Buscava uma paz e era de uma firmeza indescritível nessa busca. Não
lhe interessava qualquer paz. Desde os passeios pelo Belvedere, onde anos atrás
podia ir a pé com os filhos ainda pequenos, até as recentes visitas
ao filho casado e à netinha dengosa e ariana que a esperava com cara
de sono, tudo tinha um nexo. A estrutura era um amor à vida. Experimentava
uma viuvez saudável na casa da Favoriten-Strass cercada de todos os verdes
possíveis num condomínio de pouco luxo, devidamente confortável
no inverno, entre imensas vidraças que lhe traziam a natureza para dentro
de casa. A casa sim, era uma forma de neurose estrita e limitada: não
cederia um milímetro de seu carpete a solas que viessem da rua, não
se permitiria uma refeição menos que perfeita nem uma higiene
menos que absoluta.
Não se julgava mais que coerente. Reeditava a perfeição
da mãe vienense, que aos noventa anos ainda vivia sozinha e sem concessões
em sua casinha encantadora de conto de fada. Era ainda capaz de receber um hóspede
de vez em quando e servir de cicerone pelas ruas e construções
de Viena em seu carrinho prateado. Era ágil, de pequena estatura, não
muito leve mas ativa e acima de tudo enérgica. Seus momentos de repouso
tinham a qualidade que só os guerreiros chegam a conhecer. E as lembranças
que havia preparado com o perfeccionismo de costume visavam a um futuro impossível
de prever. Estocava lembranças como se guardasse joias - sua provisão
de alimentos para o inverno de formiga previdente. Não era preciso cuidar
mais do que desse perigo, porque a pensão do marido era suficiente para
nutri-la e vesti-la de modo digno e os serviços da casa não chegavam
a ocupá-la mais que umas poucas horas do dia. Morava ainda no mesmo lugar
dos tempos em que os dois meninos frequentavam a escola, a dois quarteirões
dali, e ela mesma trabalhava com a mãe no hospital do bairro como auxiliar
de enfermagem do saudoso doutor Furstenberg. Desse tempo recebia ainda
uma aposentadoria com a qual formava um pecúlio para Vanessa, a netinha
mais velha. O quarto que fora dos filhos ainda os esperava a qualquer momento;
havia camas embutidas ou visíveis para seis pessoas no largo espaço
onde eles tinham crescido e preparado suas lições. O quarto dela,
conservado como no tempo do marido, era um pedaço do passado coberto
por um cobertor de plumas de trinta centímetros de altura, onde as arandelas
da cabeceira tilintavam gotas de cristal checo a cada volta na cama. Era um
ruído evocativo que a embalava, nas noites às vezes difíceis
em que um medo incompreensível à luz do dia a obrigava a armar
uma barricada junto à janela enorme da sala.
Mas não abriria mão da independência e da tranquilidade
dos dias na casa da Favoriten. Seus pensamentos ali podiam movimentar-se com
a liberdade da água enquanto ela polia suas pratas e os vidros, enquanto
preparava o caldo de carne bem temperado e as panquecas em teia para acompanhá-lo.
Conhecia cada recanto dedo a dedo. Teria na certa sofrido uma autêntica
mutilação se aceitasse o convite de Frank para morar junto deles
na rua Maria Teresa. A casa da Favoriten era uma extensão de sua carne,
sua energia se concentrava e expandia através dela. Sabia a idade e as
fases da vida de cada árvore do pequeno bosque onde o condomínio
se espalhava, apartamentos bem próximos, de aspecto limpo, simples e
reto, periodicamente pintados e mantidos com apreciável cuidado. Nas
manhãs de sol após as compras e as providências de rotina,
ela caminhava a pé para o parque do Belvedere. Às vezes assistia
a missa na capela imperial e invariavelmente percorria as alamedas do imenso
jardim; se tivesse mais tempo livre, dava também uma volta pelo jardim
ao lado, das plantas exóticas. Voltava para o almoço e começava
a segunda parte de seu dia padrão. À noite podia pegar o carro
e ir ver um dos filhos ou receber a visita de alguma das vizinhas do bairro,
participar de uma sessão de jogo de cartas ou ver um vídeo em
uma das casas do condomínio. Os fins de semana eram da mãe, na
casa menor onde ela trabalhava muito mais que na sua própria, sempre
sorrindo, rápida e vibrante em frases curtas, certeiras e muitas vezes
cortantes.
Sempre havia tempo para tudo. Não reduzia nada, não encurtaria
caminho nenhum. Estava sempre pronta. Seria a qualquer momento encontrada com
a lâmpada acesa, bem alta, abastecida de combustível. A mulher
prudente, a mulher forte da escritura, a mulher bem banhada e de mãos
miraculosas acumulando seus tesouros.
Sentada no grande sofá da sala, a porta da estante aberta para que pudesse
assistir à TV, às vezes um arrepio lhe subia no entanto pela espinha,
que ela endireitava, espiritual, como se lhe tracionassem a cabeça para
cima - porque devia ser assim. Os sapatos na estante da entrada, o interior
imaculado da casa, ela mesma saciada de sua própria e íntegra
pureza. Entre suas relíquias, algumas memórias luziam como rubis,
pedras da cor do mar, ametistas e grandes topázios de luz própria
como diamantes. Mergulhava em recordações, os olhos presos às
imagens coloridas como joias, às vezes tão absorta que
qualquer ruído a fazia estremecer de susto.
Mas o verdadeiro pânico chegaria numa tarde sob a forma de um grilo, animal
até então desconhecido para ela mesmo no verão. Na sala,
audacioso e cantante, ele se apossava do silêncio e o triturava em um
pontilhado de sons cintilantes, ritmados de acordo com seu gosto de grilo. Demasiado
tropical para ser bem entendido. Não seria também uma lembrança
bem-vinda.
Movimentou céus e terra de sua propriedade, chegou mesmo a vislumbrar
um movimento de asas secas por trás do bufê, pesado demais par
ser removido. O grilo foi sucessivamente: uma surpresa, apenas um grilo, um
tormento na noite insone, um mal inadiável e o inimigo mortal contra
o qual ela concedeu até lançar mão de um inseticida, coisa
que fez usando uma máscara de pano grosso e luvas de plástico.
Conseguiu eliminar o ruído do inseto, mas não o cheiro do remédio,
que só ela sentia ainda quinze dias depois.
Aquilo lhe provocaria surtos de uma depressão desconhecida. Telefonava
o dia todo para seus amigos mais chegados, para a mãe, os filhos e até
a nora foi convocada no momento de aflição. Era uma fase de ônix.
Começava a querer coisas que antes não queria. Já não
lhe sobrava tempo para certas tarefas que sempre cumprira sem tropeços.
Tensa e cansada, sentindo perder o controle da própria vida, ela tentou
curar-se com banhos frequentes, relaxantes banhos perfumados de banheira.
Três, quatro e até seis por dia. Confusamente buscava conceder-se
alguma coisa de que carecia mas não conseguia identificar. Analisava-se,
acompanhando com o olhar o desenho dos membros leitosos, roliços, um
pouco sardentos, o ventre liso e arredondado, os seios ainda altos para a idade.
Nunca prestara muita atenção nos detalhes de seu corpo. Até
aqui tinham sido como extensões da casa para cuidar e polir. Tinha pêlos
cor de cobre no púbis. Cada descoberta lhe parecia um passo caverna adentro,
e era difícil precisar que joia e que tipo de cor estava procurando.
O sol da manhã já não era apenas um hábito salutar
quando aparecia: era um envoltório de luz quente, uma compressa de alegria
que durava pouco, mas lhe comunicava aos poros uma consciência diferente
da de suas práticas de costume. Já não podia ter a certeza
de que daria conta do programa do dia, a agenda era às vezes abandonada;
contentava-se em consumir uma fruta no lugar do almoço, enquanto a banheira
enchia de água esverdeada e tépida na qual ela derramaria umas
gotas do óleo que a deixava encantada com a própria pele. Ouvia
música durante os banhos. Strauss de manhã, Chopin à tarde,
Mozart ou Beethoven à noite e um dia, inacreditavelmente, ouviu toda
uma fita de Frank Sinatra durante o banho da tarde. Surpreendeu-se cantando.
Mas não previa que na noite daquele mesmo dia experimentaria o disco
de um cantor negro que nem conhecia e que aquela voz poderosa e profunda havia
de lhe arrancar sensações impublicáveis ao contato com
a água. Aos poucos, sem que se desse conta, a depressão dos tempos
do grilo saltara como uma tampa. Uma fumaça de incenso se libertava desde
então, lenta e contínua, fazendo da vidraça alta do banheiro
um vitral-caleidoscópio, tornando sua atmosfera perfumada como uma floresta
depois da primeira chuva do verão. Convocava sobrevivências que
já havia esquecido, era extraordinário como se sentia imprecisa
e plena em sua obscuridade.
Era como parar no meio de uma longa caminhada e olhar para trás. Ou sentir-se
perdida, com medo de não reconhecer o caminho de volta. No delicioso
auge de um banho ao meio-dia, pareceu-lhe ouvir de novo o canto de um grilo
na sala. Isso foi o sinal para um começo. Era certamente o momento de
extravasar. O que até então tinha sido maravilhamento, passaria
naturalmente à esfera das coisas realizadas e concretas que ela iria
incorporar ao esquecido tesouro. Enxugou-se, massageou lentamente o corpo com
uma loção confortável e fresca e caminhou pelo quarto como
quem vai começar uma afirmação, como quem pensa em voar
ou conseguir um recorde qualquer. Vestiu-se de frente para o espelho e a cada
peça parava, analisando-se em várias posições. O
interior do quarto a sustentava em perfume e plumas invisíveis cor de
penumbra que ela sentia como aos vinte anos. Um traje leve, capaz de deixar
transparecer algumas formas um pouco mais salientes caiu tão bem em seu
corpo alegre que a fez sorrir de pura delícia. Deslizou então
para as alamedas do condomínio, uma mecha loura solta sobre a testa,
sabendo apenas o bastante da vida.
Quando encheu a banheira antes da hora de dormir, bem mais tarde que de costume,
a água saiu azul da torneira e ela estremeceu num ímpeto de valsa.
Serena, um pouco solene, foi devagar mergulhando no que lhe parecia sem qualquer
hesitação o céu de Viena no verão que afinal chegava
a sua banheira. A leve trepidação da água ao contato de
seu corpo tornava mais intenso aquele azul. O Danúbio deixara de ser
azul logo que Strauss lhe tinha virado as costas. Mas parte de suas saudosas
águas corria agora em torno dela, vinda do momento de sua redescoberta.
Engolida pela banheira cheia, tragada de novo por uma taça digna dela,
seu coração apenas cambaleou como seria necessário e ela
se disse: sim. Sabia agora onde estava seu parceiro ideal de caça aos
grilos - não muito longe, logo ali algumas casas adiante. Um vizinho,
um vizinho só, e de sorriso misterioso. Também nisso sabia ser
prática e eficiente. Bastara ter certeza para encontrá-lo ao primeiro
chamado do cio. As perspectivas mais imediatas alvoroçavam seu banho
de turmalinas e ela fabricava o próprio brilho como uma noiva. A coleção
de lembranças estava adiada por motivo de força provisória
- e que força!