O palácio do rei Justo é governado pelo amor. E não existindo
leis que possam oprimir as pessoas, a liberdade e a compeensão pairam
no ar, como uma eterna brisa consequente. E a alegria e a paz, amigas que
são, andam como que de mãos dadas, num jardim construído
de entendimento e harmonia.
Todos os dias, Inocência, a filha querida do rei, senta-se à mesa
ao lado do pai, e sua alma usufrui dos melhores alimentos que o amor e a sabedoria
podem oferecer. Porque o coração do rei Justo é cheio do
que fala, e quando seus lábios pronunciam as palavras, parecem declamar
poemas celestes, e todos os seus gestos, se parecem com os dum regente de um
coral das alturas.
Um dia como os outros, a filha estava ao lado do pai, que sem palavras, estendeu
carinhosamente a mão, e afagou a da menina. E como jamais se desentendiam
no momento em que falavam, o homem derramou um pouco do que enchia o seu coração,
e disse quase consigo mesmo, mas curvando-se um pouco, para segredar à
filha:
- Filhinha, temos sido agraciados pelos céus, e por isso, desfrutamos
dessa mesa farta, como se fosse um banquete dos melhores alimentos que as nossas
almas recebem. Aqui não existem leis, e no entanto, temos paz, e nenhuma
angústia tira de nós, o privilégio de nos saciar do que
a Sabedoria nos oferece. Não temos aqui os acusadores, que multipliquem
as leis e as punições que em consequência, fazem dos
oprimidos, escravos. E é por isso que os nossos dias são de descanso,
e as nossas noites de festas. Pois não havendo leis, não temos
também, peso, nem cadeias em nossos corações. E o amor
nos dá asas aos pés, que nos permitem voar acima muito acima das
cabeças dos homens, e das nuvens, e até das estrelas da Terra...
Ainda ternamente segurando a mão da filha, ficou por um pouco saboreando
as próprias palavras, depois olhou o rosto da menina, e pela primeira
vez, viu que ela não apreciava como das outras, o que ele dizia. E uma
dor no coração, antecipou-se às palavras, quando viu o
olhar distante que ela tinha.
- Algo a perturba, filha? - perguntou.
A menina, como que acordada de repente, olhou o pai, e respondeu com uma angústia
na voz:
- Meu pai, eu tenho recebido na prática, do amor que todos os dias ouve
o meu coração. Na verdade, eu sei que conheço de perto
como poucos, os afagos da Paz e o efeito da Sabedoria, de quem tanto falas...
Mas tenho que confessar, que o meu coração anda inquieto, por
causa de outras vozes que ouço de longe. Sou jovem demais para ficar
aqui parada, contemplando o céu, e ouvindo essa melodia, que se torna
monótona, com o passar dos dias.... Peço desculpas por magoar
o teu coração, mas aprendi contigo mesmo, a ser sincera...
O pai, sentiu um aperto crescente no coração, mas com o olhar,
encorajou a menina a continuar. E ela continuou:
- Mais uma vez perdoe-me, mas eu quero experimentar a vida fora do palácio.
Tenho medo, mas me angustiam esses braços que me cercam e me prendem...
Preciso sentir o afago de outros ventos em meu rosto, porque ouço ao
longe, o som de outra melodia acompanhada de risos a me chamar. E esse chamado,
parece mais compatível com a melodia do meu coração de
agora.
As lágrimas quase traíram as forças do rei. Mas com a serenidade
que tinha recebido do Amor e da Sabedoria, reuniu um pouco mais de coragem,
e ainda segurando a filha pela mão, disse:
- Você é livre, filha. O amor não prende jamais, senão
não é amor. E esses braços que a cercam, na verdade nunca
a quiseram sufocar. Teu coração não está aqui. E
prisão, é estar onde não está o coração.
Que andem os teus pés, para onde gravita o teu, para que não te
sintas cercada.
O rei suspirou, e sem que outra pessoa soubesse o que se passava, continuou
no mesmo tom sereno que sempre tratava mesmo as questões mais difíceis:
- Tanto quanto são os gestos, já te disse que te amo. Mas nem
sempre o amor é entendido por gestos e palavras. E só o amor,
entende o amor. E o amor recebido, é muitas vezes como a saúde,
que muitas vezes só é notada quando perdida.
A voz do rei ficou embargada, e teve que se calar, para conter as lágrimas.
Mas suspirou fundo, reunindo mais forças para completar:
- O Amor te abraça e te solta, para depois abraçar novamente,
com muito mais amor!...
No outro dia, Inocência, para se parecer com as pessoas de fora do palácio,
tomou por empréstimo as roupas de uma criada que chorava, pois sabia
o que a menina ia fazer. Mas o desejo de uma filha do rei, era para ela, como
um desejo e uma ordem do rei.
E quando a menina fechou o portão atrás de si, deixou uma angústia
espalhada por todos os cantos. E numa janela, choravam as criadas, e noutra,
o rei observava a filha, na esperança de que voltasse dali mesmo, e que
tudo não passasse de uma brincadeira.
Mas desta vez, a menina não brincava.
Andou sem rumo, pelas ruas da cidade estranha, olhando os rostos que jamais
vira. Ninguém dava-lhe importância. Também não cumprimentavam-na,
como acontecia nos corredores do palácio.
Eram todos indiferentes ou ríspidos, e em um único dia, presenciara
mais discussões e brigas, que em toda a sua vida.
Não entendia bem o que era comprar e vender, nem porque é que
as pessoas eram tão carrancudas. E não tinha a quem perguntar
nada, pois a tratavam de uma maneira estranha quando tentava conversar.
Começou a angustiar-se, e arrepender-se de ter saído de casa.
Onde é que estavam os risos e as músicas de que ouvira falar?
Onde é que tinham as festas mais alegres que as dos palácios?...
Já cansada de andar, teve fome. Viu em um lugar, onde havia um nome de
padaria escrito, uns pães expostos em um cesto em cima de um balcão.
Entrou, e foi pela primeira vez, recebida com simpatia.
- Quer levar uns pães, moça?!... - perguntou animadamente um homem
por trás do balcão.
- Bom dia, senhor. Quero, por favor, um só.
O homem pegou um dos pães, e entregou à menina. Ela agradeceu,
e ia saindo, levando o alimento à boca, quando pela primeira vez na vida,
alguém a agrediu com um grito:
- Não pagaste o pão, mocinha!
Assustada, quis devolver, mas ouviu outro berro:
- Não, não, não!... Como é que você põe
suas mãos imundas no pão, e quer devolver?!.. Pague-me logo, sua
vagabunda!...
- Pagar?!... Como pagar?... - disse a menina mais consigo mesma.
Vendo que ela não tinha com que pagar, chamou uns guardas, que a prenderam,
e levaram ao juiz.
Na sala de audiências, sentiu-se aliviada. Estava assentada numa cadeira
em um salão, e um homem de meia idade, remexia uns papéis, em
uma mesa à sua frente.
O homem, tinha feições que lembravam seu pai. Devia ser por isso
que ela se sentia assim confortável. Ele trazia a lembrança de
um juiz justo que ela conhecia não só de nome. É verdade
que ainda não dera-lhe atenção, mas isso é próprio
dos adultos envolvidos com o mundo dos seus afazeres.
Esperou mais um pouco, pensando que todo o mau entendido seriam esclarecido,
e explicaria tudo o que se passou. Suspirou de lembrar que seu pai, estivera
algumas vezes resolvendo questões tão pequenas que surgiam entre
os seus súditos. E ela tinha sido envolvida nesse incidente, como uma
providência para conhecer um homem igual seu pai.
Com um gesto, o homem ordenou que ela se aproximasse. Inocência levantou-se,
e ficou perto, e disse sorrindo:
- Boa tarde, senhor!
O homem a olhou pela primeira vez, e a menina sentiu um calafrio. Era um olhar
frio e duro. E em resposta ao seu cumprimento, ele disse, meneando negativamente
a cabeça:
- Outra ladra!...
- Desculpe, senhor, foi um mal entendido, eu não sou...
- Eu ainda não perguntei nada! - gritou o homem. - Fale quando for perguntada,
senão, sou muito capaz de perder a paciência!...
Não disse mais nada. Baixou os olhos aos papéis, anotou alguma
coisa, e depois, fez sinal para que os guardas a levassem.
Na prisão, foi entregue a uma carcereira que tinha uma tabuleta nas mãos.
- Seu nome é Inocência? - perguntou a mulher.
A menina afirmou com um gesto, já com medo de responder.
- Não tenha medo de mim. Não vou fazer-lhe nenhum mal.
- Meu nome é Inocência, e sou filha do rei Justo.
A mulher olhou assustada para a menina, e disse:
- Você fala mesmo como se fosse alguém do Palácio dos Sonhos.
Mas não me engane, ninguém sai de lá. Muito menos a filha
do rei. Vista estas roupas.
A menina recebeu o pacote com o uniforme da prisão, e vacilou um pouco
com vergonha de se despir diante de uma estranha. A mulher percebeu o embaraço,
e virou-se. Mas enquanto Inocência também de costas, se trocava,
a mulher a observou de relance, e viu que o seu corpo era bonito, e as suas
roupas de baixo, eram como as das filhas de um rei. E depois, mesmo com as roupas
da prisão, a mulher sentiu-se honrada, de estar diante de uma pessoa
de um reino do qual muitas histórias ouvira contar.
A mulher queria ouvir mais, e provocou, fingindo duvidar do que a menina dizia:
- Então, você é mesmo uma princesa?...
- Sou do palácio do rei Justo, como já disse...
- E no entanto, rouba pães nas padarias dos pobres mortais...
- Foi um engano, e não um roubo...
- Todos aqui, se dizem inocentes...
A menina baixou a cabeça, e não discutiu. Só um instante
depois, foi que teve coragem, e falou:
- Você pode me ajudar?
- Não vai querer que a ajude a fugir, não?
- Não. Eu quero que você faça alguém no palácio
saber que estou aqui. Meu pai precisa saber!...
Não. Não posso arriscar minha pele. Mesmo porque nem sei se de
fato é verdade o que você diz, - disse a mulher se retirando, e
levando a roupa que a pouco a menina vestira.
No palácio, o rei recebeu o mensageiro que tinha um pacote nas mãos.
Quando abriu, viu a roupa que vira sua filha vestida no dia anterior. E junto
com o vestido, um bilhete, dizendo onde estava a menina. Então o homem
perguntou ao mensageiro:
- Quem foi que te mandou?... Como foi que soube da minha filha? Você viu
a menina?
O homem não sabia de nada. Era um camponês que fora incumbido por
uma mulher, dizendo ser um presente da princesa para o rei. E ele, movido mais
pela curiosidade, que pela generosidade, resolveu atender ao pedido.
O rei chamou o seu servente, e ordenou que o homem fosse recompensado por ter
trazido notícias da filha. Mandou ainda chamar o chefe da guarda, e disse:
- A minha filha, o tesouro da minha vida, clama por mim. Reúna toda força
necessária, e a liberte da prisão. Depois, ordene que seja descobertos
quem são seus ajudadores, e seus acusadores, e faça com que venham
até a mim, para serem recompensados com honra, ou julgados com justiça.
E tudo foi feito como queria o rei, e à noite com a presença de
Inocência, houve festa no palácio.
E na hora do banquete, a menina já estava assentada ao lado do pai, vestida
com vestes de gala. E foi ela quem carinhosamente estendeu a mão, e segurou
a dele, e inclinou-se, e segredou ao seu ouvido:
- Amo o amor que abraça, e solta, e abraça de novo com mais carinho.
E amo o braço que resgata e envolve o coração frágil.
E amo o poder que faz justiça. Que de hoje em diante amado, não
precise que nenhum dos teus filhos fique doente, para descobrir que era sadio.
E que nenhum deles se desvencilhe dos abraços do amor para saber que
é o braço dele. E teu reino permaneça como permanecem a
Sabedoria, o Amor e a Justiça. E que os filhos de um homem mais justo
que o nome do qual é conhecido, se abriguem sempre no coração
do pai...
O rei tentou esconder, mas desta vez a filha viu, e achou linda a lágrima
que rolou no rosto do pai.