A Garganta da Serpente
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O meu sonho futurista

(Adelmario Sampaio)

Estava lendo um livro de ficção cientifica que fala da tecnologia do futuro... Quando me cansei, fui dormir com uma enorme fome... Eu estava me esforçando pra não comer à noite, porque precisava perder alguns quilos, atendendo aos irritantes apelos da minha mulher.

Deitei e em poucos minutos senti aquela leveza que dá quando estamos nessa bruma entre acordados e dormindo, quando minha barriga roncou... Cochilei e pareceu que estava longe, e estiquei meu braço até o telefone e disquei um número. Parecia também longe a voz que ouvi e somente quando repetiu a frase foi que tomei consciência das palavras:

"Boa noite seu Antonio".

Fiquei calado pensando que há muitos antonios e a voz poderia estar sendo dirigida a um qualquer de nós. (Por um instante me veio novamente a revolta de ter um nome tão comum). Fiquei calado porque não estava com disposição para discutir, quando ouvi novamente a voz:

"O senhor quer que mande seu pedido agora, ou mais tarde, seu Antonio?"

"Como assim, você deve estar enganado de Antonio", eu respondi. "Bem, estou em casa... Como você conseguiu saber meu nome?"

"Seu telefone não é tal e tal? Nós temos como identificar as chamadas e estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central. Tenho todos teus números diante dos meus olhos: RG, CPF, CH, Telefones, cartões, endereço..."

"Ah, sim, é verdade!... Pode anotar o meu pedido?"

"Só mesmo o tamanho, seu Antonio. O senhor quer grande ou pequena?"

"O quê? Como é que você sabe o que é que quero? Esse Grande Sistema Central lê pensamentos também?" eu perguntei triunfante.

"Na nossa ficha consta que o senhor pede sempre a mesma coisa... Ou o senhor quer variar desta vez, seu Antonio?"

Já não suportava mais ouvir a repetição do "seu Antonio" naquela voz irritantemente melosa e ensaiada.

"Não. Eu quero a mesma coisa", eu disse.

"O sistema está nos informando que a família do senhor viajou seu Antonio, (é por isso que sei que estou falando com o chefe da casa que não foi), mas, desculpe, o senhor pode estar acompanhado de outra pessoa, o que duvidamos, também baseada nos dados da ficha, mas temos que fazer sempre a pergunta: qual o tamanho que o senhor quer?"

"Pode ser pequena... Desculpe moça, eu disse que quero a mesma coisa, mas dessa vez pode mandar bastante maionese e tempero também... Bastante pimenta... Ah, uma cerveja também..."

"Consta na sua ficha médica que o senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Também o sistema não emite a nota se tentarmos mandar alguma coisa que ponha em risco a sua saúde... e também seu Antonio, não vamos abusar só porque sua família não está em casa, não é seu Antonio?"

"É, você tem razão!..."

"Por quê que o senhor não experimenta a nossa salada superlight, seu Antonio? Creio ser uma boa..."

Eu disse aborrecido:

"Está bem, mande o que vocês quiserem."

"O que queremos é que o senhor fique sempre satisfeito seu Antonio. Por isso mesmo estamos cuidando dos seus interesses. Não fique chateado, porque isso faz com que a tua pressão suba..."

Fiquei calado já meio nervoso com essa história de uma atendente ficar se metendo em minha vida, no meu gosto, na minha saúde. Mas tentava me controlar, pois de fato a minha pressão sobe se me irrito. Foi ela quem falou novamente:

"Desculpe perguntar seu Antonio, o senhor tem o dinheiro pra pagar à vista?"

"Quanto é?" Eu perguntei.

"São R$ 20,00."

"Não. Não tenho. Vou pagar com o cartão."

"Lamento informar, , mas a família do senhor fez algumas compras na viagem e o limite do seu cartão de crédito já foi ultrapassado."

"Tudo bem. Tem um caixa do meu banco aqui em frente de casa. Eu vou sacar até que a encomenda chegue."

"Desculpe informar, mas o senhor está com o saldo negativo na conta do banco. Não vai poder sacar nem mesmo os vinte reais"

Já falei com a voz alterada:

"Olha menina, mande logo essa (disse um palavrão) que eu arranjo o dinheiro por aqui..."

"Desculpe... Mas o senhor disse que está sozinho... Se for verdade fica difícil arranjar o dinheiro, seu Antonio."

"Já falei quase gritado":

"Olha moça se é que não quer vender, tudo bem, eu ligo pra outro lugar."

"Fique calmo seu Antonio... O senhor não pode ficar nervoso porque a sua pressão sobe, e consta na ficha que o teu remédio acabou... Além do mais vai ter a mesma dificuldade de comprar em qualquer lugar, porque todos estamos ligados à mesma rede, e temos todos as mesmas informações a respeito do senhor. Inclusive terá dificuldade pra comprar seu remédio, que consta um preço à vista de R$ 23,69..."

"Como é que sabe qual meu remédio, o preço e até que acabou?"

"A sua ficha da farmácia diz que não foi compro, e deve ter acabado o último comprimido ontem, já que fez um mês que comprou e a caixa contém trinta comprimidos, e o senhor toma um por dia..."

"Eu gostaria de falar com o gerente, moça."

"Olha senhor, o gerente está em outro país, e não atende telefone de lá... Só acompanha o movimento da loja, pela Rede. Mas também seu Antonio, o gerente não permitiria qualquer concessão nesse caso..."



Nesse exato momento, ouvi um ronco tão alto que acordei do meu sonho futurista. Era a minha barriga avisando que eu estava com uma enorme fome. Olhei pro lado pra saber se minha mulher tinha viajado mesmo. Sabe como são esses sonhos... Muitas vezes acreditamos neles e pensamos que são reais... Ela ressonava. Levantei muito devagarzinho, e fui fazer uma visita à geladeira...

(Qualquer semelhança com uma piada que rola por aí não é mera coincidência)

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