A Garganta da Serpente
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A égua e o carneiro

(Adelmario Sampaio)

Eu andava de manhã por uns pastos perto de casa, num horário que gosto de caminhar, e vi de longe três vultos que se aproximavam.

Quando ainda estavam à distância, não percebia o que eram, mas depois, clarearam em minha visão um moço, que tinha um cavalo pelo cabresto, e atrás dos dois, caminhava um sossegado carneiro.

Vi que o rapaz era de origem humilde, e me aproximei do caminho para falar com ele quando passasse. Sei que aprendemos muito com essas pessoas que trabalham no campo, especialmente os que cuidam de animais.

Mas fiquei intrigado com a estranha procissão. Um homem, um cavalo (que logo soube que era uma égua), e um carneiro.

Eles chegaram.

O homenzinho, parecia orgulhoso, e eu penso que por causa do espécime tão bonito que trazia atrás de si. Mas eu percebi que ele não poderia ser o dono de um animal daqueles, que mesmo com meus parcos conhecimentos sobre, entendi ser muito valioso.

Era de fato uma égua muito bonita, como eu jamais vira uma assim de tão perto. Ela parecia ter consciência da sua beleza, e se exibia para mim, fingindo querer tomar o cabresto do seu condutor. Era irrequieta, o que a fazia ainda mais bela em seus movimentos.

O carneiro, andava atrás, sem qualquer expressão que não fosse a sua pose de indiferente sossego, como só os carneiros tem.

- Bom dia, - eu disse para o homem.

- Dia, sô!... - respondia numa linguagem rápida, com um sotaque meio que cortando as palavras.

- Dando umas voltas com os animais?

- É.

- Que cavalo bonito, não?

- Égua.

- Ah sim... não tinha percebido... O carneirinho anda manso, atrás...

- É.

O homem estava parado, segurando o cabresto, e a égua continuava fazendo acrobacias, como se estivesse sendo picada por abelhas. Eu queria saber mais, mas estava difícil até fazer perguntas, porque o homem não falava mais que uma palavra de cada vez. Mas como o ele não se decidia a andar, eu arrisquei mais umas perguntas. E para minha surpresa, as respostas vinham cada vez mais interessantes:

- Um animal desses, deve ser muito caro!

- Diz que valeu setenta boi.

- Setenta bois?!...

- É.

- Mas é muito caro!...

- Mais vale.

- O senhor acha que uma égua vale o preço de setenta bois?

- Inté mais.

Eu não quis questionar, e fiquei calado. E foi ele quem continuou a conversa:

- Sô nunca viu falá da Faisana, não?

- Faisana?

- É o nome dela, - disse apontando o queixo para a égua. Depois continuou: - Essa é a campeã das corrida. É memo feito um rai, pra corrê.

- Então vale mesmo os setenta bois!...

- Inté mais...

Eu não queria mesmo discutir o preço da égua, e resolvi mudar a conversa para o outro animal.

- Mas e o carneiro, que é que faz andando aí atrás?

- É só o casal da Faisana.

- Casal, como!... - eu perguntei admirado.

O homem riu da minha ignorância, e por certo porque entendeu que eu pensava mal dos dois bichos. Depois explicou:

- Ma num é um casal, ansim casado memo não. Ele veve cum ela só memo pra mansá ela.

- Espera aí!... O senhor está me dizendo que o carneiro é o casal da égua, e que vive com ela para amansá-la?... Como assim?...

- Mansá, cumo tô falano. Ele é que mansa a bicha... O sô num vê a danada ansim fogosa?... Era mais, ante dele...

- Mas o senhor vai ter que me explicar isso direito, moço. Porque até hoje, eu ouvi dizer que amansa um cavalo, é montando nele, e ele pula até cansar, e depois se entrega pelo cansaço, e fica manso... Não é assim?

- Num sinhô!... Issaí co sô disque é mansá, nóis disque é domá.

Eu pus a mão no queixo, arregalei os olhos, e fiquei esperando. Ele disse:

- Mansá, é ansim: Cê pega o animar brabo, e casa ele cum manso. O brabo dá um coice nele, e ele oia ela ansim queces óios besta de mansura. Aí ela quinem muié braba, e dá mais um coice nele, e ele nem aí, proque ele é manso memo, e num sabe abrabá. E ela vai ino, vai ino, inté que fica cum vregonha de escoiceá ele.

Eu resolvi ignorar o comentário da mulher brava, para não fugir por enquanto do assunto, e falei:

- Ah entendi!... Ela amansa de vergonha!...

- Isso memo, sô. Pra sê manso, é só andá cos manso.

Bom eu depois fiquei pensando na sabedoria dos homens de perceber mais essa. Aprendi mais uma. Que um animal manso, amansa o outro bravo, só com o convívio. E depois de combinar com ele de dar uma prozinha sobre as mulheres brabas que nós dois conhecemos como ninguém, continuei o meu passeio, e a estranha procissão prosseguiu.



Até pensei de depois enviar uma carta para o governo. Quem sabe está aí a solução para o problema da violência no país.

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