(a Georg Brandes)
I
Aquele jardim da nossa infância - disse o Sr.
Bergeret - aquele jardim que a gente percorria todo em vinte passos, foi
para nós um mundo imenso, cheio de sorrisos e de assombros.
- Luciano, lembras-te de Putois? -
perguntou Zoé sorrindo à sua maneira, com os lábios cerrados e o nariz sobre
o trabalho de agulha.
- Se me lembro de Putois!... De todas as figuras
que me passaram diante dos olhos quando eu era menino, a de Putois é a que se
manteve mais viva na minha lembrança. Tenho presentes à memória todos os traços
da sua fisionomia e do seu caráter. Ele tinha o crânio pontudo...
- A fronte baixa - acrescentou a Srta. Zoé.
E o irmão e a irmã puseram-se a receitar, alternadamente,
em voz monótona, com uma gravidade extravagante, os artigos de uma espécie
de identificação:
- A fronte baixa.
- Os olhos garços.
- O olhar fugidio.
- Um pé-de-galinha nas fontes.
- As maçãs salientes, vermelhas e brilhantes.
- As orelhas não tinham dobras.
- Os traços do rosto eram desprovidos de qualquer
expressão.
- Só as mãos, sempre a se moverem, traíam-lhe
o pensamento.
- Magro, um tanto arqueado, aparentemente débil...
- Era, na realidade, de uma força fora do comum.
- Dobrava facilmente uma moeda de cem soldos
entre o indicador e o polegar...
- Que era enorme.
- Tinha a voz arrastada...
- E a palavra melosa.
De súbito o Sr. Bergeret exclamou vivamente:
- Zoé! esquecemos "os cabelos amarelos e
o pêlo ralo". Recomecemos.
Paulina, que escutara com surpresa essa estranha recitação,
perguntou ao pai e à tia como haviam eles conseguido decorar aquele trecho de
prosa, e porque o recitavam como ladainha.
O Sr. Bergeret respondeu gravemente:
- Paulina, o que acabas de, ouvir é um texto
consagrado, direi até litúrgico, para uso da família Bergeret. É bom que ele
te seja transmitido, a fim de que não pereça comigo e tua tia. Teu avô, minha
filha, teu avô Elói Bergeret, que ninguém conseguia divertir com tolices, estimava
esse trecho, principalmente em razão de sua origem. Intitulou-o: "A
Anatomia de Putois". E costumava dizer que preferia, sob certos aspectos,
a anatomia de Putois à anatomia de Quaresmeprenant. "Se a descrição feita
por Xenômanes - dizia ele - é mais sábia e mais rica em termos raros
e preciosos, a descrição de Putois leva-lhe grande vantagem pela clareza
das ideias e limpidez do estilo." Ele fazia esse julgamento porque o Dr.
Ledouble, de Tours, ainda não explicara os capítulos trinta, trinta e um e trinta
e dois do quarto livro de Rabelais.
- Não compreendo bem - disse Paulina.
- É porque não conheces Putois, minha filha.
Deves saber que Putois foi a figura familiar à minha infância e à de tua tia
Zoé. Em casa de teu avô Bergeret falava-se continuamente de Putois. Cada
um, por sua vez, acreditava vê-lo.
Paulina indagou:
- Quem era Putois?
Em lugar de responder, o Sr. Bergeret começou a rir,
e a Srta. Bergeret também riu, de lábios cerrados.
Paulina movia o olhar de um para outro. Achava estranho
que a tia risse com tanto gosto, e ainda mais estranho que ela risse de acordo
e em simpatia com o irmão. Era, realmente, singular, pois irmão e irmã não possuíam
a mesma feição de espírito.
- Papai, diga-me quem era Putois. Já que
deseja que eu o saiba, diga-me.
- Putois, minha filha, era jardineiro. Filho
de respeitáveis agricultores artesianos, estabeleceu-se com uma pepineira
em Santo Omer. Porém não agradou à sua clientela e fez maus negócios. Tendo
deixado esse meio de vida, vivia de ganhos diários. Aqueles que lhe davam trabalho
nem sempre tiveram motivo de satisfação com ele.
A estas palavras, a Srta. Bergeret, ainda a rir:
- Deves-te recordar, Luciano: quando nosso
pai não encontrava em sua secretária a tinta, as penas, o lacre, a tesoura,
dizia: - "Desconfio que Putois passou por aqui."
- Ah! - disse o Sr. Bergeret - Putois
não tinha boa reputação.
- É só isso? - perguntou Paulina.
- Não, minha filha, não é só isso. Putois teve
uma coisa de notável: era-nos conhecido, familiar, e, no entanto...
- ... não existia - concluiu Zoé.
O Sr. Bergeret fitou a irmã com ar de censura:
- Que palavra,
Zoé! E para que romper assim o encanto? Putois não existia... Atreves-te
a dizê-lo, Zoé? Zoé, serias capaz de prová-lo? Para afirmar
que Putois não existiu, que nunca houve Putois, consideraste bem as condições
da existência e os modos do ser? Putois existia, minha irmã. Mas é certo que
era de uma existência particular.
- Cada vez compreendo menos - declarou
Paulina, desanimada.
- A verdade te surgirá claramente agora mesmo,
minha filha. Fica sabendo que Putois nasceu já de idade madura. Eu ainda era
menino, tua tia já mocinha. Habitávamos uma casinha num subúrbio de Santo Omer.
Ali nossos pais levavam uma vida retirada e tranquila, até que foram descobertos
por uma velha dama de Santo Omer, a Sr.ª Cornouiller, que vivia em sua quinta
de Monplaisir, a cinco léguas da cidade, e que se verificou ser tia-avó
de minha mãe. Usava desse direito de parentesco para exigir que papai e mamãe
fossem todos os domingos jantar em Monplaisir, onde se entediavam a valer. Dizia
ser de boa praxe jantar em família aos domingos e que só as pessoas mal-nascidas
não observavam esse uso antigo. Meu pai chorava de tédio em Monplaisir. Dava
pena ver-lhe o desespero. Mas a Sr.ª Cornouiller não o via. Ela não via
nada. Minha mãe se mostrava mais corajosa. Sofria tanto quanto meu pai, talvez
mais, e no entanto sorria.
- As mulheres nasceram para sofrer - observou
Zoé.
- Zoé, tudo o que vive no mundo está destinado
ao sofrimento. Em vão nossos pais recusavam esses funestos convites. A carruagem
da Sr.ª Cornouiller vinha buscá-los todos os domingos, pela tarde. Tinha-se
de ir a Monplaisir. Uma obrigação à qual era absolutamente proibido escapar.
Uma ordem estabelecida, que só a revolta podia transgredir. Meu pai terminou
revoltando-se, e jurou não aceitar mais um convite, sequer, da Sr.ª Cornouiller,
deixando a mamãe o cuidado de encontrar para essas recusas pretextos decentes
e razões variadas, coisa de que ninguém era menos capaz do que ela. Nossa mãe
não sabia fingir.
- Dize antes, Luciano, que ela não queria. Ela
poderia mentir como as outras.
- O certo é que, quando tinha boas razões, preferia
dá-Ias a inventar razões más. Lembras-te de que um dia lhe aconteceu
dizer, à mesa: - "Felizmente Zoé está de coqueluche: passaremos muito
tempo sem ir a Monplaisir."
- E era verdade! - exclamou Zoé.
- Tu saraste, Zoé. E a Sr.ª Cornouiller disse
um dia a nossa mãe: - "Minha queridinha, espero que venha domingo
com seu marido jantar em Monplaisir." Nossa mãe, expressamente encarregada
pelo esposo de apresentar à Sr.ª Cornouiller um razoável motivo de escusa, imaginou,
em tais apuros, uma razão que não era verdadeira: - "Sinto muito,
minha cara senhora. Mas será impossível. Domingo eu espero o jardineiro."
"Ouvindo isto, a Sr.ª Cornouiller olhou, pela
janela do salão, o jardinzinho inculto, onde os evônimos e os lilases davam
a impressão perfeita de desconhecer a podadeira e continuar a desconhecê-la
pelo resto da vida: - "Espera o jardineiro?! Para quê?" -
"Para trabalhar no jardim."
"E minha mãe, tendo voltado involuntariamente
os olhos para aquele quadrilátero de ervas nativas e plantas meio agrestes,
a que ela acabava de chamar jardim, reconheceu, espantada, a inverossimilhança
da sua invenção. - "Esse homem - disse a Sr.ª Cornouiller -poderá
muito bem vir trabalhar em seu... jardim, segunda ou terça-feira. Aliás,
será melhor. Não se deve trabalhar nos domingos." - "Mas durante
a semana ele está ocupado."
"Tenho observado frequentemente que as razões
mais absurdas e mais extravagantemente ridículas são as menos combatidas: elas
desconcertam o adversário. A Sr.ª Cornouiller insistiu, porém menos do que seria
de esperar de pessoa tão pouco disposta a desistir de tinia opinião. Erguendo-se
de sua poltrona, perguntou: "Como se chama o seu jardineiro, minha filhinha?"
"Putois" - respondeu mamãe sem hesitar.
"Putois estava batizado. Desde então ele passou
a existir. A Sra. Cornouiller foi-se embora rosnando: "Putois...
Esse nome não me parece estranho. Putois? Putois! Conheço-o muito bem.
Mas não me recordo... Onde mora ele?" - "Ele vive de ganhos.
Quando a gente precisa dele, manda-lhe recado a uma casa, a outra..."
- "Ah! eu bem que estava pensando: um indolente, um vagabundo...
um pobre-diabo. Desconfie dele, minha filhinha."
Daí por diante, Putois tinha um caráter."
II
Havendo chegado os Srs. Goubin e João Marteau, o Sr.
Bergeret tratou de pô-los a par da conservação:
- Falávamos daquele que um dia minha mãe fez
nascer jardineiro em Santo Omer, e a quem deu nome. Desde então ele atuou.
- Caro mestre, poderia repetir? - pediu
o Sr. Goubin limpando o vidro do seu lornhom.
- Com muito gosto - respondeu o Sr. Bergeret.
Não havia jardineiro. O jardineiro não existia. Minha mãe disse: -"Espero
o jardineiro." E logo o jardineiro existiu. E atuou.
- Caro mestre - perguntou o Sr. Goubin
- como é que ele atuou, se não existia?
- Ele tinha uma espécie de existência -
respondeu o Sr. Bergeret.
- O senhor quer dizer uma existência imaginária
-replicou desdenhoso o Sr. Goubin.
- Então não é nada uma existência imaginária?
bradou o mestre. - E as personagens míticas não são capazes de atuar sobre
os homens? Reflita acerca da mitologia, Sr. Goubin, e verá que são, não seres
reais, porém seres imaginários, os que exercem sobre as almas a ação mais profunda
e mais duradoura. Por toda parte e em todos os tempos, seres que não têm mais
realidade que Putois inspiraram aos povos o ódio e o amor, o terror e a esperança,
aconselharam crimes, receberam oferendas, fizeram os costumes e as leis. Sr.
Goubin, reflita sobre a eterna mitologia. Putois é uma personagem mítica -
das mais obscuras, concordo, e da mais baixa espécie. O grosseiro sátiro, sentado
outrora à mesa de nosso camponeses do Norte, foi julgado digno de figurar num
quadro de Jordaens e numa fábula de La Fontaine. O peludo filho de Sycorax penetrou
no mundo sublime de Shakespeare. Putois, menos feliz, será sempre desprezado
pelos artistas e pelos poetas. Falta-lhe a grandeza e a extravagância,
o estilo e o caráter. Nasceu de espíritos muito racionais, entre pessoas que
sabiam ler e escrever e não possuíam essa imaginação encantadora que semeia
as fábulas. Julgo, senhores, haver dito o bastante para fazer-lhes conhecer
a verdadeira natureza de Putois.
- Eu a concebo - disse o Sr. Goubin.
E o Sr. Bergeret continuou:
- Putois era. Posso afirmá-lo. Ele era.
Meditem sobre isto, senhores, e se convencerão de que ser não implica de modo
algum a substância e significa somente o liame do atributo ao sujeito; exprime
apenas uma relação.
- Sem dúvida - disse João Marteau -
mas sei sem atributos equivale a não ser. Não me lembra quem foi que disse outrora:
- "Eu sou aquele que é." Perdoe a falha de minha memória. Não
é possível a gente lembrar-se de tudo. Mas o desconhecido que assim falou
cometeu uma rara imprudência. Dando a entender, por essa afirmação irrefletida,
que era desprovido de atributos e privado de todas as relações, ele proclamou
que não existia e suprimiu-se a si próprio, inconsideravelmente. Aposto
que ninguém ouviu mais falar dele.
- Perdeu a aposta - replicou o Sr. Bergeret.
- Ele corrigiu o mau efeito daquela frase egoísta aplicando a si mesmo
cargas de adjetivos, e falou-se muito dele, as mais das vezes sem nenhum
bom senso.
- Não compreendo - afirmou o Sr. Goubin.
- Não é necessário compreender - respondeu
João Marteau.
E pediu ao Sr. Bergeret que falasse de Putois.
- O senhor mostra-se muito amável fazendo-me
este pedido - disse o mestre.
"Putois nasceu na segunda metade do século XIX,
em Santo Omer. Antes houvesse nascido alguns séculos atrás na floresta das Arderias
ou na floresta de Brocéliande. Teria sido, então, um mau espírito de singular
finura."
- Uma xícara de chá, Sr. Goubin - disse Paulina.
- Então Putois era um mau espírito? - quis
saber João Marteau.
- Ele era mau - retorquiu o Sr. Bergeret
- era-o de certo modo, mas não o era de maneira absoluta. Dáse
com ele o que se dá com os diabos que se diz serem muito malignos, porém nos
quais descobrimos boas qualidades quando com eles privamos. E sinto-me
inclinado a crer que se faz injustiça a Putois. A Sr.ª Cornouiller, que, prevenida
contra ele, passara logo a imaginá-lo um indolente, um bêbedo e um ladrão,
refletiu que, se minha mãe lhe dava trabalho, ela que não era rica, era porque
ele se contentava com pouco, e logo pensou se não seria vantajoso substituir
por ele o seu jardineiro, que tinha melhor renome, porém mais exigências. Estava
começando a época de podar os teixos. Considerou que, se a Sr.ª Elói Bergeret,
que era pobre, não dava grande coisa a Putois, ela, que era rica, daria menos
ainda, pois é de praxe os ricos pagarem menos que os pobres. E já via os seus
teixos talhados à feição de muralhas, de bolas e pirâmides, sem que ela com
isso tivesse grande despesa. - "Ficarei atenta - disse consigo
- para que Putois não mate tempo e não me roube. Nada arrisco e só terei
vantagem. Às vezes esses vagabundos trabalham com mais habilidade que os operários
decentes." Decidindo-se a fazer a experiência, falou a minha mãe:
- "Filhinha, mande-me Putois. Eu lhe darei trabalho em Monplaisir."
Minha mãe disse que sim, e cumpriria a promessa com muito gosto. Mas verdadeiramente
não era possível. A Sr.ª Cornouiller esperou Putois em Monplaisir, e esperou
em vão. Era obstinada nas suas ideias e constante nos seus projetos. Quando
tornou a ver minha mãe, queixou-se de não ter notícias de Putois: -"Filhinha,
você não lhe disse que eu o estava esperando?" - "Disse, mas
ele é estranho, esquisito..." - "Oh! conheço bem essa espécie
de gente. Conheço de cor e salteado esse seu Putois. Porém não há operário tão
maluco a ponto de não querer trabalhar em Monplaisir. Minha casa é conhecida,
penso eu. Putois atenderá com presteza ao meu chamado, filhinha. Diga-me
apenas onde ele mora; irei pessoalmente buscá-lo." Minha mãe respondeu-lhe
que não sabia onde morava Putois, que ele não tinha domicílio, era um pobre-diabo,
sem eira nem beira. - "Nunca mais o vi, senhora. Creio que anda escondido."
Podia responder melhor?
"Todavia, a Sr.ª Cornouiller não a escutou sem
certa desconfiança; imaginou que minha mãe estivesse a sequestrar Putois, subtraindo-o
às procuras, no receio de perdê-lo ou de o tornar mais exigente. E julgou-a,
decerto, excessivamente egoísta. Numerosos julgamentos aceitos pelo mundo inteiro,
e que a história consagrou, são tão bem fundados quanto esse."
- E no entanto é verdade - disse Paulina.
- Que é que é verdade? - perguntou Zoé,
meio sonolenta.
- Que os julgamentos da história muitas vezes
são falsos. Recordo-me, papai, que tu disseste um dia: - "A
Sr.ª Roland era bastante ingênua em apelar para a imparcial posteridade e não
se capacitar de que, se os seus contemporâneos eram boas biscas, também a sua
posteridade seria composta de boas biscas."
- Paulina - perguntou severamente a Srta.
Zoé que tem que ver a história de Putois com o que nos acaba de dizer?
- Tem muito, minha tia.
- Não o percebo.
O Sr. Bergeret, que não era inimigo das digressões,
respondeu à filha:
- Se todas as injustiças fossem afinal reparadas
neste mundo, não se teria imaginado outro para essas reparações. Como queres
que a posteridade julgue equidosamente todos os mortos? Como interrogá-los
na sombra em que se refugiam? Desde que se pudesse ser justo para com eles,
seriam esquecidos. Mas pode-se jamais ser justo? E que é a justiça? A
Sr.ª Comouiller, pelo menos, viu-se obrigada a reconhecer, com o decorrer
do tempo, que minha mãe não a enganava e que Putois era inencontrável.
"No entanto, não desistiu de o descobrir. Perguntou
a todos os parentes, amigos, vizinhos, criados, fornecedores, se conheciam Putois.
Somente dois ou três responderam que nunca tinham ouvido falar nele. Na maior
parte, acreditavam tê-lo visto. - "Esse nome não me é estranho
- disse a cozinheira - mas não há jeito de ligar o nome à pessoa."
-"Putois! conheço-o perfeitamente - afirmou o cantoneiro
coçando a orelha mas não lhe sei dizer quem é." A informação mais precisa
partiu do Sr. Blaise, recebedor do registro, que declarou haver encarregado
Putois de cortar madeira em seu quintal, de 19 a 23 de outubro, no ano do Cometa.
"Certa manhã, a Sr.ª Cornouiller entrou ofegante
no gabinete de meu pai: - "Acabo de ver Putois." - "Ah!"
- "Eu o vi." - "Viu mesmo?" - "Tenho
certeza. Ele ia passando junto ao muro do Sr. Tenchant. Depois dobrou na Rua
das Abadessas, caminhando depressa. Perdi-o de vista." - "Era
realmente ele?" - "Sem dúvida alguma. Um homem de seus cinquenta
anos, magro, curvo, com um ar de vagabundo, uma blusa suja." - "Realmente
- disse meu pai - essa descrição pode ajustar-se a Putois."
- "O senhor está vendo! Aliás, eu o chamei. Gritei: - "Putois!"
- e ele virou-se." - "É o meio que os investigadores
empregam para se certificarem da identidade dos malfeitores de quem andam à
procura." - "Se eu lhe dizia que era ele! Bem que eu soube descobrir
o seu Putois! Pois lhe digo: é um homem de má aparência. O senhor e sua mulher
foram muito imprudentes em empregá-lo em sua casa. Eu entendo bem de fisionomias,
e, embora não o tenha visto senão de costas, juraria que é um ladrão, e talvez
um assassino. Não tem dobras nas orelhas, e isto é um sinal que não engana."
- "Ah! a senhora notou que ele não tem dobras nas orelhas?"
- "Nada me escapa. Sr. Bergeret, se o senhor não quer ser assassinado,
com sua mulher e seus filhos, não deixe mais Putois entrar em sua casa. Um conselho:
mande substituir todas as fechaduras."
"Ora, alguns dias depois, aconteceu que roubaram
três melões da horta da Sr.ª Cornouiller. Não tendo sido encontrado o ladrão,
ela suspeitou de Putois. Os gendarmes foram chamados a Monplaisir, e suas averiguações
confirmaram as suspeitas da Sr.ª Cornouiller. Bandos de larápios devastavam,
por esse tempo, os jardins da região. Desta vez, porém, o roubo parecia praticado
por um só indivíduo, e com habilidade singular. Nenhum vestígio de arrombamento,
nenhum rasto na terra úmida. O ladrão não podia ser outro senão Putois. Era
a opinião do subdelegado, que estava bem informado sobre Putois e se empenhava
em deitar a mão a esse tipo.
"O Diário de Santo Omer consagrou um artigo aos três melões da Sr.ª Cornouiller
e estampou, de acordo com informações fornecidas na cidade, um retrato de Putois.
Dizia o jornal: "Ele tem a fronte baixa, olhos garços, olhar fugidio, um
pé-de-galinha nas fontes, as maçãs salientes, vermelhas e brilhantes.
As orelhas não têm dobras. Magro, um tanto arqueado, aparentemente débil, é,
na realidade, de uma força fora do comum: dobra facilmente uma moeda de cem
soldos entre o indicador e o polegar."
"Era com justas razões, afirmava o jornal, que
se lhe atribuía uma longa série de roubos levados a efeito com habilidade surpreendente.
"Putois ocupava a atenção da cidade inteira. Um
dia, soube-se que ele fora detido e aprisionado. Logo se reconheceu, no
entanto, que o homem que fora preso como se fosse Putois era um negociante de
almanaques chamado Rigobert. Como não se conseguisse apurar coisa alguma contra
ele, soltaram-no ao cabo de quatorze meses de prisão preventiva. E Putois
continuava inencontrável. A Sr.ª Cornouiller foi vítima de novo roubo, mais
audacioso que o primeiro. Tiraram-lhe do aparador três colherinhas de
prata.
"Ela viu nisso o dedo de Putois, mandou pôr um
cadeado na porta de seu quarto, e não dormiu mais."
III
Pelas dez horas da noite - Paulina já se recolhera
- a Srta. Bergeret disse ao irmão:
- Não te esqueças de contar como Putois seduziu
a cozinheira da Sr.ª Cornouiller.
- Estava pensando nisso, minha irmã - respondeu
o Sr. Bergeret. - Omiti-lo seria perder o melhor da história. Mas
deve-se fazer tudo com ordem. Putois foi meticulosamente procurado pela
justiça, que não o encontrou. Quando se soube que ele era inencontrável, cada
um empenhou o seu amor-próprio em encontrá-lo; as pessoas astutas
alcançaram êxito nessa empresa. E, como havia muitas pessoas astutas em Santo
Omer e pelos arredores, Putois era visto ao mesmo tempo nas ruas, nos campos
e nos bosques. Assim, foi acrescentado um traço ao seu caráter. Concederam-lhe
esse dom de ubiquidade próprio de tantos heróis populares. Um ser capaz de percorrer
num momento longas distâncias, e que de repente se mostra no lugar onde menos
era esperado, naturalmente causa espanto. Putois foi o terror de Santo Omer.
A Sr.ª Cornouiller, persuadida de que Putois lhe roubara três melões e três
colherinhas, vivia cheia de susto, entrincheirada em Monplaisir. Os ferrolhos,
as grades e as fechaduras não lhe davam segurança. Para ela, Putois era um ser
espantosamente sutil, que atravessava as portas. Um incidente doméstico veio
redobrar-lhe o terror. Sua cozinheira fora seduzida, e chegou um momento
em que já não pôde ocultar o seu erro. Porém recusou-se obstinadamente
a declarar o nome do sedutor.
- Ela chamava-se Gudule - disse a
Srta. Zoé.
- Chamava-se Gudule, e julgavam-na
protegida contra os perigos do amor por uma barba que tinha no queixo, longa
e bifurcada. Uma barba repentina protegeu a virgindade daquela santa filha de
rei que Praga venera. Uma barba que já não era adolescente não bastou para defender
a virtude de Gudule. A Sra. Cornouiller fez tudo para que Gudule designasse
o homem que, tendo abusado dela, a deixava depois em situação difícil. Gudule
derretia-se em pranto e guardava silêncio. Preces, ameaças, não surtiram
nenhum efeito. A Sr.ª Cornouiller procedeu a longo e minucioso inquérito. Interrogou
habilmente os vizinhos, vizinhas e fornecedores, o jardineiro, o cantoneiro,
os gendarmes; nada que a pusesse na pista do culpado. Tentou novamente obter
de Gudule confissões completas: - "No seu próprio interesse, Gudule,
diga-me quem é." Gudule continuava muda. Súbito, um raio de luz atravessou
o espírito da Sr.ª Cornouiller: - "É Putois!" A cozinheira chorou
e não respondeu. - "É Putois! Como é que não adivinhei logo? É Putois!
Coitada! coitada! coitada!"
"E a Sr.ª Cornouiller ficou persuadida de que
Putois fizera um filho em sua cozinheira. Toda a gente em Santo Omer, desde
o presidente do Tribunal até o cãozinho do acendedor de lampiões, conhecia Gudule
e sua cesta. À notícia de que Putois seduzira Gudule, a cidade encheu-se
de surpresa, admiração e alegria. Putois foi celebrado como autor de grandes
façanhas e o namorado das onze mil virgens. Atribuíram-lhe, em face de
indícios frívolos, a paternidade de cinco ou seis outras crianças que vieram
ao mundo naquele ano, e que antes não tivessem vindo, para o prazer que as esperava
aqui e a alegria que davam a suas mães. Apontavam-se, entre outras, a
criada do Sr. Marechal, dono do botequim Ao Ponto de Reunião dos Pescadores,
uma entregadora de pão e a corcundinha do Pont-Biquet, as quais, por
haverem escutado Putois, tinham sido acrescidas de um bebê. - "Que
monstro!" - exclamavam as comadres.
"E Putois, invisível sátiro, ameaçava de irreparáveis
acidentes todas as jovens de uma cidade onde, segundo os velhos, as moças sempre
haviam sido sossegadas.
"Assim difundido pela cidade e pelas vizinhanças, continuava
ele preso à nossa casa por mil vínculos. sutis. Passava-nos diante da
porta, e acreditava-se que por vezes escalava o muro do nosso jardim.
Nunca o viam de frente. Mas a todo instante lhe reconhecíamos a sombra, a voz,
os vestígios dos passos. Mais de uma vez julgamos vê-lo de costas, ao
lusco-fusco, na esquina de uma rua. Comigo e minha irmã, ele mudava um
pouco de aspecto. Continuava mau e nocivo, mas tornava-se pueril e muito
ingênuo. Fazia-se menos real e, ouso dizê-lo, mais poético. Entrava
no singelo ciclo das tradições infantis. Transformava-se no Papão, no
Pai Fouettard e no vendedor de areia que fecha, ao anoitecer, os olhos das crianças.
Não era esse duende que emaranha, pela noite, na estrebaria, a cauda dos potros.
Menos rústico e menos encantador, mas igualmente travesso e cândido, fazia bigodes
de tinta nas bonecas de minha irmã. Na cama, antes de adormecer, o escutávamos:
ele miava nos tetos com os gatos, latia com os cães, enchia de gemidos as chaminés
das lareiras e imitava na rua os cantos dos bêbedos retardatários.
"O que nos tornava Putois presente e familiar,
o que nele nos interessava, era que a sua lembrança estava associada a todos
os objetos que nos rodeavam. As bonecas de Zoé, os meus cadernos de estudante,
cujas páginas ele tantas vezes baralhara e garatujara, o muro do jardim sobre
o qual nós tínhamos visto brilhar, na sombra, os seus olhos vermelhos, o vaso
de faiança azul que numa noite de inverno ele partira, a menos que fosse a geada;
as árvores, as ruas, os bancos, tudo nos lembrava Putois, o nosso Putois, o
Putois dos meninos, um ser local e mítico. Ele não igualava, em graça e em poesia,
o mais bronco egipã, o fauno mais grosseiro da Sicília ou da Tessália. Mas,
ainda assim, era um semideus.
"Para nosso pai, ele possuía um caráter bem diverso:
era emblemático e filosófico. Nosso pai tinha grande piedade dos homens. Não
os acreditava muito racionais: os erros humanos, quando não eram cruéis, divertiam-no
e faziam-no sorrir. A crença em Putois interessava-o como um resumo
e compêndio de todas as crenças humanas. Irônico e zombeteiro, falava de Putois
como de um ente real. E fazia-o por vezes com tal insistência, e frisava
as circunstâncias com tal exatidão, que minha mãe, tomada de surpresa, lhe dizia
cheia de candura: -"Até parece que você fala a sério, homem: no entanto,
bem sabe..."
"Ele respondia gravemente: - "Toda
Santo Omer acredita na existência de Putois. Seria eu um bom cidadão se a negasse?
A gente deve pensar duas vezes antes de suprimir um artigo de fé comum."
"Só um espírito absolutamente honesto possui semelhantes
escrúpulos. No fundo, meu pai era gassendista. Harmonizava o seu sentimento
particular com o sentimento público, crendo, como a gente de Santo Omer, na
existência de Putois, mas não admitindo sua intervenção direta no roubo dos
melões e na sedução das cozinheiras. Em suma: como bom filho de Santo Omer,
ele professava a crença na existência de um Putois, e dispensava Putois para
explicar os acontecimentos que ocorriam na cidade. De maneira que, neste ponto
como em outro qualquer, foi ele um cavalheiro e um homem de espírito firme.
"Quanto a nossa mãe, censurava-se um pouco
a si mesma pelo nascimento de Putois, e não sem motivo. Porque, ao cabo de contas,
Putois nascera de uma mentira de nossa mãe, como Calibã da mentira do poeta.
Sem dúvida as culpas não eram iguais, e minha mãe era mais inocente que Shakespeare.
No entanto ela vivia espantada e confusa de ver sua mentira tão pequenina
crescer desmesuradamente, e sua leve impostura alcançar tão prodigioso êxito,
êxito que não parava, que se estendia sobre uma cidade inteira e ameaçava estender-se
sobre o mundo. Um dia ela até empalideceu, julgando que ia ver sua própria mentira
erguer-se diante dela. Nesse dia, uma sua criada, nova na casa e na região,
veio dizer-lhe que um homem desejava vê-Ia, dizia ter necessidade
de falar-lhe. - "Que homem é esse?" - "Um
homem de blusa. Tem o jeito de um trabalhador do campo." - "Ele
disse o nome?" - "Sim, senhora." - "Então! como
se chama?" - "Putois." -"Ele disse que se chamava?..."
- "Putois, sim, senhora." - "Ele está aqui?..."
- "Sim, senhora. Está esperando na cozinha." - "Você
o viu?" - "Sim, senhora." - "Que é que ele deseja?"
- "Ele não me disse. Só quer dizer à senhora." - "Vá
saber o que ele quer."
"Quando a criada tornou à cozinha, Putois já não
se achava lá. Esse encontro da criada forasteira e de Putois nunca ficou esclarecido.
Mas eu creio que desde aquele dia minha mãe começou a crer que Putois podia
perfeitamente existir, e que era perfeitamente possível que ela não tivesse
mentido."
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