realmente compartilha dos conceitos do autor ou concorda com seu engajamento social. Vai logo pensando no tamanho e peso da edição! - puniu-se enquanto carregava com dificuldade o livro para outra parte da livraria.

Fazia agora ares de intelectual das artes que passeia por entre fartos petardos da cultura. Decidiu levar mais três ou quatro títulos que, ali, somados àquela espécie de monólito negro do filme "2001 - Uma Odisseia no Espaço", encarnado no livro do Salgado, totalizavam cinco quilos ou mais.

Não se abateu pelo peso, foi ao caixa com ares de crítico de artes, pagou orgulhosamente com seu cartão de crédito, agradeceu e foi-se em direção à saída.

Neste momento as circunstâncias mais uma vez seriam duras com ele. Exatamente quando passava pela máquina da saída, dessas que detectam se uma pessoa tenta furtar uma mercadoria, soou o alarme. Imediatamente veio uma vendedora e um segurança. Ela falou:

- Por favor senhor, queira se afastar e tentar sair novamente.

Obedeceu, mas foi inútil. O alarme soava cada vez que tentava passar.

- O senhor comprou mais alguma coisa em outra loja? - tornou a vendedora.

- Não, só aqui.

- Não pegou algo depois de passar no caixa?

- Não, oras!

- Mesmo sem querer? Quero dizer, por engano, ou...

Os ares agora eram de descrédito no que ouvia. A vendedora continuou a inquisição:

- Senhor, teremos que conferir a mercadoria.

Fez ares de humilhação, mas concordou. Novo testemunho da vendedora:

- Realmente, as mercadorias são todas daqui, a nota de pagamento bate, hum... ahhh... já sei, o selo desse livro não foi retirado - exclamou mostrando o Sebastião Salgado - o senhor vai precisar voltar ao caixa e pedir para retirar o selo, é ele que está fazendo o alarme soar.

- Mas se está provado que eu paguei pelos livros, por que teria que voltar lá? Concordo em ficar com um livro com selo mesmo - rebateu já sentindo raiva.

- Senhor, o senhor não pode sair da loja com o selo colado no livro, se o senhor decidir comprar mais alguma coisa em outro lugar do shopping, vai soar novamente.

- Mas eu garanto que não quero comprar mais nada.

- Senhor, as normas...

Fez ares de um condenado que enclausurou-se por engano em uma fortaleza kafkiana e implacável. Concordou e voltou ao caixa.

***

Já fora da livraria, mas ainda no shopping, pensou em acalmar a raiva tomando uma cerveja. Os livros? Já os detestava desde então. Eram agora um fardo pesado a carregar.

Escolheu um lugar bem próximo para não ter que carregar todo aquele peso. Viu um café bem em frente da livraria, então pediu à moça do caixa:

- Uma cerveja, por favor.

- Senhor, bebidas alcóolicas somente na praça de alimentação no último andar.

Quem tinha dito isso foi a única pessoa a ver a pior expressão que ele pôde fazer naquele noite. Uma expressão de ares encolerizados.

***

O engraxate entrou no Bourg La Reine, cumprimentou alguns motoristas, cobradores e ao ver a figura encolhida no balcão, brincou:

- Graxa aí tio?

- Estou de tênis moleque - respondeu.

- Raaaa, tá esperto hein tio? Só perguntei para o senhor acordar. Que cara triste é essa? - brincou enquanto colocava a caixa de engraxate ao lado da sacola de livros. Espantou-se:

- Nossa, tio! O senhor deve ser muito inteligente, quanto livro!

- Nem tanto garoto... quero dizer, nem tão inteligente.

- Bom, gosto de ler também tio, mas na minha área o importante mesmo é ficar bem apresentável, bem vestido, entende? Quantos engraxates o senhor já viu assim? A maioria se veste mal, não sabe conversar, tratar bem os clientes e tal - desafiava todo orgulhoso enquanto pedia um x-salada e uma coca.

Ele descontraiu-se um pouco. O garoto era verdadeiramente divertido, já o tinha visto muitas vezes no Bourg La Reine.

Bourg La Reine fica próximo ao metrô mais próximo de sua casa e é o boteco onde ele, às vezes, toma uma cerveja antes de seguir caminho. Seria lá, no meio de pessoas simples, e não no ambiente hermético e chato do shopping, que ele enfim saciaria a sede da cerveja.

O dono do bar, que já era seu amigo de longa data, o cumprimentou e prontamente colocou a cerveja sobre o balcão. Ele encheu o copo e ao sorver o líquido... quente... fez ares de perplexidade e pensou que talvez Bourg La Reine estivesse com algum problema no freezer ou mesmo nas suas instalações elétricas.

Não ligou muito. Aquilo, perto do que tinha passado no shopping, não era nada.

Minutos depois, ele já tinha se acalmado por completo, até fizera as pazes com os livros e folheava um deles. Ao lado, o engraxate acabara de receber o x-salada e a coca. Preparava-se para comer quando um outro garoto entrou no bar.

O novo menino era menor que o engraxate, trazia uma caixa com doces e tentava inutilmente vendê-los a quem estava por lá. Deu a volta no balcão e foi para o lado onde ele, dos livros, o engraxate e mais alguns clientes encontravam-se. Andava bem devagar, parecia cambaleante e, ao tentar oferecer os doces mais uma vez, as palavras não saíram. De repente a vista do menino dos doces escureceu e ele começou a cair.

Ele assustou-se, largou o livro e tentou socorrer o menino. O engraxate foi mais rápido e agarrou o garoto impedindo a queda.

- Tudo bem com você, filho? - perguntou o engraxate ao menino.

O jeito com que o engraxate tratou o menino dos doces chamou a atenção dele, dos livros. Imagine só, um menino chamar o outro de filho. Tudo bem, um é mais velho que o outro, mas a diferença de idade é tão pequena - pensou.

- Você tá com fome, né filho? Não deve ter comido nada hoje - disse enquanto colocava fraternalmente o menino no colo. Dirigiu-se ao dono do Bourg La Reine:

- Ei, traz uma faca e outro copo.

Então, diante dos olhos do homem dos livros, passou a cena que salvaria a noite.

O engraxate repartiu o lanche. Dividiu a comida que comprara com o esforço do dia de trabalho, sem pretensões de sair depois dizendo isso para todos. Talvez tenha feito aquilo por ter achado o mais justo a se fazer no momento, ou então, por simplesmente conhecer bem aquela situação.

Não o pequeno drama humano, mas a sua sublime solução, salvara a noite. Enfim tinha visto algo que fecharia, de uma forma muito boa, a árdua jornada urbana que traçara.

Ele tomou o resto da cerveja... quente..., despediu-se do dono do Bourg La Reine, olhou feliz para os dois garotos e saiu.

Ninguém mais o viu enquanto empreendia a caminhada final em direção ao ônibus. Se alguém o tivesse visto, provavelmente só repararia na sua dificuldade em carregar a sacola. Provavelmente não notaria os ares satisfeitos daquela estranha figura que carregava um monólito negro, tão pesado quanto deveria ser aquele do "2001 - Uma Odisseia no Espaço."

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