A Garganta da Serpente
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Um olhar no meu olho de menino

(Adelmario Sampaio)

Amiga, ela era de verdade. Onde eu estava, lá estava ela também. Se não estava, chegava na hora certa, como acontecia todos os dias quando eu ia sair da escola. Fazia sempre do mesmo jeito. Me acompanhava de manhã, e quando tocava a campainha da hora da saída, ela estava lá, e quando eu via, aparecia ao meu lado.

Nas brincadeiras, nas caçadas, nas pescarias, era a mais animada. Parecia não se cansar nunca. E era incrível, pois se eu vestisse a roupa de jogar futebol, ela antes mesmo de me ver na porta, já sabia, e me esperava já pros lados do campinho de terra batida. Se eu pensava em ir pescar, ela me esperava do lado do riacho... E se eu jogava futebol com a turma, ela estava lá no barranco do campinho, me esperando. Obediente, só entrava quando acabava a partida.

Hoje eu perdi um pouco o entusiasmo, porque o latido da minha cachorrinha, era um incentivo melhor do que o da torcida quando aplaude. Aliás, não era sempre que tinha torcida, mas a minha torcedora não faltava. E quando ela latia, eu pegava a bola, e driblava como ninguém, me sentindo um Pelé.

Lembro que o final do campeonato, foi uma festa. E quando eu me vesti para o jogo, ela pulou de alegria, e rodopiava ao meu redor, e assim que eu comecei andar a caminho, ela saiu correndo, e já foi avisar pros meus companheiros que o maior ídolo dela estava chegando.

O nosso time era o melhor de todos. Não era só eu que via assim. Além de mim, tinha ainda o Tanajura, o Pedro Bola, e todo mundo dizia que nós éramos os craques do time.

A Jade, era a torcedora símbolo. Ela estava em todas e é por isso que os caras do outro time faziam uma gozação, dizendo que o nosso, era o timinho da cachorra. E eu ficava chateado, porque sentia a gozação nas palavras.

Mas foi justo nesse dia, que enfiamos cinco neles. Ensinamos praqueles babacas, o que é um timinho. Dois do Pedro, dois do Tanajura, e no finalzinho, eu calei a boca deles com um golaço, se bem que meio sem querer. Mas o importante, é que a bola bateu na minha cabeça, e entrou.

Precisavam ver a nossa alegria! Eu corri pra comemorar o gol, e dessa vez a Jade não esperou no barranco, não. Ela correu, e pulou em mim feito gente, e foi a maior comemoração do futebol brasileiro. Aí eu aproveitei, e falei pros caras que pelo menos a minha cachorra comemorava... "Porque a gente ganhava..." - eu falei. "E de goleada", - ainda provoquei.

Eles apelaram feio. E daí pra frente, entravam na gente pra quebrar, e por fim, começaram a brigar e a dar porrada...

Mas a minha super-Jade entrou em ação, e avançou mostrando os dentes ao primeiro que me empurrou. Rasgou o calção de um outro, e rosnou feio, mas muito feio mesmo, pra uns outros cheios de confusão, mas eu falei com ela, e ela não mordeu ninguém. Aí eles correram do campinho, com a desculpa de que nós colocamos cachorro neles... E nós comemoramos o título na maior alegria.

Foi nesse dia, que o Totonho, o goleiro do nosso time, quis fazer um negócio besta comigo:

_ Te dou meu carrinho de rolimã, em troca "dessa cachorrinha".

Eu fiquei calado, pra começo de assunto, porque não gosto que chamem a minha Jade desse jeito. Aí o Totonho insistiu:

_ Ué, se você acha pouco, eu te dou dois carrinhos em troca dela.

_ Coitadinha da Jade. Eu acho que ela entendia muito bem o que a gente falava, porque me olhou com aqueles olhinhos bonitos que dava dó de ver. Aí eu até fiquei meio nervoso com o Totonho, e disse pra ele:

_ Só se você me der mil carrinhos.... Mil, não. Um milhão de carrinhos...

_ Onde já se viu, tá maluco?!... Ela não vale nem dois...

_ Então, melhor, porque eu fico com a minha Jade. Porque ela é a minha irmã, tá sabendo!... Eu até acho que ela é até um pouco gente, ta sabendo?...

Foi nessa hora, que eu entendi que era verdade, porque a minha Jade, abanou o rabo muito satisfeita com o que eu disse.

Outro dia, perto do natal, minha mãe fez um pudim de ovos. Comemos pra valer e a Jade também comeu, porque ela comia tudo que nós comemos. E esse seria o melhor natal da minha vida, porque o meu time foi campeão, e eu tinha cachorrinha mais linda do mundo, e tinha a mãe mais... mais... Melhor do mundo, porque deixava eu ter uma cachorra. Eu nem ligava pra esse negócio de árvore de natal, presente, e outras coisas que os meus amigos falavam. Eles tinham isso, mas só eu tinha a minha cachorrinha que valia muito mais que muitas árvores, muitos presentes, e milhões de carrinhos de rolimã.

Mas lembram do pudim? Pois é, no outro dia, eu fiquei muito triste, porque a Jade não veio me receber na porta de manhã. Ela estava sempre na porta, na hora de ir pra a escola. Chamei seu nome, e ela não veio. Rodeei a casa, e ela estava lá deitada, assim meio cansada. Falei com ela, e ela me olhou com um jeito muito triste, mas nem levantou a cabeça. Coloquei ela em pé, mas ela caiu. Eu chorei, e coloquei de novo, mas ela caiu, e eu chorei mais, porque esqueci que a minha mãe falou que homem não chora.

Minha mãe disse que foi o pudim. Aí eu falei que queria levar a minha Jade pro médico de cachorro, mas a minha mãe disse que era muito caro, e que não tinha dinheiro. Aí eu falei pra minha mãe, como é que ela foi no médico no outro dia!... Ela ficou calada.

Aí no dia seguinte, eu pedi um dinheiro emprestado pro Azeitona, pro Janjão, e pro Tanajura, e peguei mais umas moedas que eu tinha escondido pra comprar figurinha da seleção, e corri lá em casa pra buscar a Jade pra levar pro médico. Quando eu cheguei em casa, ela estava muito magrinha, e umas moscas ficavam em cima dela, e eu tirei a minha camisa, e abanei a minha cachorrinha, pras moscas não pousar nela. Aí a Jade me olhou com aquele olho de Jade mesmo, e eu fiquei sabendo que ela gostou.

Então eu abracei a minha irmã, e falei que ia levar ela no doutor. Ela não falou nada, mas me olhou com aqueles olhos assim... muito fraquinha. E eu saí com ela, e corri para saber onde é que tinha um médico de cachorro. Mas quando eu cheguei, o doutor não estava. Uma placa dizia que só abria depois do natal.

Jade quase não respirava mais. E eu vi que ela tinha sede, e enchi a mão da água da torneira da praça, e ela bebeu um pouquinho na minha mão.

Voltei pra casa chorando com a minha irmãzinha, e antes de minha mãe chegar, eu vi o tempo exato que parou de respirar, com aqueles olhinhos me olhando...

Eu não sabia o que fazer. Tinha uma dor muito grande rasgando aqui no meu peito. Não, não era dor, era um vazio. É isso mesmo, eu não tinha nada por dentro. Eu não estava vivo. Os olhos me olhavam e eu é que estava morto...

Saí correndo pelas ruas. A música daquele natal era triste como um hino de morte. Corri. Chorei. E corri, e chorei... Homem não chora uma porra!... Uma desgraça!... Então eu não sou homem bosta nenhuma... Sou um cachorro, que cachorro é melhor que gente de bosta...

Então eu pensei em voltar. Enxuguei o meu rosto, e caminhei. Firme. Um homem. Pensei uma solução para a minha dor, o meu vazio. Pensei de morrer também. E fui pra junto da minha irmã, e disse:

_ Eu vim morrer com você!...

Deitei do lado dela, e não vi mais nada.

Mais tarde, minha mãe me acordou:

_ Ô meu filho!... Perdão meu amor, eu me atrasei porque a patroa precisou de mim até um pouco mais tarde. Você já comeu alguma coisa? Coitadinho, dormindo nesse chão!...

_ Olha a Jade, mãe!... - eu disse.

Só então que minha mãe percebeu que a cachorrinha estava morta, e começou a chorar. E chorou muito, mas hoje eu acho que tinha outros motivos além da morte da cachorra. Mas isso é só um pensamento de criança...


Jamais esqueço aquele natal...

[Os erros de linguagem são propositais]

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