Minutos depois disso, Eric e Christian saíram para a rua. Christian
saiu primeiro. Os raios do Sol lentamente inundaram a face de Eric, que piscou,
tamanha sua intensidade. Ele sentiu a brisa suave tocar a maciez de seu rosto
com aquele morno vento. Percebera e aceitara, pois, a cruel verdade que o mundo
mudara; quem não havia mudado era ele.
Os dois saíram para além do portão e começaram a
caminhar. Christian pergunta:
- Algumas coisas mudaram. Mesmo assim. Lembra-se de alguma coisa que possa servir-nos
de referência?
Eric olhou ao seu redor. Tudo estava diferente.
- Não. Nada.
- Sua casa ficava perto do cemitério?
- Umas cinco quadras à frente do portão principal...
- E depois, não acredita em destino...
- Eu nunca disse isso... Para onde estamos indo?
- Precisamos ter uma referência... vamos até à frente do
cemitério e, lá, vamos tentar encontrar a sua antiga casa. Pode
ser, também, que não encontremos...
- Você é meio pessimista...
- Não sou pessimista. Sou realista. Na lavoura de minha existência,
não semeio fúteis ilusões.
- Todos precisamos sonhar...
- É uma pena que tenha dito isso...
- Por quê?
- Porque os mortos não sonham...
- Como assim?
Christian olha para Eric.
- Você não pode sonhar.
Christian continua andando em frente. Eric pára, com um olhar sério
e triste para o novo companheiro. Quando Christian já estava a uma grande
distância, não sentindo mais o calor do corpo de Eric, vira-se
e o vê ao longe.
- Também não é o fim do mundo! - grita - Você se
acostuma. Vem logo!
Eric caminha em direção a Christian com passos lentos e apertados,
como o gado que caminha para o matadouro. Christian o espera por alguns segundos,
Após, continua caminhando. Christian vira à esquerda, indo por
entre uns matos, descendo uma escada de barro previamente esculpida por alguém.
Eric começa a caminhar mais rapidamente. Os dois embrenham-se por entre
aquela minifloresta, com Christian sempre à frente de Eric. Os dois
param em uma trilha, uma estrada com somente grama no chão, como se fosse
cortada, como se fosse algo colocado ali de propósito.
- Eu sempre vou por aqui.
- Para onde estamos indo?
- Para o cemitério. Isso é um atalho.
- E essa estrada de grama, bem feita...
- Parte fui eu quem fez. - Christian olha para frente, um galho invadira o perímetro,
- Sempre tem uma planta que cresce além de seus limites.
Christian toca no galho, que seca. Eric entende o que o companheiro quis dizer.
Os dois continuam caminhando. A chuva da noite anterior deixara partes do caminho
encharcadas, fazendo a água molhar os sapatos dos dois e potencializar
o som de seus passos.
- Essa história de matarmos tudo que tocamos pode ser meio perigosa se
alguém tocar em nós por acidente... - considera Eric.
- Faça como eu. Use luvas e uma camiseta de mangas compridas. Você
não sente calor. Nem frio.
Os dois continuam caminhando em silêncio por longos minutos. Em dado lugar,
a trilha acaba. Christian desvia-se para a esquerda. Eric o segue. O albino
apoia-se num murinho de tijolos e sai para a direita. Eric sai da mata
e vê, à sua frente, o cemitério.
- E agora, Eric? Pra onde vamos?
Eric olha a paisagem em 360 graus. Aponta uma direção qualquer
e afirma:
- Para lá.
-Muito bem.
Christian caminha na direção indicada por Eric, que segue seus
passos. Eles entram em uma rua. Eric pára um instante, como se estivesse
reconhecendo algo. Fecha os olhos. Como um filme em avanço rápido,
Eric enxerga o caminho que deve seguir, dali até a sua casa. Eric passa
a andar a frente de Christian, com passos seguros e decididos. Eles caminham
por um longo tempo, com Eric sempre tentando reconhecer algo.
- Está tudo diferente, não é mesmo? - pergunta Christian.
- É. O mundo mudou. Falando nisso, você disse que ia me contar
um pouco sobre o que foi que mudou aqui desde o dia em que eu...
- "Morri"?
- É. Não gosto muito de falar nisso. Que história é
essa de república e independência?
- Olha, não sou nem fui professor de História, vou lhe contar
o que eu me lembro, pois estive presente em alguns fatos, outro, me contaram.
O que houve foi o seguinte: um ano depois da sua morte, em 1.815, o Brasil foi
elevado à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves, ou seja, esse
país deixou de ser colônia e ganhou mais autonomia administrativa.
- Nossa! E depois?
- Depois, em 1820, aconteceu em Portugal a Rebelião do Porto. Quem liderou
essa rebelião foram os grandes comerciantes portugueses, os ricos. Mas
ela espalhou-se por todo o país, e até aqui nasceram adeptos dela.
- Ta, mas o que era essa tal Rebelião?
- Os rebeldes, que venceram, criaram uma nova constituição para
Portugal. Essa constituição, que era liberal, limitava muito os
poderes do D. João VI. Sabendo disso, o monarca quis ficar aqui o máximo
de tempo possível, mas tropas portuguesas que estavam no litoral carioca
o fizeram regressar ao seu país em 1821.
- E daí? - Eric não conseguia esconder o entusiasmo.
- E daí que o governo do Brasil ficou nas mãos do filho do D.
João...
- O D. Pedro?
- Dom Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier
de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascal Cipriano Serafim de
Bragança e Bourbon, o próprio.
- Eu não acredito que você decorou o nome dele...
- Pra quem é imortal e não tem nada pra fazer... Ainda quero ver
a certidão de nascimento do cara... Mas, continuando: quando D. João
voltou para Portugal, o seu poder estava muito pequeno, O reino lusitano estava
sendo governado pelas cortes de Lisboa, que defendiam os interesses dos ricos,
dos burgueses! Eles queriam recuperar as economias portuguesas, que foi abalada
pela abertura dos portos e pelas guerras do tal Napoleão Bonaparte.
- Quem?
- Depois eu te explico. Eles queriam, para isso, começar tudo de novo:
recolonizar o Brasil, enfraquecendo a autoridade do D. Pedro, exigindo que ele
voltasse para Portugal. Os ricos brasileiros, temendo as consequências,
criaram um partido brasileiro. Esse partido fez um abaixo-assinado exigindo
que D. Pedro aqui permanecesse. Em 9 de janeiro de 1822, ele declarou "Se
é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga
ao povo que fico". E ele ficou. Desde então, D. Pedro tomou medidas
para limitar o poder de Portugal sobre o Brasil, mas, a situação
chegou a um ponto que não foi possível mais aguentar.
- E?
- Em 7 de Setembro daquele ano, às margens do rio Ipiranga, D. Pedro
bradou: "Independência ou Morte!"
- Independência ou Morte? Que coisa ridícula! Não tinha
nada melhor para gritar?
- Ter, talvez tivesse, mas na hora... Bem, aquilo não foi o final de
um conto de fadas com "e eles viveram felizes para sempre". Só
os ricos se beneficiaram, porque para os pobres, no dia seguinte, era tudo a
mesma situação sócio-político-econônica de
submissão e miséria.
- Ah...
- E o governo de D. Pedro não foi um mar de rosas. Outrossim, de espinhos,
pois o cara tentou, a todo custo, centralizar o poder. O homem que nos tornou
"independentes", entre aspas, conseguiu tecer uma imagem muito, mas
muito impopular. Em 1831, o cara abdicou em favor de seu filho e voltou para
Portugal, donde nunca mais voltou vivo. Só que tinha um pequeno detalhe...
- Qual?
- Quando D. Pedro I abdicou, D. Pedro II tinha só 5 anos de idade.
- Meu Deus! E aí?
- E aí o poder foi exercido por regentes, que deveriam governar o país
até que o Pedrinho não fosse maior. E aconteceram várias
revoltas, uma grande briga pelo poder. No final, em 1840, eles resolveram antecipar
a maioridade do garoto, que assumiu com 15 anos...
- Uau! Quase com a minha idade!
Christian vira-se para Eric.
- Eric, só para lembrar, quantos anos você tem?
- Cat... Cento e catorze...
- Isso. - Tornando a andar para frente, Christian prossegue - Centenas de revoluções
depois, o mundo inteiro estava pressionando países que ainda tinham o
regime de escravidão a acabar com ele. Em 1888, a princesa Isabel assinou
a Lei Áurea, que acabou definitivamente com a escravidão no Brasil...
- Meu pai ia gostar de saber disso...
- Não, não ia. Mesmo sendo livres, os negros não tinham
dinheiro para trabalhar por conta própria, estudar, e a maioria acabou
voltando para as fazendas, fazendo a mesma coisa que sempre faziam....
- Que droga...
- Já nessa época, o império estava em crise. Em 15 de Novembro
do ano seguinte, o marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República,
tornando-se o primeiro presidente brasileiro. - Christian volta a se virar para
Eric - Mas isso tudo só serviu para demonstrar uma coisa: os ricos sempre
dominaram e sempre vão dominar os mais pobres. Sempre. Em muitos casos,
eles vão usar os pobres, iludindo-os, para alcançar os seus objetivos.
- Eu creio que, um dia, isso não será mais verdade.
- Então sua crença é vã. Os mais fortes sempre dominarão
os mais fracos. É a lei da selva. É a lei da vida. O que move
o mundo é o dinheiro. Os ricos me dão nojo. São um ninho
de serpentes, preparadas para dar o bote naquele que está ao lado. O
pobre, se perde tudo que possui, reconstrói sua vida sem que muita gente
saiba; O rico tem um nome. Uma marca, uma reputação. Eis que se
um rico cair, ele dificilmente se levantará plenamente de novo. É
por isso que a elite, e o governo, que foi corrompido pela elite, não
deixam os pequenos crescerem, pois os ricos estão cercados de um único
sentimento: o medo.
Eric pisca e suspira fundo.
- É... mesmo não concordando com toda essa sua última afirmação,
devo reconhecer que você está certo. E, para um cara que disse
que nunca foi professor de história, ate que você deu uma verdadeira
aula...
- Obrigado...
- Bem, pelo que eu me lembro, a rua era essa, mas está tudo mudado...
- Você já disse isso! Vamos começar. Da posição
que nós estamos, sua casa ficava à direita ou à esquerda?
- À... esquerda...
Os dois passam a olhar casa por casa, mas Eric não consegue reconhecer
o seu antigo lar.
- Não está aqui...
- Tem certeza que a rua é essa?
- Tenho... acho que tenho...
Eric pára e fica olhando uma casa pintada de marfim. Por um minuto, pensara
ser aquela a sua casa, mas devido a alguns detalhes, logo mudou de ideia.
Parado, entortando seu pescoço para um lado e para outro, não
percebeu que Christian se afastara, analisando outra casa, mais à frente.
Impaciente, Eric pergunta:
- O Gabriel não te mostrou o lugar onde eu morava?
- Não. Escuta... sua casa era grande ou pequena?
Eric fez alguns cálculos mentais.
- Média... Também tínhamos um sítio, que era bem
grande...
- Sei... - dizia sem parar de analisar a casa à sua frente - Ela tinha
uma abertura, com uma silhueta, na frente, que dava para uma área, sendo
que a porta estava localizada bem à frente de quem a visse?
- É... tinha...
Christian andou um pouco mais para a direita.
- Quantas janelas ela tinha na lateral direita?
- Meu Deus... Acho que cinco...
- Qual era a cor da casa?
- Branca.
- Agora é verde.
Eric vira-se para Christian e anda em sua direção. Fica à
esquerda deste e olha aquela casa, pintada com um verde escuro. Não podia
ser aquela. Olhou bem o imóvel. Lentamente, aquela residência transformou-se
na casa que Eric passara toda a sua vida. Christian falou:
- Eu deduzi, pelo que você me disse. Também, tenho olho clínico,
mas posso estar enganado...
Colocando as mãos na cabeça, Eric exclama:
- Meu Deus! O que foi que eles fizeram com a minha casa?
- Alteraram de acordo com o gosto deles...
- Mas esse troço ficou horrível!!! Eles são loucos!
- Eu não ia querer morar numa casa igualzinha a que toda uma família
foi assassinada.
Eric concordou. Reconheceu que o portão era o mesmo; correu em direção
a ele. Tentou abrir o portão menor: estava chaveado com um cadeado. Pôs-se
a escalar a grade quando Christian o puxou para baixo.
- Pára! O que você está fazendo?
- Como o que eu estou fazendo? Eu preciso entrar...
- Eu sei, mas não desse jeito! Somos Exterminadores de Alma, não
ladrões.
- Eu não tenho a chave. Se não entrarmos assim, vamos entrar como?
- Observe.
Christian deixa seu corpo reto e fecha os olhos. O menino transforma-se em um
esqueleto que, rapidamente, vira pó. O pó, entretanto, não
cai no chão: vai reto, para além do portão, e reconstrói
o corpo. Eric olha aquilo assustado:
- Você deve estar louco se pensa que eu vou fazer isso...
- É só fechar os olhos e desejar estar aqui, deste lado do portão...
- Eu não vou conseguir...
- Claro que vai. Todos conseguem.
Eric fecha os olhos, cético. Seu corpo decompõe-se como o de Christian,
e ele fica ao seu lado.
- Viu? Não deu certo...
- Como não? Abre os olhos!
Eric abriu os olhos. Quase não podia acreditar: estava dentro do pátio.
Virou-se e viu que o portão estava atrás dele.
- Mas... como? Eu não senti nada!
- E por acaso eu falei que você ia sentir alguma coisa?
Christian caminha e pára em frente à porta. Eric chega a sua direita.
O albino decompõe-se e suas cinzas passam por de baixo daquele obstáculo.
- Acho que não vou me acostumar tão cedo com isso... - murmura
Eric.
Eric passa. Do outro lado, as cinzas erguem-se, formando um esqueleto, que logo
se transformara em seu corpo. Antes que ele fizesse qualquer coisa, Christian
o adverte:
- São cinco para as dez, agora. Os habitantes, se não saíram,
devem estar acordados. Deseje, mentalmente, que ninguém perceba sua presença,
e você não será visto...
- E se não funcionar?
- Algumas coisas são simples, aceite isso.
Eric anda pela sala, observando atentamente o local. Os móveis são
diferentes, mais simples. As paredes, outrora beges, haviam sido pintadas de
branco. Nelas, quadros com fotos dos novos habitantes. Saindo da sala, seguindo
em frente, Eric depara-se com a cozinha, completamente modificada... e maior.
Aponta para a esquerda, olhando para frente.
- Havia uma dispensa ali... eles tiraram...
- É... até que a sua casa era uma casa de rico.
Eric vira-se para Christian:
- Você tem alguma coisa contra os ricos?
- Tenho.
- Nós não éramos ricos. Tínhamos apenas o dinheiro
necessário para sobreviver.
- Conversa! Essa casa desmente você!
- Pois fique sabendo que essa casa foi construída com o nosso suor,,,
- Ah, por isso que tem esse cheiro...
Ouviu vozes vindas dos fundos da casa. Caminhou para a direita e parou em frente
a uma porta que já conhecia. Pensou: o que encontraria ali? Pôs
a mão na maçaneta redonda e começou a girá-la lentamente.
- Poderia passar por baixo...
- Eu não quero.
Ao abrir a porta, deparou-se com o que um dia fora seu quarto. Entretanto, seus
olhos o fizeram uma surpresa: o cômodo estava pintado de rosa, com móveis
tons pastel e a cama levemente mudada de lugar, mesmo que aquela não
fosse sua cama. Eric logo percebeu que alguém estava dormindo ali, abafado
até as orelhas. Lentamente, pôs-se a caminhar na direção
daquela pessoa.
- Você dormia aqui?
- Dormia.
- Gostei da cor das paredes...
- Não é original...
Suavemente, Eric pegou a extremidade do cobertor e puxou-a para baixo, descobrindo
o corpo de uma bela menina, com cabelos negros da cor da noite e com uma face
invariavelmente angelical. Os dois ficaram olhando por um longo tempo para ela
quando Christian disse:
- Deve ser a filha do casal... Devem ter dado o quarto para ela.
- É.
Eric olhou para a parede à sua frente. Prateleiras de madeira estavam
pregadas nela. Umas duas, repletas de bonecas, de louça, de pano... Eric
continuou a olhar o quarto e a sentir saudades de sua antiga vida. De repente,
percebe um homem, alto, moreno e com um volumoso cavanhaque parado na porta,
olhando assustado para ele.
- Christian... - sussurrou.
- Quem é você? - pergunta o homem - como entrou aqui?
Christian vira-se para Eric.
- Eric, eu não falei para você pensar não querer ser visto?
- Eu pensei... acho que não deu certo...
O homem, impaciente, começa a andar na direção de Eric.
- O que você quer com a minha filha?
Christian pega Eric por trás e cochicha no seu ouvido:
- Hora de dar no pé.
Os dois se transformam em esqueletos e, depois, em cinzas, que atravessam a
parede. O homem, porém, apenas vê o que ocorre com Eric e quase
cai para trás quando a transformação ocorre. Desesperado,
toca sua filha para ver se está bem, e passa a correr, pelos fundos,
para o pátio da casa.
Eric e Christian se materializam em frente ao portão. Eric caminha uns
passos para a direita e põe a mão na testa, cabisbaixo:
- O que foi que deu errado?
- Tudo. Pra começar, você não tinha nada que abrir aquela
maldita porta. Ou melhor: pra começar a gente não deveria nem
ter vindo aqui...
Eric olha para Christian com uma aparência cansada.
- Desculpe...
- Tudo bem, é o seu primeiro dia... você tem muito que aprender.
Vem, vamos sair daqui antes que mais alguém nos veja.
Os dois se transformam em pó e são levados pelo vento.
O homem chega em frente ao portão, olhando incrédulo e assustado
para todos os lugares. A sua esposa chega e pergunta-lhe:
- Mas o que foi que deu em você?
- Tinha um garoto no quarto da nossa filha... Não sei por onde entrou
mas você não vai acreditar se eu lhe disser como foi que ele saiu...
- Um garoto? - a mulher faz uma pausa, como se estivesse lembrando de algo -
ele era loiro e de olhos verdes?
O homem olha espantado para sua esposa.
- Sim. Conhece ele?
A mulher faz o sinal-da-cruz, não escondendo seu pavor.
- Meu Deus... Um fantasma...