A Garganta da Serpente
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Acrílico

(Adelaide Amorim)

Os beirais da infância se chamavam chuva e estavam situados entre constelações e umas vidraças de açúcar cândi de onde a luz escoava com doçura. Os gatos da noite costumavam contar mistérios assustadores de acordar crianças. Ele sentava à beira da cama, o coração pulando alto, e ficava quieto, olhos bem abertos para o escuro, até que as formas indefinidas começassem a se tornar familiares de novo. Esperava o momento de levar seu medo até o travesseiro quente da mãe e sentir o cheiro real de seus cabelos. (Um dia tentara continuar imóvel na cama e a treva foi se tornando um corpo com vida própria e movimentos fantásticos. Aí ele chorou e tremeu tanto que toda a casa se acendeu e correu em seu auxílio, e até vovó Chiquinha levantou para ver o que estava acontecendo.)

A visão da casa antiga, meio arruinada, o quintal cheio de mato e plantas bravas, terra seca, suja, doía fundo aquela dor sem remédio dos adultos. Lembrava da rede branca debaixo do pé de jasmim-estrela, cheirando forte nas noites de lua cheia. As amendoeiras estavam lá, mas agora sua sombra perdera o frescor e a maciez de antes. Rede rima com parede, o pai dissera uma vez, e para ele rimava também com as balas de coco que Jandira sabia fazer como ninguém e se desmanchavam na boca. Tudo fora tão branco naqueles dias.

O telhado do vizinho sustentava o crepúsculo e liberava a estrela Dalva todas as madrugadas. E quando chegava o frio, havia cobertores e almofadas de dar gosto. Os discos do pai eram bonitos de fazer chorar, a mãe sabia histórias com gosto de chocolate quente com torradas cheias de manteiga. Tudo se perderia, ninguém poderia herdar isso, como se fosse a fábrica ou a frota de caminhões: isso era intransferível.

Costumava acordar bem cedo e ficar na cama gostando das coisas, da luz azulada pelo quarto. Gostava de olhar o próprio corpo estendido e estudava devagar os contornos magros, as pontas dos ossos aparecendo, os ângulos dos joelhos, pés e mãos fininhos e frágeis. Depois fechava os olhos com força e se imaginava Jim das Selvas em plena aventura ou o Capitão Nemo resolvendo com serena bravura seus problemas submarinos. Esperava a hora em que a mãe entraria no quarto para abrir a janela e sentar-se a seu lado com aquele jeito manso de tristeza mesmo quando sorria. Os movimentos dela lembravam o voo das garças, ela pairava, restringia-se ao mínimo de gestos indispensáveis. Acompanhava com os olhos a figura meio luminescente atravessando o quarto, inspirava com mais força para sentir o cheiro leve de sândalo se desprendendo de sua roupa. Às vezes vovó Chiquinha chegava na porta do quarto de camisolão branco e ficava olhando para os dois como se visse através deles.

- Por que ela olha assim para nós? - cochichara um dia para a mãe.

Ela fizera um gesto vago, que tanto podia querer dizer "não sei" como "não interessa", e falara de outros assuntos. A mãe parecia temer a presença da velhinha calada, com olhos grandes de cachorro com medo. Vira um retrato dela no grande álbum de capa azul e quase não acreditou quando o pai disse que aquela era vovó Chiquinha aos dezessete anos: uma figura linda, de rosto firmemente oval e cabelos cacheados, grandes olhos escuros cheios de vida e sorriso luminoso. Tentou por todos os meios identificá-la com a figura meio grotesca que via perambulando pela casa, encurvada, a cara seca com jeito de folha morta, constrangedora de tão triste.

Estava proibido de entrar no quarto da avó, não devia incomodar a velhinha nem mexer em seus pertences, que depois ela não encontraria os remédios e quinquilharias no lugar e ficaria resmungando pelos cantos. Num dia de verão, depois do almoço, enquanto ela cochilava na cadeira de balanço da varanda, foi até lá com passos cuidadosos e abriu todas as gavetas, cheias de livros de missa, rosários, pedaços de pano, barbantes e botões misturados a roupas mal dobradas. Na mesinha de cabeceira havia um grande retrato amarelado que ele imediatamente associou ao Capitão Nemo: um rosto de homem tão bonito, de ar petulante, bem penteado, meia-barba e bigodes elegantíssimos, olhando-o diretamente nos olhos de um modo desconcertante. Havia nele tanta vivacidade e uma expressão tão forte que nem parecia retrato, muito menos retrato velho. Ia ler o que estava escrito atrás em letra firme, diferente de todas as letras que conhecia, quando ouviu a voz grave e ríspida do pai e ficou paralisado de susto. A descoberta lhe valeu três dias sem sobremesa e sem brincadeiras no quintal.

Soubesse da vida, teria achado graça nos castigos daquele tempo. A mãe sofria com ele, sentada na cadeira de vime da sala de estar, costurando roupas brancas e cerzindo meias do pai sobre um ovo de madeira marrom-claro. Quase não falava, respondia a suas perguntas com uma vozinha de menina tímida. Quando lhe perguntou se aquele homem do retrato era vovô Henrique, ela ficou calada e vermelha e se espetou na agulha. Ele sabia que não era, a pergunta era maldosa e tinha a intenção de criar um embaraço. Vovô Henrique também estava no álbum azul, era magro e louro, cabelos ralos e olhar sério, rosto carrancudo e escanhoado. Ninguém em sã consciência o confundiria com o Capitão Nemo. Podia ser tio João Pedro, que morrera novo ainda de gripe espanhola, e a ele intrigava um pouco o embaraço que os mais velhos mostravam quando falavam dele. No fundo, também estava certo de que o homem do retrato não era tio João Pedro. Aquele mistério o perseguiria ainda durante muito tempo, quantas vezes chegou a abrir a boca para perguntar à própria avó a identidade do barbudo, mas sempre perdia a coragem no último instante.

Durante os dias de castigo ou de chuva, distraía-se estudando os objetos imutáveis da sala, dos quais talvez nunca se apercebesse se pudesse brincar sempre no quintal. Descobriu na sala de jantar um quadro que, pelo jeito, viera com a parede e desapareceria com ela: uma pequena gravura em que uma velhinha bem diferente de vovó jogava milho para as galinhas, ao lado de uma casa de sopapo. Olhando sem piscar, pulava para dentro da figura e podia explorar o resto do terreiro do outro lado da casa. O horizonte era plano e longo como um voo e prometia felicidade e aventura. Não havia galinhas nem pintos, e a velhinha distraída podia ser vista de costas, com seu chinelo surrado e um vasto avental como o de Jandira, cheirando a pano molhado.

As manhãs da varanda, douradas e rendadas de sombras, o cheiro de plantas e terra úmida que entrava pelas narinas e o invadia todo vinham impregnados de uma espécie de pressentimento vazio que o acompanharia pela vida afora. Como uma eternidade escapando devagarinho. Tanta coisa guardada que nem se cogita de contar a ninguém, que essa vida é uma aflição de trabalho, um delírio de tempos marcados e afazeres urgente, e quem iria se interessar?

- A nova secretária chegou.

- Pode mandar entrar.

A luz da janela à direita dava um ar amanhecido à figura esguia e silenciosa em atitude de espera. Numa tarde, anos depois desse dia, eles estariam sentados frente a frente à mesa de um bar, e ela lhe diria:

- A vida é feita de momentos. Melhor viver todos eles e ir fundo a cada um.

Sem prever nem saber exatamente por quê contaria a ela um dia como o pai rasgara e queimara os papéis e os livros de vovó Chiquinha, de volta do cemitério onde a haviam deixado pela manhã. E como se empenhara em achar um retrato em vão, e da raiva com que atirara ao chão a jarra de porcelana de rosinhas azuis que ficava tão bem em cima da cômoda escura. Contou tanta coisa a Helena, nunca lhe ocorreria indagar se ela estava ou não interessada. Mas havia sempre aquela expressão benévola em seus olhos, que o encorajava a continuar e que às vezes se confundia com a ternura. Divertira-se com muitas garotas, foram bons momentos, mas Helena o continuava e o acolhia. Era como se olhasse para si mesmo através dos olhos dela.

E um dia ela lhe havia dito:

- Você nunca vai me procurar, eu sei. Também não vou esperar por você, seria muito penoso. Talvez a gente se encontre por aí.

No verão, as moscas tontas esbarravam na gente e a voz das cigarras lhe parecia sempre vermelha como o pôr-do-sol. O vidro de cocadas ao alcance da mão, ele estudava para as provas finais no banco do jardim, enquanto Diva ia e vinha procurando trevos de quatro folhas nos canteiros. Tinha quinze anos, a filha de Jandira. Olhava para ela, o caderno esquecido sobre as pernas, os braços estendidos no encosto do banco. O vestido vermelho lhe dava a impressão de ser macio, assim iluminado pela tarde, e os movimentos dela mantinham um ritmo qualquer que o intrigava e fascinava. Sentiu-se de repente muito interessado por trevos de quatro folhas, tanto que lhe era impossível entender o mais comezinho teorema.

A caça aos trevos se repetiu durante várias tardes, e num daqueles dias, quando a mãe havia ido à cidade e Jandira passava roupa, tranquila e alheia a todos os cuidados, eles se encontraram a sós no quarto de guardados, onde não havia trevos para descobrir.

A porta do quarto da mãe rangia com um som grave e partido de dobradiça pesada. Não ousava abri-la e ficava ansioso, ouvindo as vozes alteradas vindas lá de dentro. Estranhava o tom da mãe, sempre tão meiga, agora assim agudo.

- Ninguém pode obrigar... ninguém tem o direito...

- ...questão de decência... dever... você está ouvindo? ...o dever...

As vozes iam e vinham através da maldita porta envernizada, não se podia ouvir tudo, e isso o deixava em pânico.

- ...sua mãe, sua própria mãe...

Ouviu uns ruídos surdos, um grito abafado e depois mais nada. Aquela angústia não acabaria nunca, horas colado à porta, no corredor escuro que lhe dava medo, indeciso entre chamar, entrar ou simplesmente ir chorar em seu quarto. Mas a cabeça parecia querer explodir e a garganta mal deixava passar a saliva.

A mãe murchara, mais calada do que nunca. O vazio deixado pelo pai era uma espécie de alívio indefinido, logo absorvido pela monotonia cotidiana da casa. O relógio de pé batendo cada hora como se fosse a última, o imutável lustre pendurado no centro do teto e o cheiro de flores secas vindo da estante. Havia talvez uma inquietação difusa, como se todos tivessem uma pergunta nos olhos. Não havia mais o apaziguamento de antes. Sim, era isso, como se a segurança estivesse perdida. Ao mesmo tempo crescera nele um sentimento de individualidade, como se uma pessoa nova emergisse, uma luz desconhecida se acendendo dentro dele.

As portas do futuro haviam se aberto sem que o notasse. Portas verdes, durante dias incontáveis as observara, calado e dono de todas as certezas, a alma leve. E no momento crucial estivera distraído. Os cantos intactos se esfumaram, mancharam-se de treva e ficaram irreconhecíveis. Como no dia em que tio Artur prometera solenemente esperar por ele, um garoto de dez anos, e quando ele voltou do quarto o tio se fora pelo portão dos fundos: ainda chegou a ver o vulto, do alto da varanda, mas não era mais o vulto querido daquele homem mais velho e divertido que brincava com ele e o alegrava mais do que qualquer brinquedo novo. Tinha virado um estranho, um desconhecido qualquer, e sua angústia fora tanta que as lágrimas rolaram, queimando seus olhos antes que conseguisse impedir.

O futuro também se fora clandestinamente pelo portão dos fundos e carregara consigo sua bagagem de esperanças mal definidas e falsas promessas. Ocorreu-lhe que, como no caso do tio, faltara-lhe maturidade para perceber o que estava acontecendo.

Agora se contentaria com um jardim qualquer, ainda que fosse o último e artificial. Grama, folhagens e um simples cheiro de verde. A névoa depois da nitidez do sol. Um aconchego de sombras matizadas, ruídos que ninguém sabe de onde vêm. O verão queimando, mas o córrego não seca, talvez até um lago. Uma silhueta real, constante. Braços à espera dele em algum lugar. Fruir o simples.

Agora o acrílico, o aço e o vidro fumé de sua sala. Transportado, transplantado para tão longe, ao outono sem folhas do mundo novo: eis no que dera o futuro. Via-se a si mesmo atravessando aquela sala, a silhueta meio pesada, nada a ver com o garoto magrela ou com o adolescente esguio descobrindo a vida. Uma figura sólida, o homem meticuloso e racional deslocando-se sozinho em seu silêncio. Aquelas ruínas lhe haviam servido para reviver um pouco o que na realidade já não lhe dizia respeito. Estava deslocado e um pouco perplexo diante daquele muro antigo e meio demolido. Passara ali por acaso, lembrara da casa e lhe dera um desejo incontrolável de olhar de novo o jardim, a varanda. Mas agora quase se arrependia. "Minha matéria", pensou parado no meio da calçada, "é dura, vazia e transparente. As imagens e os reflexos estão perdidos num outro tempo." Alguma coisa havia perdido a consistência, como pisar num desnível do chão que não se havia percebido.

Voltou rapidamente ao carro e rumou para o escritório. Lá, sentou-se e tomou a caneta para assinar as folhas rigorosamente arrumadas por ordem de prioridade.

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