A Garganta da Serpente
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O EXTERMINADOR DE ALMAS - ÚLTIMO CAPÍTULO

(André Ferreira Machado)

"Para chegar à bolha do tempo, deixe o vento conduzir as suas cinzas e mantenha os olhos fechados. O vento conhece o caminho e o levará até seu destino", eram as palavras de Gabriel que não saíam da cabeça de Eric enquanto ele fazia aquela insólita viagem. À sua frente, apenas trevas e uma única certeza: tenho que salvar o Christian. Mas, por quê? Ele não era exatamente o que Eric poderia chamar de amigo mas, inexplicavelmente, alguma coisa dentro dele dizia que ele tinha que fazer o que Gabriel ordenara.

A viagem parou. Eric sentiu seu corpo reconstruído e em pé, num local com uma leve brisa quente. Abriu os olhos. À sua frente, viu apenas o branco, sem chão, nem teto, nem paredes. Apenas o branco, nada mais.

Virou-se e percebeu um velho, vestido em trajes antigos, embalando-se numa cadeira de balanço, com uma grande bengala em suas mãos. Seu rosto era completamente enrugado. Era quase como se fosse um cadáver vivo.

- Enfim, você chegou... Não sabes por quanto tempo eu esperei por esse momento.

- O quê? De novo? Parece que em cada lugar que eu vou tem alguém me esperando...

O velho mostra um sorriso tímido.

- Eric, sempre com suas piadinhas nas situações mais adversas...

- Não tenho tempo para piadas. Preciso salvar meu amigo antes que ele seja morto...

O velho inclina-se para frente e apoia suas mãos na bengala.

- Seu amigo? Tem certeza que ele é seu amigo? - Eric abaixa a cabeça e fecha os olhos - Veja a si mesmo. Está em dúvida. Você não quer salvá-lo, mas precisa. E por quê? Porque Gabriel mandou você fazer isso. Mas você não quer fazer... Você não precisa fazer...

Eric olha nos olhos do velho.

- Eu preciso fazer isso. Se não o fizer, nunca mais verei os meus pais de novo...

- Seus pais... você gostava deles?

- Muito.

- Não é o que parece. Você reclamava que a sua mãe não lhe ouvia, não te deixava escolher o seu futuro. Não respeitava aquilo que você queria ser.

- Olhe para mim. Acha que, um dia, eu quis ser isso que eu sou agora? Acha que um dia eu desejei ser... um assassino?

O velho pisca e sorri.

- Você é sincero. Você não tem medo nem vergonha de dizer o que você é. Gosto disso.

- Vai me ajudar?

- Você pode vencer todos os seus inimigos sozinho, sem a ajuda de nada, nem de ninguém, mas...

- Ainda não estou preparado para fazer isso...

- Exatamente.

- E então?

- Quando você sair daqui, terá tudo que precisa, mas a maior arma... continuará sendo você.

- Vai me dar armas?

- Foi a melhor ideia que tive para resolver esse problema em curto prazo, desculpe...

Eric olha para trás, por um instante, e volta a encarar o velho.

- Se isso é a bolha do tempo, onde está todo o "lendário" arsenal tecnológico do presente, do passado e do futuro?

- Em algum lugar. Só entregamos aquilo que é necessário. Cada um tem a sua bolha do tempo. Esta é a sua.

- E quem é você?

- Eu sou você. Sou aquilo que você seria hoje, se aquela fatalidade não tivesse ocorrido. - o velho fecha os olhos - Agora vá. Você tem muita coisa a fazer. Faça o que achar certo.

Havia uma velha fábrica de aço no meio de uma das poucas florestas que ainda restavam naquela grande cidade. Era um complexo gigantesco e abandonado que, naquele dia, parecia excepcionalmente estar trabalhando. Eric aproximou-se do portão de zinco que trancava a abertura da fábrica. Passou a mão nele. Percebeu um pequeno vão entre as duas folhas. Passou por ele.

Era um local escuro e assustador. Eric não conseguia enxergar nada. Notou algo se mexendo perto de seus pés: eram ratos procurando comida. Eles passaram. Eric continuou andando, bem devagar. Havia um pouco de fumaça no ar. A temperatura estava bastante elevada. Eric confundia-se com as trevas quando, de repente, pisou em uma rede, que subiu e prendeu-o no ar. Ele gritou.

- Droga...

Olhou para baixo. Três cães, de duas cabeças cada, aproximavam-se ferozmente do local. Olhou para cima: uma serpente metálica entrava na rede. Colocou a mão na cintura. Pegou a espada.

- Não... corra...

Com um golpe, sacou a espada e cortou a rede, caindo no chão. Um cachorro veio para cima dele. Eric chuta-lhe. O cachorro fica flutuando no ar. O garoto levanta-se e, com a espada, parte o animal ao meio, horizontalmente. A serpente metálica lança-se sobre ele. Eric tenta se livrar daquela coisa. A serpente tenta cuspir ácido nos olhos dele, mas o garoto consegue desviar o golpe. Os dois cachorros começam a morder as pernas de Eric. Com o pé direito, Eric chuta um dos animais longe, lança a serpente sobre ele, que o morde acidentalmente, fazendo-o se desmanchar. O outro cão continuava a morder-lhe. Eric toca nele: não há resultado; pega a espada e corta-lhe as duas cabeças.

Levanta a perna da calça: as pernas estão ensanguentadas. Fica olhando aquilo: os ferimentos cicatrizam. Olha para frente: a serpente de metal está vindo em sua direção. Eric recua, sempre com a espada à sua frente.

A serpente lança-se sobre ele. Eric corta-lhe ao meio. As duas partes caem no chão e se regeneram: agora são duas serpentes.

- Ai, não...

Ele pensa que, talvez, fosse o jeito com que tivesse cortado a criatura. Uma delas dá-lhe um novo bote: dessa vez, Eric corta-a na horizontal, separando os maxilares. Não adianta: agora são três serpentes.

- Tenho que parar de cortar essa coisa... Esse não é o caminho...

O garoto caminha assustado para trás. Uma das serpentes impulsiona-se para frente, flutua no ar e vai na sua direção a ele. Eric, com sorte, consegue pegar no pescoço do ser.

- Seja boazinha... como é que você morre?

A serpente arregaça a sua boca, mostrando suas longas presas. Um novo ataque ácido seria iminente. Eric afasta a serpente, que começa a enroscar sua cauda no braço de Eric. Ele aperta o pescoço com força. A serpente começa a demonstrar dificuldade para respirar, deita a cabeça e se desmancha.

- Obrigado...

As outras duas serpentes estão prestes a atacar. Eric às atira para cima e corta-lhes as cabeças. As duas morrem.

O menino recolhe a espada e corre para frente, onde há um grande salão escuro. Vai em direção a uma parede e encosta-se nela. Saca duas pistolas, uma em cada mão, girando-as com o indicador. Lentamente, olha para o corredor, pelo lado, tentando manter-se oculto. Ele não vê nada. Cuidadosamente, sai de seu esconderijo e caminha com cuidado rumo ao desconhecido, Olha para todos os lados: nada.

De repente, fortes luzes acendem-se no teto. Eric chega a fechar os olhos, tamanha a claridade. Ouve o barulho dos passos de vários homens. Abre os olhos: aquele lugar, antes deserto, agora está repleto, nas laterais, de homens com roupas camufladas, fortemente armados e com todo o seu arsenal apontado para ele.

- É... eu queria saber onde era o banheiro...

Eric corre para frente. Os homens começam a atirar. Ele atira para os dois lados, correndo feito um louco. Seus tiros são inúteis, mas as balas que os homens atiram atravessam o corpo do garoto, que não sente dor. Já na metade do percurso, ele vira-se para a esquerda e concentra toda a sua munição num soldado. O homem cai, com o sangue jorrando. Os outros continuam a atirar pelas costas. Eric continua com sua estratégia. O homem que estava ao lado do primeiro cai, mas não morre. Passa para o terceiro, quando ouve um clique. Aperta um botão nas duas armas: os cartuchos, paralelepípedos, caem no chão. Eric leva as duas armas ao cinto e carrega-as. Continua atirando. Mais um homem cai. Vira-se: um soldado está vindo com tudo em sua direção! Eric impulsiona-se para cima e caminha no ar, chutando o peito do soldado. Quando ele estava caindo, Eric, com seu pé, o faz subir. Guarda uma das armas, pega a espada e corta o homem em quatro partes: duas horizontalmente e duas verticalmente. Ainda com o corpo no ar, ele guarda a espada nas costas, saca duas pistolas e atira. Partes do homem que estavam voando são estraçalhadas. Vários outros homens caem e morrem. Com o corpo imóvel, Eric impulsiona-se para frente e aproxima toda a sua carga de um homem que estava atirando. Seu rosto fica desfigurado e o garoto esconde-se no pilar atrás do compartimento onde a vítima estava. Seis soldados vêm em sua direção: dois pela esquerda e quatro pela direita. Eric corre para a esquerda. Um soldado tenta atirar. Eric impulsiona-se para cima e tira sua arma com um pontapé. Impulsiona-se para frente e toca o rosto dele, transformando o adversário em cinzas. O outro homem vem raivoso. Eric, com seus poderes, faz a arma do primeiro vir até a sua mão e estraçalha, com esta, a face do oponente. Vira-se e atira em direção aos outros quatro que estão vindo. Atira sem parar: até que todos caiam e que ele ouça o clique seco das duas metralhadoras.

Rapidamente, corre para frente de um pilar. Ele pode sentir as balas perfurando a face contrária do concreto. Segurando uma arma em cada mão, ambas apontadas para cima, ele suspira fundo:

- Eu não posso continuar fugindo...

O garoto guarda as duas pistolas na cintura. Abre o sobretudo: nele, há um lançador de granadas. Ele o pega e sai de seu esconderijo. Os soldados vêm em sua direção, por todos os lados, fechando-o em um círculo. Eles chegam cada vez mais perto. Cada vez mais rápido.

Eric explode uma granada, junto com si mesmo. Há uma grande explosão, que atira os soldados para trás, fazendo-os girarem no ar. Durante o giro, seus corpos são despedaçados. Após o impacto, eles caem no chão e o garoto se reconstrói, sendo o único "sobrevivente".

Salta por cima deles. Mais dois soldados - os últimos - estão vindo em sua direção. Ele corre, desviando-se para a direita. Caminha pela parede esquerda. Um dos homens vem com tudo. Eric o toca, desmanchando-o. O outro começa a atacá-lo com socos. O garoto defende-se de todos os golpes com o braço esquerdo, chuta-lhe o joelho e toca sua mão, dando-lhe o mesmo fim. Caminha até o final do corredor, quando vê o seu temível destino.

- Essa porta...

Neste instante, compreendera o sonho que tivera na Igreja: era uma profecia. Era o futuro. Era o agora. Caminhou lentamente. Dessa vez, não havia nenhum canto gregoriano acompanhando-lhe. Não havia nada, a não ser aquilo que ele já sabia que o estava esperando. Pôs a mão na maçaneta. "Abro ou não abro?", pensou. Ele temia por aquilo, apesar de tudo, mas a vida de Christian estava em jogo. "Christian? Quem é Christian? Por que eu estou salvando ele? O que eu estou fazendo aqui? Por que eu tenho que fazer isso?"

Fechou os olhos. Lembrou de sua mãe na carruagem: "Foi meu primeiro filho... eu perdi. Depois, eu e o seu pai tentamos de novo, após vários anos, e aí tivemos você.". Não, não podia ser! Mas, e se fosse? Só havia um jeito de saber: ele abriu a porta.

Saltou sobre os homens, como no sonho, e foi atingido. Caiu e ficou muito tempo ali, inerte. Sua mente viajou para outro lugar. Completamente branco, onde não havia nada: somente ele... e Gabriel.

- Está na hora, Eric, de você entender, finalmente, que tudo isso possui uma relação com algo maior, e um objetivo que precisa ser cumprido.

Houve um flash, e ele voltou à realidade. Inclinou a cabeça para a esquerda. Com a visão embaciada, percebeu Gabriel, ao seu lado.

- Você precisa continuar. Levante-se.

Eric fechou a mão direita lentamente. Fechou os olhos e se desmanchou. Reconstruiu-se, de pé, sem ferimento algum. Os dois gângsteres perceberam isso e voltaram. Eric pegou suas duas pistolas e deu um tiro com cada uma: uma bala, para caga gângster, que voou lentamente, impressionando o ar, do cano ao peito, fazendo-os tombar.

Os dois corpos estavam caídos no chão. Eric, no meio deles. O dia terminara de amanhecer e a claridade do Sol iluminava o seu corpo. Percebeu a cidade à sua frente: a cidade que um dia fora sua. Suspirou, mais uma vez, e disse, determinado:

- Aguenta aí, Christian, que o teu irmão ta chegando pra te salvar.

Virou-se para a direita. Havia uma abertura para outra sala. Entrou. Essa, tinha uma tonalidade azul. Guardou as duas armas, pegou outras duas, fê-las clicar, ao empurrar os braços para baixo. Havia só mais uma porta à sua frente, com vários tonéis dos dois lados. Seria uma caminhada tranquila mas, inesperadamente, do chão brotou um monstro gigantesco, de aparência indescritível. O menino assustou-se e correu para a direção oposta, mas o monstro pegou-lhe pelo sobretudo e engoliu-lhe. A criatura subiu um pouco, quando explodiu. Da explosão, saiu Eric, todo envolvido em uma gosma verde. Junto com ele, várias pequenas criaturas mortais, parecidas com gafanhotos. O menino atira para todos os lados, enquanto cai, mas as balas não atingem os "insetos". Uma delas, porém, lentamente, sai do cano e vai em direção a um tonel. Com isso, há uma explosão, que faz os tonéis ao lado também explodirem. Em poucos segundos, o corpo de Eric é tomado pelo fogo, que derruba paredes e faz um grande estrago no lugar.

O vermelho do fogo, porém, torna-se o vermelho da visão de Eric. Ele não desiste, atravessa as chamas e chega ao local onde Christian está sendo mantido.

Era lá onde eram forjadas as muitas peças de aço projetadas por aquela indústria. Christian estava com os punhos amarrados a uma corda, presa ao teto. Seus pés também estavam amarrados. Ele estava justamente em cima de uma ponte metálica; abaixo, um rio de aço incandescente derretido.

- Enfim, não pensava que eu pudesse chegar até aqui, não é?

- É, Eric... você me surpreende a cada minuto...

- Precisa ver o que eu fiz lá embaixo.

Christian dá um tímido sorriso com os lábios fechados. Sua aparência é de alguém fraco e cansado, à beira da morte, se bem que era isso que estava acontecendo. O ar lhe faltava. Ele falava baixinho, pois não tinha mais forças para falar normalmente.

- Eu vou tirar você daí...

- Cuidado com...

Uma rajada de vento invadiu o local. Eric quase cai para trás. À sua frente, um ser se forma das cinzas. Calmamente, Eric saca sua arma e atira contra a cabeça da criatura. Como se a cena se congelasse, a bala atravessa o crânio em formação e passa lentamente ao lado de Christian.

- Cuidado, Eric... - sussurrou.

A figura do Dr. Barcelos forma-se à frente do garoto, que cai sentado.

- Hahahahahahahahahahahahahahaaaaahhahahahhaaaahahahahaa!!!!!!!!

- Aí, será que o meu presentinho estragou a sua entrada triunfal?

- Não era assim que eu esperava ser recebido...

- Ah, perdão, eu esqueci o buquê de flores e o tapete vermelho... espera um pouco que eu vou buscar...

- Eric, Eric... continua com o mesmo senso de humor que eu me lembro...

- É. E você continua com a mesma roupa que eu me lembro. Não tomou banho não, hein? Não trocou? Deve ser por isso que eu estou sentindo esse fedor... - ironiza, se levantando.

- Oh, não é assim que se trata um velho amigo...

- Desculpe, eu não considero amigo uma pessoa que tenha me matado...

- Acho que você matou mais gente do que eu na última hora. - o doutor aproxima sua face de Eric - Pode me agradecer agora...

- Agradecer?

- Sim, agradecer! Afinal de contas, se não fosse por mim, você não seria o que é hoje...

- Eu não pedi para ser isso.

- Eu também não! - finge-se espantar - Às vezes, o destino nos prega belas surpresas, não é mesmo?

O doutor aproxima-se da extremidade esquerda da ponte. Eric pôde perceber o pálido, profundo e vazio olhar de Christian.

- Liberte o Christian.

- Libertar o albino? Por quê? - pergunta, com os braços escorados na grade da ponte, olhando para a parede.

- Ele não tem nada a ver com isso. É a mim que você quer.

- Quem disse que eu quero? - Vira-se para Eric - Gabriel disse que ele deveria ensinar você a ser um exterminador de almas. Ele ensinou? Menos do que deveria. Esqueça ele. Ele é passado. Nós somos o futuro.

- Foi o Gabriel que te transformou num exterminador de almas, também?

- Não, eu não tive essa sorte. - diz debochando.

- Você é um imbecil.

- Será? Diga-me, Gabriel ouviu os seus lamentos bucólicos durante todo esse tempo? Ele ouviu-lhe reclamando que destruiu a sua vida? Ou será que ele apenas ignorou tudo que você disse, fingindo que você estava feliz e sorridente?

- Como sabe de tudo isso? Ficou nos observando?

- Ah, eu tenho umas manias nada educadas...

- Safado, ordinário...

- Eric, Eric... Se a história dos exterminadores de alma fosse um livro com mil páginas, o que Gabriel lhe contou poderia ser só a primeira página. Por acaso ele lhe disse que, no passado, - falava gesticulando exageradamente - houve uma grande guerra entre anjos e exterminadores?

- Disse...

- Ah, então ele não lhe contou a melhor parte da história... Após a guerra, a maioria de nós foi destruída. Alguns, como você sabe, sofreram mutações e, outros, foram deixados vivos. - Eric não podia, mas estava se interessando pela história - Semanas após a batalha final, eles se reuniram e consultaram um oráculo pagão. O que o oráculo lhes disse não os deixou tranquilos: - Eric estava com os olhos arregalados - "E a Luz virou Trevas. E das trevas veio aquele cujo destino era salvar os que haviam caído no Abismo. O Senhor dos Exércitos feriu-lhe com a esquerda e curou-lhe com a direita. Eis que a arma santa permite por ele ser tocada e os vivos e os mortos hão de temer-lhe para sempre. Com um sopro, ele gera furacões, com uma batida, terremotos. A saliva de seu cuspe transforma-se em dilúvio para aqueles que caíram. Eis que lhes anuncio uma grande desgraça, pois este será chamado O Escolhido; seu nome será conhecido nos quatro cantos do mundo e com ele virá o vosso fim. Eis que nascerá aquele que há de expulsar-lhes desta terra e subtrair as vossas forças. Com ele, será expurgada vossa maldade, pelos séculos dos séculos e por toda eternidade." - Eric estava realmente assustado - Estão falando de você, Eric. Você é o Escolhido.

O garoto caminha para trás.

- Eu não acredito nisso...

- A prova está em sua mão direita, a espada. No cabo e na lâmina há inscrições. - Eric olha o cabo e percebe alguns caracteres estranhos gravados nele - São louvores a Deus, escritos na primeira língua falada pelo homem, a única língua que falávamos antes da torre de Babel. Eles rogam que o Senhor proteja o portador desta arma e amaldiçoam qualquer ser impuro que a toque. Somente um anjo pode tocar uma arma dessas. E você. Mas, você se engana se pensa que nós ficamos esperando alegremente o seu nascimento. Após a revelação do oráculo, os líderes se reuniram e formaram a Sociedade das Trevas. Essa Sociedade tem por objetivo monitorar os exterminadores, para identificar o Escolhido e destruí-lo.

- E eu ganho um doce se adivinhar que você faz parte desta Sociedade...

- Oh, mas que tipo de bala você quer?

- Eu quero de hortelã - Eric aponta-lhe a arma - mas você vai receber de chumbo.

- Eric... existe apenas um empecilho entre nós e a Idade das Trevas, o tempo em que os Exterminadores de Alma retornarão e conquistarão a humanidade, espalhando a escuridão pelo planeta e libertando todos os seres do Inferno: você. Você, agora, tem duas escolhas: ou se une a nós e nos ajuda a escrever um novo Juízo Final, com a nossa vitória no fim das contas, ou escolhe morrer aqui e agora. Pense bem, garoto! Você é, teoricamente, superior a todos nós, mas ainda não sabe disso. Una-se à Sociedade e você terá um poder ilimitado. Centenas de milhares de escravos a seus pés, para fazer com eles o que desejar. Todo o tipo de riqueza que puder imaginar, toda a glória que puder ter. Pense bem! Claro, que você deve me odiar agora mas, esqueça! Esqueça o passado, esqueça o que aconteceu! Olhe para frente, olhe para o futuro. Os humanos são inferiores. Este mundo nos pertence. Você nasceu para ser grande, nasceu para ser líder, basta dizer... sim!

O garoto pára, abaixa a arma e a cabeça; Christian vai à loucura: "Como é que ele pode estar pensando na proposta? É louco?", pensava. Eric ergue o rosto e encara o doutor, com os olhos semiabertos, como se preparasse algo:

- Chegue mais perto...

O doutor aproxima-se de Eric, que puxa sua cabeça para perto de sua boca, Fala baixinho, ao pé do ouvido:

- Se eu aceitar isso, provavelmente eu vou ter alguma coisa a ganhar, e outras a perder...

- Mais coisas a ganhar do que a perder...

- Quer saber a minha resposta?

- Quero... o que você decidiu?

- NÃO!!!!!!!!!!!!!!

Após o grito, Eric afasta-se e atira contra o ouvido do doutor, que cai. Ele reconstrói a cabeça e levanta-se raivoso.

- Ora, seu...

- Gostou da sensação de levar um tiro no ouvido? Foi isso que eu senti!

- Você vai poder sentir muito mais coisas... - ele tira sua arma cromada do terno bordô - a mesma que usara antes.

- Acho que você não sabe que as balas não podem me atingir...

- Mesmo se forem balas de trilítio?

- Opa...

O doutor atira, com toda a sua ira, uma rajada de balas. Eric se desvia de todas elas, movimentando-se com extrema rapidez.

- Isso já perdeu a graça há muito tempo... - Ele joga o revólver no chão e tira uma submetralhadora do terno - Morra!!!

As balas são muitas. Eric transforma-se em ossos. As balas atravessam os espaços de seu esqueleto. O doutor pára. Eric reconstitui sua forma humana. Serafim volta a atirar. O garoto saca a espada e desvia as balas com a lâmina. Os cartuchos batem e caem no chão.

Serafim cessa os tiros novamente. Aproxima-se de Eric, que se afasta andando para trás. Os dois acabam deslocando-se em círculo, ficando cada um de um lado da ponte.

- Você é um exterminador de almas há, o quê... dois meses, suponho. Eu, já sou a cem anos. Seu desempenho, até aqui, foi excepcionalmente grandioso, mas você ainda tem muito a aprender. Pelo visto, se você quiser, poderemos ficar aqui, brigando durante dias, anos, séculos... eu não me importo de ficar toda a eternidade brigando com você, mas eu acho que seu amigo se importa.

Eric olha para Christian, levemente balançando-se nas cordas, com o rosto inclinado e um olhar cada vez mais pálido e profundo. O garoto encara o doutor; Abaixa a espada.

- Você destruiu a minha família, destruiu a mim mesmo e sabem-se lá quantas outras pessoas a sua loucura destruiu. Você é um monstro, mais monstro do que eu. Nós não estamos do mesmo lado, estamos exatamente de lados opostos.

- Agora, você vai dizer que é o bem e eu sou o mal... Olhe para si mesmo! Você é qualquer coisa, menos uma criatura do bem!

- "Por que me chamas de bom? Só Deus é bom e ninguém mais". Reconhece estas palavras? Sabe Quem as disse? Deus sabe de tudo que ocorre no Seu Universo. Se nós estamos aqui, isto é porque Ele quer. A maior vítima, aqui, é você.

- Sua mãe queria que você fosse padre... péssimas notícias: você não pode mais cumprir a vontade dela...

- Eu perdoo você. Agora, faça o que deve ser feito.

Rapidamente, o doutor saca o seu revólver e atira. A bala vai de encontro ao meio da testa de Eric; o garoto atira-se para trás e cai da ponte.

- Eric!!! - Grita Christian, desesperado.

- Oh, que pena! - lamenta ironicamente o doutor, caminhando para a outra extremidade da ponte - Caiu... - Olha para o aço incandescente abaixo dele. - Onde será que ele está?

- Aqui!

Eric surge, do outro lado, girando no ar. Vai com tudo para cima do doutor e dá-lhe um chute nas costas. Os dois caem, mas ficam flutuando no ar. Serafim saca sua submetralhadora e atira. Eric faz o mesmo, impulsiona-se para trás e encosta seus pés na parede oposta; Pega a espada, libera a lâmina e desloca-se em alta velocidade em direção a Barcelos, que faz o mesmo. Os dois chocam-se violentamente e permanecem ali, parados, por longos segundos. Serafim encara Eric, a uma distância mínima, com ar de reprovação. Olha para baixo: a espada penetrara em seu ventre e sua lâmina saíra por suas costas.

- Está gostando da dor?

- Você ainda não aprendeu que isso não vai adiantar?

- Foi você quem não aprendeu a principal lição sobre os exterminadores de alma...

- Qual?

Com a mão esquerda, livre, Eric agarra o espectro do doutor e o puxa para perto de si. Serafim olha o garoto com os olhos arregalados:

- Você não é nada sem isso...

- Não, espera, o que você vai fazer?

- Adeus, doutor...

- Não, você não pode fazer isso, não, pare, não!!!!

Eric recolhe a lâmina de sua espada e chuta no peito do doutor, impulsionando-se para trás. A corrente do espectro arrebenta. O garoto fica de pé sobre a grade de proteção da ponte.

- Nããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããooooooooooooooo!!!!!!

Eric observa em silêncio o doutor, desesperado, cair no mar de ácido derretido. O grito torna-se mais forte, e é silenciado em um instante, como se tivesse sido cortado ao meio. O garoto permanece ali, naquele local, olhando para o aço em silêncio. Lança a espada, que corta a corda que prendia Christian e volta para a sua mão.

- Ai! - grita o albino ao cair no chão.

O menino observa a lâmina daquela espada, tingida de vermelho. Pressiona um botão e a recolhe. Põe-na num bolso interno. Retém sua mão neste. Retira-a, abre-a e observa a bala enferrujada que estivera consigo por um século.

- Sabe, Christian? Cheguei à conclusão de que, às vezes, para se andar para frente, é necessário deixar algumas coisas para trás.

Christian o observa sem entender. Eric inclina a mão lentamente para baixo. A bala cai no aço em chamas silenciosamente. Desce da grade e caminha até o albino, retirando e abrindo um pequeno baú de outro bolso.

- Viu? Eu não troquei.

Christian sorri sem mostrar os dentes. Eric ajoelha-se e coloca-lhe o espectro. Começa a desamarrá-lo.

- Você deveria ter dito... "Sem isso nada sois vós".

- Que... Não gosto de falar complicado... Posso te fazer uma pergunta?

- Claro...

- Por que você nunca me disse que era meu irmão?

Christian olha para Eric assustado. Este, o encara. O albino parece pensar. Por fim, arrisca:

- Porque você nunca me perguntou isso...

Eric sorri com os lábios fechados, como se tivesse sido feito de bobo. Termina de desamarrá-lo. Os dois se levantam e se abraçam. Um abraço quente, não deste calor que faz suar o corpo, mas sim daquele que aquece o espírito.

- Faz cem anos e dois meses que eu estou esperando por isso...

- Eu também. Eu... também.

Gabriel os observa discretamente, atrás de Christian. Eric lhe dá uma piscadinha. O anjo olha para cima, como quem estivesse aliviado, como alguém que tivesse acabado de fazer uma tarefa difícil.



Avenida Paulista, 1938

Era uma manhã nublada. Uma leve chuva caía das nuvens. Homens e mulheres caminhavam de um lado para outro. Eles, com seus imponentes guarda-chuvas pretos; elas, com suas floridas e delicadas sombrinhas. Aquele lugar, naquele dia, tinha uma tonalidade cinza. Todos estavam protegidos da chuva, menos Eric, em uma calçada à margem direita da rua. Ela escorria pelo seu rosto e molhava sem piedade o sobretudo. O garoto olha para baixo, observa sua mão fechada. Abre-na e fica olhando o cabo da espada, com as inscrições indecifráveis. Onze colunas, com nove caracteres cada. Fecha os olhos, a guarda, levanta a cabeça e volta a olhar para o outro lado da rua: um homem, com cabelos grisalhos, protegido da chuva por um toldo, encontra outro homem, com cabelos e bigodes castanhos. Este, discretamente, como se não quisesse ser visto, entrega-lhe um envelope pardo. O primeiro homem o guarda, discretamente, dentro de seu terno cinza de gabardine. Os dois se cumprimentam e ele vai embora pela esquerda.

A poucos metros dali, entra em um prédio de luxo. Caminha pelo saguão térreo, entre as secretárias atendendo telefones e datilografando documentos, quase sem ser notado. Vai até o final de um corredor, onde há uma saleta. Abre a porta, entra e a fecha com chave. Caminha até um gabinete, puxa a cadeira, senta-se e ajeita-se. Olha para os dois lados. Retira o envelope do bolso. Fica observando-o por um curto período; segura-o, com as duas mãos, na extremidade. Prestes a abri-lo, sente uma espada ir contra o seu pescoço, de alguém vindo de trás, com uma voz pueril a dizer-lhe:

- Nem pense em fazer isso...

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