A Garganta da Serpente
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O casamento do meu pai

(Adelmario Sampaio)

Hoje o meu pai está muito alegre. Eufórico até. É realmente um homem admirável e vende energia nos seus setenta e três anos que ninguém diria que tem se não o conhecesse. Sendo que estou agora com quase cinquenta, aparento ser irmão e não filho dele, e muitas vezes já nos perguntaram isso. Ele se diverte com a ideia e brinca que somos, quando perguntam. E como muitas vezes não desmente também por brincadeira, é que muita gente não sabe que é meu pai.

Está assim contente, porque hoje é o seu terceiro casamento.

O primeiro, foi quando ele tinha vinte anos. Casou-se é lógico com a minha mãe, que morreu quando eu tinha dezenove, e ele quarenta e sete. Eu escapei de ser abortado como meus outros irmãos, na quarta gravidez da minha mãe.

Quando eu tinha vinte e um, viemos eu e uns colegas de escola passear nessa mesma fazenda onde meu pai morava e mora até hoje. Entre esses colegas da mesma idade que eu, haviam duas moças. Uma era a Lurdes por quem eu era secretamente apaixonado.

E tanto ela como a outra moça fizeram uma brincadeira para ver quem é das duas que conquistaria o meu pai. Lembro-me que a outra que não lembro mais o nome, ainda brincou que não tinha coragem de namorar um velho. Esse tipo de brincadeira entre jovens acaba virando um desafio. Ainda mais que as mulheres acabam levando a sério o que falam por brincadeira. Muitas vezes mulheres falam dos maridos numa espécie de solidariedade consoladora quando conversam com outras infelizes pelo mesmo motivo, e acabam acreditando que eles tenham em dose exagerada, os defeitos que antes elas nem notavam. Porque há um ditado do meu pai dizendo que não há homem que não omita, nem mulher que não exagere.

Para os jovens, uma pessoa por volta dos cinquenta, é um velho que está à beira da morte. Lembro que eu mesmo pensava assim na época. E como dizem que a primeira impressão é a que fica, a que tiverem do meu pai quando chegamos, foi de que ele era mesmo muito mais velho, porque estava muito sujo da lida do trabalho e com a barba de muitos dias que naturalmente o deixava parecer que tinha mais idade do que de fato tinha.

Para meu desespero, a Lurdes lançou seu charme para cima do meu pai que logo percebeu, sem saber que era uma brincadeira. Tomou aquele banho caprichado, barbeou-se e vestiu a sua melhor roupa, e logo vi as meninas brincando que ele não era um homem de se jogar fora. Já não parecia tão velho mesmo para jovens da nossa idade.

Mas mesmo assim ainda permaneciam as brincadeiras sobre idade e ouvi também a outra moça dizer que jamais se envolveria com um homem que estava já no fim da vida. A Lurdes brincou que aí é que estava o segredo, porque ela ficaria com a riqueza que ele tinha. Na verdade, meu pai sempre foi um fazendeiro bem equilibrado financeiramente, como o é até hoje.

Para resumir, a brincadeira ficou séria, e menos de dois anos depois desses dias, eles já estavam casados. Esse foi o segundo casamento do meu pai, com a pessoa que eu queria para mim na época. E até hoje penso que a minha vida seria diferente e teria um outro sentido, se tivesse me casado com aquela que foi a esposa do meu pai por vinte e seis anos e deu a mim dois meio irmãos que estão ali, e que são as razões de maiores alegrias do meu pai.

E eu, guardo comigo esse segredo dolorido no coração, de um amor não resolvido.

A Lurdes morreu há dois anos atrás. Deixou uns cadernos com seu diário escrito, que jamais havia mostrado a ninguém. Quando estava quase à morte com um câncer fulminante, segredou-me que queria que eu ficasse com seus escritos, e deu-me a chave do baú onde os guardava, fazendo-me prometer que os destruiria sem mostrar a ninguém. E hoje sei que ela acabou envolvida pela brincadeira, e na inconsequência da juventude, acreditou seriamente que meu pai morreria logo, o que não aconteceu. Pelo contrário, ela conta, que percebeu que ele até ficou mais jovem com o casamento, e ela mais velha com a decepção de ter casado com quem não amava, na ilusão de que ele morreria, e deixaria para ela todos os bens. Conferindo hoje com o diário, posso lembrar que eu também havia notado que ela havia ficado mais sombria e mais velha depois do casamento, e logo ficou fraca e doente, até que apareceu o câncer que acabou com a sua vida ainda antes dos cinquenta anos. O diário acabou por revelar a mim que a minha madrasta também guardou em segredo um amor secreto por mim...

Vejo agora meu pai ali todo alegre e pronto para mais uma aventura das que se repetem em sua vida. Posso ver sua noiva muito mais nova ao lado dele, e notei nesse instante que ela tem o olhar vago, como se pensasse algo distante. Será que ela pensa que ele vai morrer logo?... Mas meu pai com esse pique que tem, chega tranquilo aos cem anos como aconteceu várias vezes com os muitos dos nossos parentes, inclusive meu avô que ainda dança todo contente do outro lado da sala.

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