Os beirais da infância se chamavam chuva e estavam situados entre constelações
e umas vidraças de açúcar cândi de onde a luz escoava
com doçura. Os gatos da noite costumavam contar mistérios assustadores
de acordar crianças. Ele sentava à beira da cama, o coração
pulando alto, e ficava quieto, olhos bem abertos para o escuro, até que
as formas indefinidas começassem a se tornar familiares de novo. Esperava
o momento de levar seu medo até o travesseiro quente da mãe e
sentir o cheiro real de seus cabelos. (Um dia tentara continuar imóvel
na cama e a treva foi se tornando um corpo com vida própria e movimentos
fantásticos. Aí ele chorou e tremeu tanto que toda a casa se acendeu
e correu em seu auxílio, e até vovó Chiquinha levantou
para ver o que estava acontecendo.)
A visão da casa antiga, meio arruinada, o quintal cheio de mato e plantas
bravas, terra seca, suja, doía fundo aquela dor sem remédio dos
adultos. Lembrava da rede branca debaixo do pé de jasmim-estrela, cheirando
forte nas noites de lua cheia. As amendoeiras estavam lá, mas agora sua
sombra perdera o frescor e a maciez de antes. Rede rima com parede, o pai dissera
uma vez, e para ele rimava também com as balas de coco que Jandira sabia
fazer como ninguém e se desmanchavam na boca. Tudo fora tão branco
naqueles dias.
O telhado do vizinho sustentava o crepúsculo e liberava a estrela Dalva
todas as madrugadas. E quando chegava o frio, havia cobertores e almofadas de
dar gosto. Os discos do pai eram bonitos de fazer chorar, a mãe sabia
histórias com gosto de chocolate quente com torradas cheias de manteiga.
Tudo se perderia, ninguém poderia herdar isso, como se fosse a fábrica
ou a frota de caminhões: isso era intransferível.
Costumava acordar bem cedo e ficar na cama gostando das coisas, da luz azulada
pelo quarto. Gostava de olhar o próprio corpo estendido e estudava devagar
os contornos magros, as pontas dos ossos aparecendo, os ângulos dos joelhos,
pés e mãos fininhos e frágeis. Depois fechava os olhos
com força e se imaginava Jim das Selvas em plena aventura ou o Capitão
Nemo resolvendo com serena bravura seus problemas submarinos. Esperava a hora
em que a mãe entraria no quarto para abrir a janela e sentar-se a seu
lado com aquele jeito manso de tristeza mesmo quando sorria. Os movimentos dela
lembravam o voo das garças, ela pairava, restringia-se ao mínimo
de gestos indispensáveis. Acompanhava com os olhos a figura meio luminescente
atravessando o quarto, inspirava com mais força para sentir o cheiro
leve de sândalo se desprendendo de sua roupa. Às vezes vovó
Chiquinha chegava na porta do quarto de camisolão branco e ficava olhando
para os dois como se visse através deles.
- Por que ela olha assim para nós? - cochichara um dia para a mãe.
Ela fizera um gesto vago, que tanto podia querer dizer "não sei"
como "não interessa", e falara de outros assuntos. A mãe
parecia temer a presença da velhinha calada, com olhos grandes de cachorro
com medo. Vira um retrato dela no grande álbum de capa azul e quase não
acreditou quando o pai disse que aquela era vovó Chiquinha aos dezessete
anos: uma figura linda, de rosto firmemente oval e cabelos cacheados, grandes
olhos escuros cheios de vida e sorriso luminoso. Tentou por todos os meios identificá-la
com a figura meio grotesca que via perambulando pela casa, encurvada, a cara
seca com jeito de folha morta, constrangedora de tão triste.
Estava proibido de entrar no quarto da avó, não devia incomodar
a velhinha nem mexer em seus pertences, que depois ela não encontraria
os remédios e quinquilharias no lugar e ficaria resmungando pelos cantos.
Num dia de verão, depois do almoço, enquanto ela cochilava na
cadeira de balanço da varanda, foi até lá com passos cuidadosos
e abriu todas as gavetas, cheias de livros de missa, rosários, pedaços
de pano, barbantes e botões misturados a roupas mal dobradas. Na mesinha
de cabeceira havia um grande retrato amarelado que ele imediatamente associou
ao Capitão Nemo: um rosto de homem tão bonito, de ar petulante,
bem penteado, meia-barba e bigodes elegantíssimos, olhando-o diretamente
nos olhos de um modo desconcertante. Havia nele tanta vivacidade e uma expressão
tão forte que nem parecia retrato, muito menos retrato velho. Ia ler
o que estava escrito atrás em letra firme, diferente de todas as letras
que conhecia, quando ouviu a voz grave e ríspida do pai e ficou paralisado
de susto. A descoberta lhe valeu três dias sem sobremesa e sem brincadeiras
no quintal.
Soubesse da vida, teria achado graça nos castigos daquele tempo. A mãe
sofria com ele, sentada na cadeira de vime da sala de estar, costurando roupas
brancas e cerzindo meias do pai sobre um ovo de madeira marrom-claro. Quase
não falava, respondia a suas perguntas com uma vozinha de menina tímida.
Quando lhe perguntou se aquele homem do retrato era vovô Henrique, ela
ficou calada e vermelha e se espetou na agulha. Ele sabia que não era,
a pergunta era maldosa e tinha a intenção de criar um embaraço.
Vovô Henrique também estava no álbum azul, era magro e louro,
cabelos ralos e olhar sério, rosto carrancudo e escanhoado. Ninguém
em sã consciência o confundiria com o Capitão Nemo. Podia
ser tio João Pedro, que morrera novo ainda de gripe espanhola, e a ele
intrigava um pouco o embaraço que os mais velhos mostravam quando falavam
dele. No fundo, também estava certo de que o homem do retrato não
era tio João Pedro. Aquele mistério o perseguiria ainda durante
muito tempo, quantas vezes chegou a abrir a boca para perguntar à própria
avó a identidade do barbudo, mas sempre perdia a coragem no último
instante.
Durante os dias de castigo ou de chuva, distraía-se estudando os objetos
imutáveis da sala, dos quais talvez nunca se apercebesse se pudesse brincar
sempre no quintal. Descobriu na sala de jantar um quadro que, pelo jeito, viera
com a parede e desapareceria com ela: uma pequena gravura em que uma velhinha
bem diferente de vovó jogava milho para as galinhas, ao lado de uma casa
de sopapo. Olhando sem piscar, pulava para dentro da figura e podia explorar
o resto do terreiro do outro lado da casa. O horizonte era plano e longo como
um voo e prometia felicidade e aventura. Não havia galinhas nem
pintos, e a velhinha distraída podia ser vista de costas, com seu chinelo
surrado e um vasto avental como o de Jandira, cheirando a pano molhado.
As manhãs da varanda, douradas e rendadas de sombras, o cheiro de plantas
e terra úmida que entrava pelas narinas e o invadia todo vinham impregnados
de uma espécie de pressentimento vazio que o acompanharia pela vida afora.
Como uma eternidade escapando devagarinho. Tanta coisa guardada que nem se cogita
de contar a ninguém, que essa vida é uma aflição
de trabalho, um delírio de tempos marcados e afazeres urgente, e quem
iria se interessar?
- A nova secretária chegou.
- Pode mandar entrar.
A luz da janela à direita dava um ar amanhecido à figura esguia
e silenciosa em atitude de espera. Numa tarde, anos depois desse dia, eles estariam
sentados frente a frente à mesa de um bar, e ela lhe diria:
- A vida é feita de momentos. Melhor viver todos eles e ir fundo a cada
um.
Sem prever nem saber exatamente por quê contaria a ela um dia como o pai
rasgara e queimara os papéis e os livros de vovó Chiquinha, de
volta do cemitério onde a haviam deixado pela manhã. E como se
empenhara em achar um retrato em vão, e da raiva com que atirara ao chão
a jarra de porcelana de rosinhas azuis que ficava tão bem em cima da
cômoda escura. Contou tanta coisa a Helena, nunca lhe ocorreria indagar
se ela estava ou não interessada. Mas havia sempre aquela expressão
benévola em seus olhos, que o encorajava a continuar e que às
vezes se confundia com a ternura. Divertira-se com muitas garotas, foram bons
momentos, mas Helena o continuava e o acolhia. Era como se olhasse para si mesmo
através dos olhos dela.
E um dia ela lhe havia dito:
- Você nunca vai me procurar, eu sei. Também não vou esperar
por você, seria muito penoso. Talvez a gente se encontre por aí.
No verão, as moscas tontas esbarravam na gente e a voz das cigarras lhe
parecia sempre vermelha como o pôr-do-sol. O vidro de cocadas ao alcance
da mão, ele estudava para as provas finais no banco do jardim, enquanto
Diva ia e vinha procurando trevos de quatro folhas nos canteiros. Tinha quinze
anos, a filha de Jandira. Olhava para ela, o caderno esquecido sobre as pernas,
os braços estendidos no encosto do banco. O vestido vermelho lhe dava
a impressão de ser macio, assim iluminado pela tarde, e os movimentos
dela mantinham um ritmo qualquer que o intrigava e fascinava. Sentiu-se de repente
muito interessado por trevos de quatro folhas, tanto que lhe era impossível
entender o mais comezinho teorema.
A caça aos trevos se repetiu durante várias tardes, e num daqueles
dias, quando a mãe havia ido à cidade e Jandira passava roupa,
tranquila e alheia a todos os cuidados, eles se encontraram a sós
no quarto de guardados, onde não havia trevos para descobrir.
A porta do quarto da mãe rangia com um som grave e partido de dobradiça
pesada. Não ousava abri-la e ficava ansioso, ouvindo as vozes alteradas
vindas lá de dentro. Estranhava o tom da mãe, sempre tão
meiga, agora assim agudo.
- Ninguém pode obrigar... ninguém tem o direito...
- ...questão de decência... dever... você está ouvindo?
...o dever...
As vozes iam e vinham através da maldita porta envernizada, não
se podia ouvir tudo, e isso o deixava em pânico.
- ...sua mãe, sua própria mãe...
Ouviu uns ruídos surdos, um grito abafado e depois mais nada. Aquela
angústia não acabaria nunca, horas colado à porta, no corredor
escuro que lhe dava medo, indeciso entre chamar, entrar ou simplesmente ir chorar
em seu quarto. Mas a cabeça parecia querer explodir e a garganta mal
deixava passar a saliva.
A mãe murchara, mais calada do que nunca. O vazio deixado pelo pai era
uma espécie de alívio indefinido, logo absorvido pela monotonia
cotidiana da casa. O relógio de pé batendo cada hora como se fosse
a última, o imutável lustre pendurado no centro do teto e o cheiro
de flores secas vindo da estante. Havia talvez uma inquietação
difusa, como se todos tivessem uma pergunta nos olhos. Não havia mais
o apaziguamento de antes. Sim, era isso, como se a segurança estivesse
perdida. Ao mesmo tempo crescera nele um sentimento de individualidade, como
se uma pessoa nova emergisse, uma luz desconhecida se acendendo dentro dele.
As portas do futuro haviam se aberto sem que o notasse. Portas verdes, durante
dias incontáveis as observara, calado e dono de todas as certezas, a
alma leve. E no momento crucial estivera distraído. Os cantos intactos
se esfumaram, mancharam-se de treva e ficaram irreconhecíveis. Como no
dia em que tio Artur prometera solenemente esperar por ele, um garoto de dez
anos, e quando ele voltou do quarto o tio se fora pelo portão dos fundos:
ainda chegou a ver o vulto, do alto da varanda, mas não era mais o vulto
querido daquele homem mais velho e divertido que brincava com ele e o alegrava
mais do que qualquer brinquedo novo. Tinha virado um estranho, um desconhecido
qualquer, e sua angústia fora tanta que as lágrimas rolaram, queimando
seus olhos antes que conseguisse impedir.
O futuro também se fora clandestinamente pelo portão dos fundos
e carregara consigo sua bagagem de esperanças mal definidas e falsas
promessas. Ocorreu-lhe que, como no caso do tio, faltara-lhe maturidade para
perceber o que estava acontecendo.
Agora se contentaria com um jardim qualquer, ainda que fosse o último
e artificial. Grama, folhagens e um simples cheiro de verde. A névoa
depois da nitidez do sol. Um aconchego de sombras matizadas, ruídos que
ninguém sabe de onde vêm. O verão queimando, mas o córrego
não seca, talvez até um lago. Uma silhueta real, constante. Braços
à espera dele em algum lugar. Fruir o simples.
Agora o acrílico, o aço e o vidro fumé de sua sala. Transportado,
transplantado para tão longe, ao outono sem folhas do mundo novo: eis
no que dera o futuro. Via-se a si mesmo atravessando aquela sala, a silhueta
meio pesada, nada a ver com o garoto magrela ou com o adolescente esguio descobrindo
a vida. Uma figura sólida, o homem meticuloso e racional deslocando-se
sozinho em seu silêncio. Aquelas ruínas lhe haviam servido para
reviver um pouco o que na realidade já não lhe dizia respeito.
Estava deslocado e um pouco perplexo diante daquele muro antigo e meio demolido.
Passara ali por acaso, lembrara da casa e lhe dera um desejo incontrolável
de olhar de novo o jardim, a varanda. Mas agora quase se arrependia. "Minha
matéria", pensou parado no meio da calçada, "é
dura, vazia e transparente. As imagens e os reflexos estão perdidos num
outro tempo." Alguma coisa havia perdido a consistência, como pisar
num desnível do chão que não se havia percebido.
Voltou rapidamente ao carro e rumou para o escritório. Lá, sentou-se
e tomou a caneta para assinar as folhas rigorosamente arrumadas por ordem de
prioridade.