A minha história, contei-a quando fui preso, mas ninguém acreditou
em mim. Contei-a de novo, durante o processo. Contei tudo como se havia passado.
Deus me defenda! Pormenorizei tudo, e as palavras e os gestos da Srª. Mannering
e as minhas palavras e os meus gestos. E para quê? "O réu
fez uma declaração incoerente, inadmissível, nos detalhes
em que não repousa sobre nenhuma aparência de prova", assim
se exprimiu um jornal de Londres; para os outros, foi como se eu não
tivesse apresentado defesa alguma. E entretanto eu vi com estes olhos o assassinato
do Sr. Mannering; nele estou tão inocente como qualquer dos jurados que
me julgaram. E já que hoje estais aí, senhor, para receber os
requerimentos dos prisioneiros, eis o meu. Peço-vos que o leias, somente
que o leias. Depois sabereis qual o caráter daquela Srª. Mannering
- se é que ela conserva ainda o nome que usava há três anos,
quando para minha desgraça, a conheci. Encarregai desse inquérito
um agente particular ou um advogado; e em breve sabereis o bastante para vos
convencerdes de que minha narrativa é a pura verdade. A menor averiguação
colocar-vos-á sobre a pista. Lembrai-vos de que o crime só beneficiou
essa pessoa, pois que, de uma mulher desgraçada que era, tornou-se hoje
uma viúva rica. Tendes aí o fio condutor, basta seguí-lo
e ver onde ele vos leva. Notai, senhor, que eu não falo de roubo. Não
reclamo contra o que mereci, que não foi mais do que merecia. Foi somente
o roubo, e paguei-o com meus três anos de cadeia. Reconheço o furto;
mas no que diz respeito ao assassinato que hoje faz de mim um condenado por
toda a vida, - e com outro juiz que não fosse o Sr. Doutor James, talvez
tivesse ido parar na forca - afirmo que estou preso sem culpa, e protesto a
minha inocência.
Volto à noite de 13 de setembro. Dir-vos-ei exatamente o que aconteceu.
Havia passado o verão em Bristol, em busca de trabalho. Pensei que seria
fácil achar algum em Portsmouth, pois sou bom mecânico, e pus-me
a caminho, cortando o sul da Inglaterra, ocupando-me de mil negociosinhos. Esforçáva-me
por sair honestamente dos trabalhos, pois acabava de passar um ano na prisão
de Exter e não me agradava alojar-me em Casa da Rainha. Mas quem tem
o nome manchado faz mal em se empregar; e tudo o que pude fazer foi viver.
Enfim, cerca de dez dias passados a cortar lenha e a quebrar pedras por um salário
chorado, achava-me perto de Salisbury com um "shilling" no bolso e
a paciência esgotada. Há na estrada que vai de Blandford e Salibury,
uma taverna chamada "A boa intenção". Aluguei ali um
leito para passar a noite.
Estava sentado na sala, completamente só, à hora de fechar as
portas, quando o taverneiro, chamado Allen, aproximou-se de mim e pôs-se
a falar de gente da vizinhança. Era um homem que gostava de tagarelar;
tão bem que eu fiquei lá, fumando e despejando um copo de cerveja,
enquanto durava o seu discurso. E não prestei muita atenção
no que ele dizia, até o momento em que, metendo-se o diabo no meio, ele
pôs-se a falar dos tesouros de Mannering Hall.
- Quer falar da grande casa que fica à direita, antes de entrar na vila?
- perguntei. Aquela que tem um parque?
- Exatamente. A casa branca dos pilares, na estrada de Blanaford.
Havia notado essa casa, quando por lá passara e, como, naquele momento,
pensado que facilmente uma pessoa poderia introduzir-se nela. Havia expulsado
essa ideia, mas eis que agora o hospedeiro a fez voltar com a enumeração
das riquezas.
- Ainda moço - disse ele - o seu proprietário já era avarento.
Imagine agora em sua idade! Nada impede que ele tenha tido algum prazer com
seu dinheiro.
- Que prazer pode ter tido, se não o gasta? - perguntei.
- Mas possuindo a mulher mais bonita da Inglaterra. Isto pelo menos é
um prazer. Ela pensava ter o dinheiro à disposição, hoje
conhece a diferença.
- E ela, o que era? - murmurei, para dizer alguma coisa.
- Nada, quando o velho Senhor a fez sua Senhora. Vinha de Londres. Uns pretendiam
que ele a havia retirado do teatro. Ninguém sabia. O velho havia passado
um ano fora. Quando voltou, trazia uma moça. Ela ainda está lá.
Sephens, o mordomo, disse-me uma vez que ela, nos primeiros tempos, alegrava
toda a casa; mas o procedimento mesquinho de seu marido, a solidão em
que a conservava, pois ele detesta as visitas, e a dureza de suas palavras,
pois sua língua é um aguilhão, fizeram com que a vivacidade
a abandonasse, e transformaram-na numa pálida e silenciosa criatura,
que se vê errar pelos atalhos do campo. Alguns pretendem que ela amava
outro homem, mas que os tesouros do velho a tornaram infiel, e que agora se
lhe despedaça o coração por ter perdido, sem proveito,
um pelo outro, pois com a fortuna do marido poderia perfeitamente passar pela
pessoa mais pobre da paróquia.
O taverneiro dizia-me essas coisas e muitas outras semelhantes; mas a esquecia
logo, porque não me interessavam. O que me preocupava era a maneira por
que o Sr. Mannering guardava suas riquezas. Os títulos de propriedade
e de renda são simples papéis, e tirá-los é mais
perigoso que lucrativo. Mas o ouro e as joias valem bem o perigo. E então,
como que respondendo a meus pensamentos, o taverneiro pôs-se a falar da
grande coleção de medalhas de ouro, reunida pelo Sr. Mannering.
Era a mais preciosa do mundo; e a prova disso era que, se se pusessem todas
as medalhas num saco, o homem mais forte não conseguiria carregá-lo.
Então a mulher do taverneiro chamou-o e fomos nos deitar. Isto não
é uma historia cuidadosamente preparada para as necessidades da minha
causa. Mas, eu vos peço, senhor, prestai atenção: interrogai
vossa consciência e dizei se poderia haver tentação mais
cruel?
Aquela noite estava eu naquele leito, sem recursos, sem esperança, sem
trabalho, com o ultimo "shilling" no bolso. Havia experimentado ser
honesto e as pessoas honestas haviam me virado as costas. Chamavam-me ladrão
e impeliam-me ao roubo. Arrebatado por essa corrente, não havia para
mim meio de salvação. E eis que me aparecia essa pechincha: A
grande casa rodeada de janelas, e as medalhas de ouro tão fáceis
de fundir! Era como se alguém tivesse estendido uma côdea de pão
a um faminto, crendo que ele não a comeria! Lutei um momento; mas basta!
Acabei sentando-me na cama, e jurando que naquela noite me tornaria rico e depois
renunciaria ao crime, ou conheceria ainda o peso das algemas. Vesti-me às
pressas, pus um "shilling" sobre a mesa para o taverneiro e pela janela
pulei para o jardim. Um muro alto servia de tapume. Saltei-o com facilidade.
Do outro lado, o campo era livre. Não encontrei ninguém na estrada.
A porta da entrada estava aberta. No pavilhão do porteiro, ninguém
se mexia. O luar estava claro e eu avistava o palácio, muito branco,
sob a abóbada das arvores. Andei cerca de um quarto de milha e cheguei
a um vasto terreno arenoso diante da porta principal. Permaneci ali um instante
acocorado procurando o meio mais fácil para subir. A janela do canto
de um dos lados parecia a menos visível dos andares; ocultava-a uma espessa
cortina de hera: tinha lá as melhores probabilidades de êxito.
Protegido pelas árvores, deslizei por trás da casa. Um cão
ladrou e ouviu-se o ruído de sua corrente. Esperei que sossegasse, depois
continuei a marcha furtiva até à janela escolhida.
É extraordinário que a gente da aldeia não se ponha em
guarda contra os ladrões e que a ideia destes não entre
nunca em sua mente. A ocasião faz o ladrão, quando ao passar por
uma porta sem pensar no mal, este a vê abrir-se diante de si. Não
foi este verdadeiramente o meu caso. Mas um simples gancho fechava a janela;
soltei-o com a ponta do meu canivete, levantei a vidraça, introduzi a
lamina no intervalo das persianas e abri. Eram persianas de dobradiças
e bastou-me empurrá-las para penetrar no quarto.
- Boa noite, senhor! Seja bem-vindo! - disse uma voz.
Sofri muitas emoções em minha vida, mas nenhuma mais violenta
do que aquela. Perto da janela, ao alcance do meu braço, estava uma mulher,
que tinha na mão uma vela. Alta, delgada, tinha um belo rosto pálido,
que parecia ser talhado no mármore, e seus olhos e seus cabelos eram
negros como a noite. Uma espécie de "peignoir" descia-lhe até
aos pés. E com essa roupa e com esse rosto parecia um fantasma imóvel.
Minhas pernas tremiam e tive que apoiar-me a uma janela. Teria girado sobre
os calcanhares e fugido, se tivesse tido forças para isso. Mas mal me
sustinha em pé, e fiquei a contemplá-la. Depressa ela me reanimou.
- Não tenha medo! - disse ela, - e de uma dona de casa a um ladrão
eram estranhas essas palavras.
- Vi-o da janela de meu quarto, quando se ocultava sob as árvores; então
desci e o ouvi à janela. Tê-la-ia aberto se me desse tempo. Mas
o senhor precedeu-me. - Pegou-me na mão e puxou-me para o quarto.
- Que significa isso, senhora? Nada de gracejos! - disse com uma voz rude, e
sei torná-la rude quando quero.
- Não estou disposto a deixá-la zombar de mim, acrescentei, mostrando-lhe
o canivete aberto com que forçara a janela.
- Não penso em zombar de si, respondeu ela. Pelo contrário, sou
sua amiga e desejo auxiliá-lo.
- A senhora se desculpa, o que é difícil de acreditar. Por que
deseja auxiliar-me?
- Tenho minhas razões.
E de repente, seus negros olhos brilharam de cólera, em seu rosto pálido.
Porque o odeio, odeio, odeio! Compreende?
Lembrei-me do que me havia dito o taverneiro, e compreendi. Olhei-a de frente
e conheci que podia confiar nela. Ela queria vingar-se de seu marido. Ela queria
feri-lo no ponto sensível, na bolsa. Ela o odiava a ponto de perder o
orgulho e confiar num individuo como eu, contanto que se vingasse. Detestei
algumas pessoas em minha vida; mas creio que não havia compreendido o
ódio, até ao momento em que vi aquele rosto de mulher, à
luz da vela.
- Agora, confia em mim? - perguntou-me; e outra vez puxou-me levemente pela
manga do paletó.
- Sim, senhora.
- Então conhece-me?
- Suponho quem seja.
- Minhas queixas são o assunto obrigatório da gente desta terra.
Mas que importa isto a esse homem? Ele só ama uma coisa na terra, e essa
coisa está à sua disposição. Tem um saco?
- Não, senhora.
- Feche as persianas. Assim, ninguém verá a luz. Não tema
nada. Os criados dormem do outro lado. Vou mostrar-lhes os objetos preciosos.
O senhor não pode levá-los todos; escolherá os melhores.
Achava-me numa sala comprida e baixa. Tapetes e peles cobriam o soalho polido.
Pequenas vitrines erguiam-se aqui e ali. As paredes eram cobertas de lanças,
espadas, remos e outros objetos semelhantes que se encontram nos museus. Havia
ali também estofos bizarros, trazidos de paises selvagens. A mulher tirou
do meio de tudo isso um grande saco de couro.
- Este servirá. Venha; vou mostrar-lhe onde estão as medalhas.
Pensava sonhar com a ideia dessa mulher pálida que, sendo a dona
da casa, me ajudava a roubar sua própria residência. Ter-me-ia
rido, talvez, se, na palidez do seu rosto, não houvesse uma coisa que
me impressionava e me amedrontava. Ela deslizou diante de mim como um fantasma,
levando o rolo verde de seu pavio de cera, e a segui com meu saco, até
uma porta na extremidade da sala. A chave estava na fechadura. Penetrei no quarto
do lado, atrás da minha guia. Era uma sala vasta, com tapeçarias
pendentes que, bem me recordo, representavam uma caça ao veado. E, à
luz trêmula da vela, jurar-se-ia ver os cães e os cavalos saltarem
ao longo das muralhas. Não havia outros móveis além de
grandes armários de nogueira, ordenados de cobre e munidos, no alto,
de vidraças, sob as quais eu via alinharem-se as medalhas de ouro, algumas
grandes como pratos, de meia polegada de espessura, colocadas todas sobre veludo
escarlate e brilhando na obscuridade. Os dedos abriam-se para apanhá-las
e já me preparava para fazer saltar uma das fechaduras com meu canivete.
Mas a mulher deteve-me o braço.
- Um momento, disse ela. O senhor tem um negócio melhor. Moedas de ouro
não valem mais do que estas medalhas?
- Certamente, disse. É o que há de melhor.
- Bem, replicou ela. Meu marido dorme lá em cima, justamente sobre nossas
cabeças. Uma simples escadinha nos separa dele. Há, sob seu leito,
uma caixa de folha-de-flandres e nessa caixa há bastante dinheiro para
encher esse saco.
- Mas como hei de tirá-lo, sem que o homem acorde?
- Que lhe importa que ele acorde? E acrescentou, olhando-me fixamente: - O senhor
pode impedi-lo de gritar.
- Não, senhora, isso não.
- Como for do seu agrado, concluiu ela. Julgava-o um homem corajoso; vejo que
me enganei! Desde que um velho o intimida, é lógico que não
pode tirar o dinheiro de sob seu leito. O senhor é o único juiz
de seus atos. Mas esperava mais de si. E creio que deveria escolher outro oficio.
- Não quero ter um assassinato na consciência.
- Pode tirá-lo sem fazer-lhe mal algum. Quem lhe fala de assassinato?
O dinheiro está sob sua cama. Fiquei aí se lhe falece o ânimo.
Assim ela me excitava pelo sarcasmo; tentava-me com esse dinheiro que fazia
luzir ante meus olhos. E, sem duvida, teria acabado por ceder, e ter-me-ia arriscado,
se, percebendo com que olhos maliciosos e pérfidos ela me via lutar,
não tivesse compreendido que ela queria fazer de mim um instrumento de
sua vingança, e que me deixava na alternativa de matar o velho ou deixar-me
prender. Achou que ia muito longe, pois de repente transfigurou-se e sorriu-me.
Era tarde: sabia o que devia pensar.
- Não irei lá em cima, declarei. Tenho aqui o que desejo.
Ela olhou-me desdenhosamente, como nunca se olhou para um homem.
- Seja! Roube essas medalhas. Preferia que começasse por este lado. Suponho
que uma vez fundidas terão todas o mesmo valor; estas aqui são
as mais raras e por consequência têm para ele maior preço.
É inútil forçar as fechaduras; basta apertar este botão
de cobre; há uma mola secreta. Aqui! Em primeiro lugar este grande. Ele
guarda-o como a menina-dos-olhos. - Ela havia aberto um dos móveis, e
todas aquelas preciosidades se me ofereciam. Ia apanhar as medalhas que ela
me indicava, quando a vi mudar de cara e levantar o dedo como para me advertir.
- Silencio! - murmurou. - Que será isso?
Ao longe, no silêncio da casa, ouvimos um rumor surdo e fraco, um rumor
de passos. Ela fechou imediatamente o móvel.
- Meu marido! - murmurou. - Mas não se inquiete, arranjarei tudo.
Escondeu-me com o saco atrás da tapeçaria e, iluminando com a
vela, voltou rapidamente para o quarto de onde havíamos saído.
Apesar de escondido, continuava a vê-la pela porta entreaberta.
- És tu, Roberto? - perguntou ela.
A luz de uma vela iluminou a soleira da porta do museu; os passos aproximaram-se;
e vi aparecer um rosto, um rosto grande e severo, magro, e enrugado, com um
enorme nariz adunco e lunetas de ouro. A cabeça inclinava-se para trás,
por causa das lunetas, e o nariz era saliente como o bico de um pássaro.
Os cabelos anelavam-se em torno de sua cabeça. Não tinha barba.
Sua delicada boca, pequena e afetada, dissimulava-se profundamente sob o nariz
imperioso. Ele estava lá, com a vela à sua frente, e olhava sua
mulher com um ar estranhamente hostil. Vendo-o, adivinhei que era igual a afeição
que tinham um pelo outro.
- Oh! - perguntou - então que é isso? Ainda um acesso de gênio?
Que tens para rodar assim pela casa? Por que não te vais deitar?
- Não tenho sono.
Ela falava pronunciando as palavras com languidez. Se aquela mulher algum dia
tivesse sido atriz não esquecia sua profissão.
- Hás de permitir que eu creia - disse ele com uma voz rude - que uma
consciência tranquila é uma boa auxiliar de sono?
- Enganas-te - replicou a mulher- pois dormes admiravelmente.
- Em minha vida - trovejou ele, e com os cabelos eriçados pela cólera
parecia um velho papagaio de topete, - só há uma coisa de que
me envergonho. Sabes qual? Foi um erro da minha parte que trouxe a punição
consigo.
- Tanto para mim como para ti, lembra-te disso!
- Não tens de que te queixar. Eu desci e tu subiste.
- Subi?
- Sim, subiste. Não negarás que se sobe quando se passa do "music-hall"
para o Mannering-Hall!! Fui um imbecil arrancando-te do teu meio!
- Se pensas assim, por que me prendes?
- Porque um tormento oculto vale mais do que uma vergonha pública. Porque
é mais fácil sofrer as consequências de uma loucura
do que reconhecê-la. E também porque quero continuar a conservar-te
sob meus olhos e a saber que não podes voltar para a companhia do outro.
- Miserável! Miserável covarde!
- Sim, sim, conheço tua ambição secreta. Mas não
a realizarás enquanto eu viver. E se voltares para a companhia daquele
homem, depois da minha morte, saberei fazer com que voltes ao estado de mendiga.
Tu e teu caro Eduardo jamais terão a satisfação de esbanjar
minhas economias. Decide-te. Como me explicas estarem abertas esta janela e
estas persianas?
- A noite estava muito quente.
- Cometeste uma imprudência. Sabes que pode haver vagabundos lá
fora e que minha coleção de medalhas é incomparável?
Tinha igualmente deixado aberta a porta. É este o meio de impedir que
roubem minhas vitrines?
- Eu estava lá.
- Sem duvida. Ouvi mexeres no quarto das medalhas e foi por isso que desci.
Que estavas fazendo?
- Que poderia fazer? Admirava as medalhas.
Curiosidade nova da tua parte.
Olhou-a desconfiado e dirigiu-se para a outra sala. Ela seguiu-o. Constatei
então uma coisa que me fez estremecer. Havia deixado meu canivete aberto
sobre uma das vitrines. Ele estava ali completamente à vista. A mulher
viu-o primeiro. Com uma astúcia bem feminina, colocou sua vela de maneira
a interpor a luz entre os olhos do Sr. Mannering e o canivete; depois tomou-o
na mão esquerda e ocultou-o na roupa. Entretanto o velho examinava, canto
por canto, toda a vitrine; houve um momento em que se aproximou de mim até
ao alcance da mão. Nada indicando que se tivesse mexido nas medalhas,
ele examinou, murmurando e praguejando, a primeira peça. Apenas passada
a revista na primeira colocou a sua vela num canto de uma das mesas e sentou-se
fora do alcance de minha vista. Ela ia e vinha atrás dele, segundo indicava
a sombra projetada sobre o soalho pela luz da vela. Então ele pôs-se
a falar do homem a quem chamava Eduardo, e cada palavra que proferia caia como
uma gota de vitríolo. Falava baixo, de sorte que nem tudo eu podia ouvir;
mas, pelo que ouvia, acreditei que ele não a teria martirizado mais,
açoitando-a com um chicote. A princípio ela murmurou algumas palavras;
depois emudeceu, enquanto ele, com sua voz glacial e irônica, continuava
insultando, remexendo o passado, torturando, a tal ponto, que me admirava que
ela sofresse em silêncio. E, de repente, ouvi o velho gritar: "Sai
de trás de mim! Deixa-me! O quê! Ousarias ferir-me!" Ouvi
então um ruído característico, uma espécie de choque
mole. O velho gritou: "Meu Deus! Sangue!" E arrastou os pés,
como se levantasse. Ouvi um segundo golpe. O velho gritou ainda: "Desgraçada!"
Depois, só veio interromper o silêncio da casa o ruído de
um líquido caindo no chão. Saí então do meu esconderijo
e, trêmulo de terror, corri para o primeiro quarto. O velho tinha escorregado
da cadeira e seu robe, repuxado, fazia-lhe uma corcova monstruosa nas costas.
A cabeça, ainda com as lunetas em seu lugar, inclinava-se para o lado,
e a boca pequenina estava aberta como a de um peixe morto. Não via de
onde vinha o sangue, mas ouvia-o cair no chão. Ela, de pé, atrás
dele, recebia em cheio a luz da vela. Seus lábios fechavam-se, seus olhos
brilhavam, um leve rubor subira-lhe ao rosto; não me lembro de ter visto
nunca mulher mais bela.
- A senhora fez isso?
- Fiz - respondeu tranquilamente.
- E agora, o que vai fazer? Vão prende-la por crime de morte.
- Não se inquiete por minha causa. Nada me prende à vida; isso
não tem importância. Ajude-me a endireitá-lo na cadeira.
É horrível vê-lo assim.
Obedeci, não obstante gelar-me o tocar num cadaver. Um pouco de sangue
caiu-me na mão.
- Agora pode tirar as medalhas - disse ela. Tanto faz o senhor, como um outro.
Tire-as e vá-se embora.
- Não as quero mais. Quero partir, nunca estive metido em negócio
semelhante.
- Que loucura! - disse ela. O senhor veio por causa das medalhas, elas estão
à sua disposição. Por que não levá-las? Ninguém
lho impede.
Conservava ainda o saco comigo. Ela abriu o móvel e despejamos uma centena
de medalhas no saco. Mas não tive forças para ficar por mais tempo.
Aproximei-me da janela, pois o ar da casa parecia envenenado pelo que acabava
de testemunhar. Voltando-me, a vi ainda de pé, alta e graciosa, com a
vela na mão, tal como me havia aparecido. Fez-me um gesto de despedida,
ao qual correspondi, e internei-me rapidamente no parque. Graças a Deus,
tenho o direito de jurar, com a mão sobre o coração, que
não cometi o crime. Talvez fosse diferente, se tivesse podido ler no
espírito daquela mulher; e sem duvida ficariam dois cadáveres
em vez de um, naquele quarto, se tivesse podido presumir o que ocultava aquele
ultimo sorriso. Preocupado unicamente com a minha segurança, não
refleti nem um minuto sequer na maneira pela qual ela me havia armado o laço.
Mas, havia dado apenas cinco passos no jardim, caminhando na sombra das arvores,
da mesma maneira como tinha chegado, quando ouvi um grito, um grito capaz de
despertar toda a paróquia, depois outro e mais outro.
- Assassino! Assassino! Assassino! Socorro!
E esses gritos de mulher no silêncio da noite, repercutiram pelos campos.
Perturbaram-me o espírito. Num instante, luzes começaram a agitar-se,
janelas a abrir-se, não só atrás, no palácio, mas
no pavilhão do guarda e nas cavalariças, na frente. Como uma lebre
espantada, corri pela alameda, mas ouvi fecharem o portão, antes que
pudesse alcançá-lo. Então, escondi o saco num montão
de lenha e procurei salvar-me através do parque. Alguém me viu
à luz da lanterna e fui imediatamente perseguido por uma dúzia
de pessoas, auxiliadas por cachorros. Acocorei-me entre os arbustos, mas os
cães eram muito numerosos, e só respirei quando chegaram os homens
para impedir que me estraçalhassem. Agarraram-me e levaram-me para o
palácio de onde eu saíra.
- Foi este homem, senhora? - perguntou o mais velho do grupo, que mais tarde
soube ser o mordomo.
Inclinada sobre o corpo, ela ocultava os olhos com um lenço. Bruscamente,
lançou-me um olhar de fúria. Ah! aquela mulher é uma perfeita
comediante!
- Sim, sim, foi esse mesmo - gritou ela. Ah! Canalha! Canalha! Fazer isso com
um velho! - Estava lá um individuo que parecia um oficial de justiça
da aldeia. Pôs-me a mão no ombro e perguntou-me:
- Que responde a isto?
- Que foi ela quem o assassinou - disse, designando a mulher, que nem pestanejou
diante de mim.
- Vamos, vamos! Não me engana! - disse ele - E um dos criados deu-me
um murro. - Digo que vi, protestei. Vi-a dar duas facadas nesse homem. Ela matou-o,
depois de me ter ajudado a roubá-lo.
O criado quis bater-me ainda; ela, porém, estendeu a mão.
- Nada de violências, disse; a justiça castigá-lo-á.
- Queira Vossa Senhoria dizer-me, Vossa Senhoria presenciou o crime?
- Com meus próprios olhos. Foi horrível. Ouvimos barulho e descemos.
Meu marido vinha na frente. O homem havia aberto uma das vitrines e enchia o
saco de couro preto que tinha na mão. Saltou diante de nós para
fugir. Meu marido deteve-o. Na luta o Sr. Mannering recebeu duas facadas. Se
não me engano a arma ainda está na ferida. E veja o sangue nas
mãos do assassino!
- Vejo-o nas mãos dela - respondi.
- Ela pegou na cabeça de Sua Senhoria, patife desavergonhado! - disse
o mordomo.
Nesse momento entrou um criado trazendo o saco que eu escondera na minha fuga.
- Eis - disse o oficial - o saco e as medalhas de que falou Vossa Senhoria.
Isto basta. Esta noite conservaremos aqui o homem e amanhã o inspetor
e eu o levaremos para Salisbury.
- Pobre diabo! - disse a mulher. - Por minha parte, perdoo-lhe o mal que
me fez. Quem sabe que tentação o terá impelido ao crime?
Sua consciência e a lei irão assegurar-lhe uma punição
que não quero tornar mais cruel com minhas censuras.
Não achava resposta. Não, senhor, não achava resposta,
a tal ponto me assombrava essa mulher com sua segurança; e, num silêncio
que parecia dar-lhe razão, deixei-me arrastar pelo oficial e pelo mordomo
para o celeiro, onde me fecharam por aquela noite. Já vos contei toda
a série de acontecimentos que terminaram pelo assassinato do Sr. Mannering
por sua mulher, na noite de 14 de setembro de 1894. Talvez, como o oficial de
justiça de Mannering-Towers e o juiz, não leveis em conta minhas
alegações. Talvez reconheçais nelas o acento da verdade;
e, escutando-me, sereis talvez um homem que não se embaraça com
considerações pessoais, quando se trata de justiça. Só
espero em vós, senhor. Se me relevardes dessa falsa acusação,
abençoar-vos-eis como nunca homem algum abençoou a outro. Mas,
se pelo contrário me abandonardes, dou-vos minha palavra que daqui a
algumas semanas estarei enforcado nas barras do meu cubículo e, daí
em diante, por pouco que isto tenha sido permitido a alguém, aparecerei
em todos os vossos sonhos. O que peço é muito simples. Informai-vos
sobre essa mulher, vigiai-a, revolvei seu passado, verificai o emprego do dinheiro
de que se tornou dona, verificai a existência desse Eduardo, que creio
estar ligado à sua vida. E se, por acaso, souberdes de alguma coisa que
vos mostre a verdadeira natureza da pessoa, ou que vos pareça corroborar
a história que vos contei, sei que posso contar com o vosso coração
para alcançar piedade para um inocente.
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