A Garganta da Serpente
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O amor tão perto de nós

(Adelaide Amorim)

Foram a um restaurantezinho meio escondido, a algumas quadras dali. Comeram um picadinho que pareceu a Clarice a coisa mais deliciosa e sofisticada que jamais havia provado. Ele pediu vinho "para comemorar a ocasião", falou de mil insignificâncias essenciais e depois ficou olhando para ela por cima de uma fatia de torta de creme com aquele jeito caçoísta que ela tinha visto antes. Mas havia mais: havia mais interrogações do que zombaria na expressão dele, agora. Um estado de espírito estranho e ao mesmo tempo muito familiar foi se apossando de Clarice, como uma dessas lembranças de infância que a gente revive sem saber bem por quê, até que atinou com o cheiro da torta e sorriu.

- O que foi? - ele quis saber.

- Estou pensando em Proust.

- Mesmo?

- É verdade, minha avó... Olha só, eu já falando de avó, o que é que...

- Continua, Clarice, por favor, continua, ele disse, com uma voz incrivelmente meiga que a fez hesitar.

- É que...

- Gosto muito de Proust, você sabe? - e agora o tom era neutro, quase acadêmico, acompanhado de um olhar um pouco severo, um pouco sorridente.

Sentiu-se embaraçada, levada às nuvens, mas muito embaraçada. Olhou o relógio e pediu para irem embora, estava se atrasando demais. Ele a olhou mais sério ainda e chamou o garçom. Não admitiu dividir a conta e se despediu dela, quase paternal, com um beijo no rosto. Mas o cheiro de sua barba a acompanharia pelo resto do dia.

Voltou ao trabalho renovada. Tinha os olhos brilhantes, as faces coradas, e mentiu para justificar o atraso. Mas era fácil mentir por um bom motivo.

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