A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Caso em close

(Adelaide Amorim)

Moema viu Luís Carlos pela primeira vez e se lembrou dele. Só podia ser um atavismo, esse jeito de querer bem de repente e sem apelação possível. Ficava onipotente e senhora da terra e do céu, ao mesmo tempo que frágil: vivia o tempo da flor e sabia com tanta certeza, meu Deus, que só ele poderia colorir o gosto de seus frutos.

A corrida do tempo já conhecia, mas a história só se repete nas aparências, o importante é o processo, o que fica invisível aos olhos alheios como a carne por trás da pele dura das lagostas. Um noturno ou uma sonata não arrumam as estrelas nem as explicam, são consequências naturais delas e de tantas outras coisas que se experimentam mas não podem ser avaliadas, porque não se saberia como. Tomara nas mãos sua liberdade de ser autônomo e insubstituível e só lhe restava desabrochar.

Ele lhe despertava um improvável sentimento de laços de família. Por isso ficava difícil não ser natural com aquele estranho e mais ainda explicar essa familiaridade espontânea e súbita. Era preciso equilibrar a realidade com o que se passava dentro de si, sua vertigem. Era como se tivesse estado desde sempre envolvida com ele, esperando-o sabe Deus desde que fevereiro. O próprio cheiro daquele homem era o cheiro de seu passado. Os objetos cotidianos ganhavam uma espécie de consciência na presença dele. O dia a dia se tornava um tipo de confusa preparação de uma festa, como quando alguém chega de uma longa viagem. Longe dele ocupava os olhos e as palavras com objetos secundários, ai dela, e crescia ao ritmo de sua presença, e o estar longe era uma preparação para o encontro que havia de vir.

Trabalhavam juntos, um em frente ao outro. Ele chegara depois dela e ocupara seu lugar com a naturalidade de quem cumpre um destino. O dia se esgota quando uma presença faz bem demais ou desafia demais; as coisas se confundem, instigam além da conta e nos corroem. Há uma tolerância, um máximo e um mínimo além ou aquém dos quais tudo se quebra, espeta, oprime e tortura como um grande sofrimento. O sofrimento de quem espera uma notícia temida é muito parecido com o de quem espera alcançar na realidade o que já alcançou pelo desejo, e a presença e a ausência dele remoíam Moema. Esperar por um momento decisivo estava ficando insuportável: dois polos a atraíam com a mesma força, estava ficando dividida, despedaçada, porque era a cada dia feliz e delirante em sua presença, e desditosa como uma amante abandonada longe dele. Vê-lo ali à frente todo dia era demais, porque formalmente não poderia ser diferente dos outros, e era. A visão daquele rosto abriu um ciclo de sol e agonia, um tempo que não se dimensionava pelo relógio nem pelo calendário. Ela carregava a extraordinária experiência de um passado que talvez ela mesma não tivesse reconhecido ainda, mas naquele momento não lhe importava conhecer mais nada: apenas ardia em carne viva. Queria esse papel até a embriaguez e era como um profeta, misturando dor e prazer na missão que a transcendia, que vinha de algum lugar que não poderia precisar, embora estivesse dentro dela, transbordasse dela mesma e a tomasse como um mero instrumento.

Luís Carlos não manifestava qualquer estranheza em ser tratado como se devesse saber coisas que não sabia. Jogava sem conhecer bem as regras do jogo, e talvez não percebesse onde e quando deveria mostrar-se mais hábil. Condescendia às vezes e era cruel por isso e também por não alcançar o significado dos sorrisos e gestos que Moema lhe dirigia. Junto dele, apesar de tudo, todos os metais eram preciosos e ela acreditava além dos limites: tudo que ele dissesse devia ser acatado e acreditado, nada que viesse dele podia ser posto em dúvida, porque indicava o caminho para trazê-lo a si.

Logo de início a relação foi lúdica, Luís contava piadas como ninguém e Moema ria sem restrições. Riam como crianças. Às vezes tudo ficava muito engraçado mesmo, o mundo virava um amontoado de absurdos deliciosos; ele tinha na verdade um senso de humor bem apurado, bem agudo, e não lhe escapara que havia mais a fazer que divertir aquela mulher. Entraram no supermercado um dia, à hora do almoço, e roubaram biscoitos, encheram o carrinho de produtos importados que não iriam comprar. Paravam para olhar as nuvens que correndo pelo céu pareciam mover os edifícios e completamente tontos tinham que se apoiar um no outro para não cair. Olhavam as vitrines do shopping e juntos faziam toda espécie de planos fantasiosos, falavam de coisas acima de todo mal. Iam comer doces na lanchonete, andavam pela cidade e de repente estavam de mãos dadas até cair de cansaço num banco de jardim. Nesse dia esqueceram da hora e pela primeira vez Luís ficou realmente perdido em Moema.

Ela não tentava fugir de nada, não recusava nada, nem mesmo o lado sombrio da tempestade que havia de vir. Sozinha, ouvia música de fossa e premeditava o sofrimento com uma volúpia sublime. Sobressaltava-se pensando em algum erro imaginário que o tiraria para sempre dela, mas para sempre no caso deles podia ir de dois dias ao resto da vida, quem poderia saber, tudo tão incerto. Tentando dormir, premeditava os sonhos que desejava ter, começava a sonhar antes do sono e acendia o abajur para ler um livro qualquer que não chegaria a entender direito porque seu pensamento não dispunha de forças para tanto, minado pela imagem dele e pelo desejo. O quarto vazio lhe parecia às vezes hostil, abraçava o travesseiro com gana, rezava para que estivesse pensando nela. Mas só a presença a salvaria. Sozinha, carregava seu segredo de espuma e sal e às vezes tropeçava numa saudade insuportável e prematura, que era como uma culpa que se rejeita para não sofrer demais. Sentia-se protegida com ele, e era uma espécie de confiança tão inventada como seus planos, e tão feliz. Fazia-lhe um pouco de medo, às vezes, porque a atraía como um abismo. Ficava pequena, empurrada sem resistência possível e fruía a sensação da queda. Ele dizia as coisas de modo a não admitir contestação e sem parecer prepotente, porque dizia o que ela queria ouvir. Não seria sempre assim, mas o futuro não estava convocado senão em sonho.

Ele seria sempre e só presente. Já o havia amado antes, em algum passado desta ou de outra vida, em outra encarnação em que não acreditavam. A luz só se apaga se for capturada e presa em uma lâmpada. Não queria promessas, qualquer miragem além da realidade daqueles dias. Todo-poderoso, o toque de sua mão a fazia vulnerável, e tudo que desejava nesses momentos era morrer de sua morte, dois pássaros tontos nas tardes rosadas de início de outono. Às vezes lhes doíam palavras de fazer a tarde mais bonita e mais triste. Não sabiam, não saberiam nunca até quando. Não há o que se possa fazer, melhor calar e permitir o gesto, o olhar, quem sabe até o riso, embora tudo lhes parecesse às vezes prestes a doer, numa economia surda de saudade antecipada.

Houve uma noite em que a luz de faróis que passavam por eles iluminou nos olhos de Luís Carlos um distanciamento que foi como desfalecer. Mas era só um olhar, um olhar talvez atento ao caminho. E tudo que sofria com ele a fazia exultar, porque logo haveria as mãos em tropismos de carinho, e a fragilidade de existir se estilhaçava em seus próprios limites. Nos longos serões com a família, a mãe e as tias, a irmã mais velha lhe haviam falado de muitas coisas, muito do que encontraria pela vida que a esperava, mas nunca ouvira nada sobre aquela infinita agonia de ficar tonta de alegria e dor como se soubesse que ia perder alguma coisa irrecuperável para sempre. Teria ficado revoltada se alguém lhe falasse disso, não entenderia. Nada do que lhe tivessem dito ou estivessem por dizer faria sentido: a qualidade daquilo que estava vivendo era ser isento de promessas ou planos. Isento, existindo por si mesmo, nada sobraria daqueles momentos porque nada lhes havia faltado. Além disso, ele lhe dissera uma vez, as palavras às vezes se traem a si próprias, virando seu gume contra quem as usou. Viver sim, faz o sentido completo, e não havia por que ter medo: bastava sentir esse medo adstringente lhe apertando o esôfago. A verdade, primeira e última, nunca mais haveria outra. A verdade exigente, voraz, querendo tudo, resgatando tudo. Conjugavam-se sem erros no incondicional de estarem juntos.

Uma ilusão que é só desilusão, tocava o radinho de suas trilhas sonoras. Eram clandestinos das tardes de abril e maio, descobrindo caminhos que os afastassem das caras cotidianas, rasgando um espaço arrancado pela urgência ao dia a dia. Deviam escolher entre o perfeito e o eterno. Um sumo de vida brotava puro para o batismo, viviam da beleza casual das coisas inúteis a que ninguém presta muita atenção, dos gestos espontâneos e inconsequentes em que seus corpos se encontravam e se enlaçavam protegidos por súbitas asas libertadoras para o voo obscuro, fremente e turbulento ao céu da paz mais profunda. À cintilação desses momentos absolutos em que se prova o clímax da vida, tudo mais ultrapassado, descartado. Chegariam até a floração de promessas que ninguém tinha pensado em formular e no entanto se cumpriam, soberbas, no auge de um momento pleno. Até o silêncio feérico de saber que não se irá mais além com vida. Até o voo mais alto e longo, na mais pungente sintonia dos sonhos mais ousados.

E então já não importava o que viesse depois.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br