Aquele crime simplesmente chocou a sociedade carioca. Dr. Barcelos, após
seus atos pecaminosos e hediondos, fugiu junto com seus homens. Todos ficaram
traumatizados com os momentos de tensão os quais viveram.
A polícia chegou rápido, isolou o local, ouviu depoimentos. O Dr.
Barcelos foi preso no final do mesmo dia, na estação ferroviária,
quando tentava comprar uma passagem para São Paulo.
Eric e seu pai foram enterrados no dia seguinte, em um túmulo improvisado
do cemitério, no qual já estavam sepultados os avós do garoto.
O túmulo era feio, revestido com quadrados de granito pretos. Mais de cem
pessoas compareceram ao enterro, mais por causa de Eric: todos os colegas de escola,
todos os professores... todos rezando, para que ele tivesse um descanso eterno
e, principalmente, paz. Da família Braesnovenn, Norma foi a única
sobrevivente, mas seria melhor que também tivesse morrido, pois sua mente
não suportara tamanha pressão.
Quando os coveiros iam descer o caixão, ela interveio, gritando histérica
para que não levasse o seu filho. A fineza da elite carioca dera lugar
à loucura. A mulher teve de ser retirada por médicos, para não
causar um constrangimento ainda maior. E esse foi o destino de Norma Braesnovenn:
a loucura, a insanidade, a solidão. Ela achava que todas as pessoas as
quais via, passava por ela, eram o Dr. Barcelos, e que ele ia terminar o que começou.
Tomada pelo medo, isolou-se em sua residência, outrora repleta de alegria
e vida, mas agora tomada pelas trevas. Trancou-se em seu quarto, não permitindo
que lhe dessem de comer ou beber. Além de temer pela vingança do
Dr. Barcelos, ela esperava por Eric, esperava que seu filho viesse abrir a porta
e dizer que estava tudo bem e que eles poderiam voltar a viver alegremente.
Os fatos foram notícia na região, e espalharam-se por todo território
nacional. Por mais de um mês e meio, não se falava de outra coisa.
A igreja foi fechada pela polícia por umas três semanas mas, mesmo
depois de reaberta, ninguém mais tinha coragem de assistir a uma missa
naquele local.
Dr. Barcelos foi condenado à morte por enforcamento mas, um dia antes do
cumprimento de sua sentença, ele desapareceu misteriosamente da cela. As
buscas se intensificaram. A notícia, dada de forma incorreta, apenas agravou
a loucura e o sofrimento de Norma. Na verdade, o Dr. Barcelos nunca mais fora
encontrado.
Dois anos depois dos fatos ocorridos, em 1.816, Norma Braesnovenn faleceu em seu
quarto, agora imundo. Morreu sozinha, alimentando uma vã esperança.
Enterraram-na no mesmo túmulo do filho e do marido: Eric havia sido sepultado
em cima de seu pai; ela foi colocada ao lado do marido. O túmulo, que desde
1.814 tinha uma parte com as pedras de granito e outra apenas grosseiramente rebocada,
justamente a parte que o aumentou, com doações da comunidade conseguiu
ser todo forrado, tornando-se algo mais decente.
A casa ficou abandonada, ninguém quis morar lá por um bom tempo,
mas os dias foram passando e ela encontrou novos moradores.
E este poderia ter sido o fim dessa historia, a não ser por um detalhe:
o que há depois da morte?
Não se envergonhe em dizer que não sabe, pois ninguém conhece
essa resposta. De fato, quando chegarmos a, finalmente, desvendar o mistério,
não poderemos contar nossa descoberta para ninguém.
Mas, o nosso mundo é desse jeito por causa das diferenças. Assim
como a morte, a vida é capaz de manifestar-se nas circunstâncias
mais adversas, nos lugares mais improváveis, das formas mais estranhas
e inesperadas.
Ao invés de morrer como todo mundo, algo estranho aconteceu com o garoto:
um fiapo de consciência permaneceu em seu corpo. Uma consciência,
muito pequena, insignificante, imperceptível, mas que estava lá.
Descansando, dormindo, uma verdadeira "consciência inconsciente".
Eric permanecia vivo, de certa forma, naquele fiapinho. Dormindo um sono mais
profundo do que qualquer pessoa poderia dormir, alheia a tudo que acontecia ao
seu redor, sem ouvir, sem falar, sem cheirar, sem ver ou sentir nada, mas ele
estava lá, dormindo.
E, um dia, ele acordou.
- Mãe!!!!
Essa foi a primeira coisa que disse, ou que pensou que disse. O menino logo percebeu
que algo estranho estava acontecendo: a única voz que ele ouvia era a voz
de seus pensamentos.
- Mãe!!! Pai!!! Cadê todo mundo? Por que está escuro desse
jeito? Eu não posso abrir os olhos, não posso me mexer... Socorro!!!!
Eu não consigo falar... Tem alguém aí? Alguém está
me escutando???
Eric sabia que não... aquela era a voz de seus pensamentos e ninguém
podia escutar pensamentos. Como ele ia pedir socorro se não conseguia falar?
Eric ficou aflito, com medo, até que adormeceu de novo.
Ele dormiu por um longo tempo, mas não percebeu isso. Certa vez, acordou
de novo.
- Ai, o que está acontecendo? Nossa, que cheiro é esse? Parece carniça!
- Eric nada via, tudo em seu campo de visão estava tomado pelas trevas
- Arg... acho que vou vomitar... Engraçado, não sinto meu corpo...
o que foi que aconteceu comigo? O Dr. Barcelos... Ele atirou em mim... atirou
no meu ouvido... Isso deve ser um delírio, eu devo estar num hospital...
devem ter me dado... anestesia?
Eric dormiu de novo. Da outra vez, ele acordou ouvindo uma voz suave, mas não
conseguia entender direito. Concentrou-se, prestou o máximo de atenção
que conseguia: não era uma voz, eram várias vozes: vozes de senhoras
rezando Ave-Marias, Padre-Nossos...
- Tirem-me daqui!!! Socorro!!! - gritava com os pensamentos
As senhoras continuaram as orações, ignorando o apelo. Nisto, Eric
pensou que estivesse morto, mas logo desistiu da ideia: não poderia
estar morto, não poderia ser, aquilo, o post-mortem, ele simplesmente
não aceitava uma coisa dessas.
Sono.
Tempos depois, Eric percebeu que estava dentro de um "rio" e que água
estava caindo sobre o seu corpo.
- Está chovendo e eles me deixaram aqui, me molhando? Afinal de contas,
o que está aconte... - Eric sentiu algo estranho em sua perna direita e
gritou com todas as forças, em pensamento - SOCORRO!!! TEM ALGUMA COISA
ME COMENDO!!!! Sai daí, não!!! - Eric queria se mover, mas não
podia.
O fiapo de consciência voltou a dormir. Da outra vez que acordou, foi para
fazer um apelo:
- Senhor, eu sei que não fui um bom filho, mas ajudai-me, mostre-me o que
está acontecendo e livra-me da dor, do medo, da angústia e do desespero...
Amém...
A consciência ficou inerte por mais tempo que as outras vezes. Certo dia,
Eric começou a ouvir um barulhinho ao longe, algo repetitivo. Logo, o garoto
identificou o som, primeiro como sendo marteladas, ou algo parecido... depois,
como pedras caindo sobre uma superfície de madeira. Ele pensou em pedir
ajuda, mas sabia que não iriam ouvir.
De repente, ele sentiu ser empurrado para baixo, para o lado, para frente...
- O que é isso? O que está acontecendo? Que estão fazendo
comigo?
Eric distinguiu algumas vozes bem próximas: eram dois homens.
- Não, esse deve ser o garoto!
- Eu sei, mas podem dar um bom dinheiro por ele...
- Se quiser pegar, vai, mas eu acho que não é uma boa ideia...
O menino não entendeu direito do que eles estavam falando mas, de repente,
algo aconteceu: sua visão, que desde o momento fatídico era apenas
trevas, foi invadida por uma forte luz vermelha, vinda da direita. Na verdade,
era infravermelho, mas ele nem sabia o que era isso. No campo de visão,
agora da cor do sangue, ele distinguiu o vulto de dois homens. O da direita disse:
- É, ta intacto...
- Ah, claro... tão intacto que ta apodrecendo...
- Cala a boca... pega a cabeça dele...
- Eu não. Pega você,
O homem aproximou sua mão. Eric queria sair dali. Ele não sabia
se os homens poderiam ajudá-lo, mas eram os únicos para quem poderia
pedir ajuda. Ele reuniu toda a sua força, vinda não se sabe da onde,
para fazer um único gesto de apelo...
- Salvem-me!!!!
Dessa vez, a voz inconsciente produziu seus frutos: Eric ergueu sua mão
direita contra o homem, que caiu para trás. O garoto apenas viu os dois
homens assustarem-se e correrem:
- O que é isso?
- Ele ta vivo!!!
- É o Juízo Final!!!
- Eu disse que esse negócio não era boa ideia!!!!
Agora, Eric estava assustado. Afirmou sua outra mão na superfície
e levantou-se, já percebendo algo estranho. Olhou para baixo...
- O que é isso? Meu Deus!! Cadê minha pele, minha carne? Eu sou um
esqueleto!! Eu morri!!! Socorro!!!!
A voz transformou-se em ar, que passou pelas expostas laringe e faringe, produzindo
um ruído asqueroso. Eric estava diante daquilo que ele descobrira que tinha
mais medo: ele próprio.
Mais do que assustado, Eric queria sair dali. Ele não queria ser um esqueleto,
queria ser um garoto normal como ele era! Caminhou para a esquerda. Sem ver, tropeçou
no lado de dentro do caixão e caiu por terra. Deitado, viu à sua
frente, naquele infravermelho inexplicável, o vulto daquele homem de sobretudo.
Eric estendeu sua mão em direção a ele, como se pedisse,
naqueles grunhidos, que o salvasse. O homem, então, retirou do bolso direito
do sobretudo o colar que ele havia pegado em Évora. A caveira do colar,
na visão de Eric, era mais brilhante que o Sol. Eric retirou suas pernas
de dentro do caixão e protegeu seu rosto com as mãos.
- Calma, Eric... fica quieto.
Antes que Eric pudesse pensar "Como esse cara sabe o meu nome?", o homem
de sobretudo preto atirou o colar contra aquele esqueleto. Eric sentiu um formigamento
em todo o seu corpo. Houve uma explosão, que atirou o homem longe.
- Agora não depende mais de mim... - pensou ele.
A visão de Eric voltou a ser tomada pelas trevas. O garoto, então,
percebeu que estava caindo e girando. Nisso, ele vê, ao longe, um minúsculo
pontinho vermelho, O pontinho vai aumentando cada vez mais e revela, nele, uma
cidade, como Veneza, mas sobre um mar de lava. Eric é lançado com
força contra o mar e nele afunda. O calor e a dor são imensos. Com
muito esforço, o esqueleto consegue nadar para cima, emergindo a cabeça
e gritando. Repentinamente, dois homens com asas, vindos de cima, mergulham no
mar e, ilesos, retiram-no deste, lançando-o por terra. Com enorme dificuldade,
Eric eleva sua cabeça para cima, quando percebe, à sua frente, o
vulto de um grande homem, com chifres e asas de morcego. Ele está segurando
um cetro. O ser das trevas aponta-o para Eric que, novamente, perde todos os sentidos.
O que era escuro dá lugar a uma claridade cegante. Branco total. Eric tenta
fechar os olhos, mas não consegue. Lentamente, aquela claridade insuportável
vai se enfraquecendo, e o branco dá lugar ao azul do céu, com suas
poucas nuvens.
Eric pisca. Lentamente, ele sente o frio daquele solo envolvendo toda a parte
anterior do seu corpo. Ainda confuso, ele levanta-se e vê o homem de sobretudo
caído no chão. Fica olhando aquilo por um bom tempo, quando se vira
para a esquerda. Vê um caixão quebrado no chão e um túmulo
semiaberto. Instintivamente, ele vai até o túmulo ler a pedra.
O misterioso homem de sobretudo levanta-se, com sua mão direita na testa.
Ao abrir os olhos, ele enxerga Eric, com a medalha a qual ele conseguira em 1.799
sendo sua única peça de roupa, apoiando suas mãos naquela
sepultura e lendo as inscrições da lápide:
VLADIMIR BRAESNOVENN
* 12/11/1775 + 11/09/1814
ERIC BRAESNOVENN
* 30/04/1800 + 11/09/1814
E, logo embaixo, com um tipo de letra diferente, como se remendado, a inscrição:
NORMA BRAESNOVENN
* 01/06/1778 + 05/05/1816