Não foi coisa fácil trazer o "Gamecock" até a
ilha, porque o rio arrastara tanta lama que os bancos se estendiam muitas milhas
pelo Atlântico a dentro. A costa ainda mal se via quando a primeira linha
branca de arrebentação nos preveniu do perigo, e desse ponto em
diante avançamos com muito cuidado com a vela grande e a bujarrona, conservando
a arrebentação da água bem para a esquerda, como estava
indicado na carta. Mais de uma vez a quilha tocou na areia (estávamos
calando um pouco mais de seis pés, naquela ocasião) mas tivemos
sempre jeito e porte para passar. Finalmente, a água encheu-se rapidamente
de bancos, mas tinham mandado uma canoa da feitoria e o piloto Krooboy levou-nos
até uma distância de duzentas jardas da ilha. Aí lançamos
ferro, porque os gestos do negro indicavam que não podíamos esperar
avançar mais. O azul do mar mudara para o castanho do rio e mesmo ao
abrigo da ilha a corrente cantava e remoinhava em volta da nossa proa. A maré
parecia estar cheia porque passava acima das raízes das palmeiras e,
por todos os lados, sobre sua superfície barrenta e oleosa podíamos
ver pedaços de madeira e destroços de toda espécie que
tinham sido arrastados pela enxurrada.
Quando me certifiquei de que estávamos firmes em nossa ancoragem, pensei
que era melhor começar a tomar água imediatamente, porque o lugar
parecia inquinado de febres. O rio denso, os bancos lamacentos e lodosos, o
verde brilhante e venenoso da mata, o vapor úmido no ar, eram outros
tantos sinais para quem soubesse lê-os. Mandei portanto arriar o escaler
com dois grandes odres, que seriam suficientes para durar até chegarmos
a São Paulo de Loanda. Quanto a mim, tomei o bote pequeno e remei para
a ilha, porque podia ver a bandeira inglesa flutuando acima das palmeiras para
marcar a posição do entreposto comercial de Armitage & Wilson.
Depois de passar para além do pequeno bosque pude ver o lugar, uma construção
baixa, comprida, caiada, com profunda varanda na frente e imensas pilhas de
barris de óleo de palma de ambos os lados. Uma fila de caíques
e canoas estava amarrada ao longo da praia e um simples pontão se projetava
pelo rio. Dois homens de roupa branca, com faixas vermelhas em volta da cintura,
estavam esperando na extremidade para me receber. Um era um camarada grande
e corpulento, de barba grisalha. O outro era magro e alto, de rosto pálido,
enrugado, meio escondido sob um grande chapéu em feitio de cogumelo.
- Muito prazer em vê-lo - disse este último, cordialmente. - Sou
Walker, agente de Armitage & Wilson. Permita-me apresentar-lhe o Doutor
Severall, da mesma companhia. Não é muitas vezes que vemos um
iate particular nestas paragens.
- É o Gamecock - expliquei - Sou o proprietário e comandante.
Meldrum é o meu nome.
- Explorador? - perguntou ele.
- Sou um entomologista - um caçador de borboletas. Estive fazendo a costa
oeste, do Senegal para baixo.
- Bom esporte? - perguntou o doutor, voltando para mim um olhar lento, amarelado.
- Tenho quarenta caixas cheias. Viemos aqui para tomar água e também
para ver o que tem na minha especialidade.
Estas apresentações e explicações tomaram o tempo
durante o qual os meus dois Krooboys amarraram o caíque. Então
caminhei pelo pontão com um dos meus novos conhecidos de cada lado, ambos
crivando-me de perguntas porque não viam um homem branco havia meses.
- O que fazemos? - disse o doutor quando comecei a fazer perguntas por minha
vez. - Nosso negocio dá-nos bastante que fazer, e nas horas vagas discutimos
política.
- Sim, por especial mercê da Providencia, Severall é um radical
ferrenho e eu sou um unionista inflexível, e discutimos o "Home
Rule" durante duas boas horas todas as tardes.
- E bebemos coquetéis de quinino - disse o doutor. - Agora já
estamos ambos bem "salgados", mas nossa temperatura normal era de
40 graus no ano passado! Como conselheiro imparcial, não lhe recomendaria
ficar aqui por muito tempo, a menos que queira colecionar bacilos, além
de borboletas. A embocadura do rio Ogowai nunca será um clima saudável.
Não há nada mais interessante do que a maneira pela qual aqueles
marcos avançados da civilização conseguem destilar bom
humor da situação desolada em que se encontram, e mostram cara
não só calma como alegre às contingências que a vida
possa trazer. Por toda a parte desde a Serra Leoa para baixo, encontrei os mesmos
pântanos pestilentos, as mesmas comunidades isoladas, torturadas pelas
febres, e os mesmos maus gracejos. Há qualquer coisa, que toca as raias
do divino naquela forca do homem de erguer-se acima das circunstancias e usar
a inteligência para zombar das misérias do corpo.
- O jantar estará pronto dentro de uma meia hora, capitão Meldrum
- disse o doutor. - Walker foi providenciar a esse respeito; é o encarregado
da casa, esta semana. Entretanto, se quiser, poderemos dar uma volta por ai,
e eu lhe mostrarei as vistas da ilha.
O sol já descera abaixo da linha de palmeiras, e a grande abóbada
do céu sobre as nossas cabeças era como o interior de uma calote
imensa, irisada de cor-de-rosa claro e delicadas nuanças. Ninguém
que não tenha vivido numa terra onde o peso e o calor de um guardanapo
se tornam intoleráveis sobre os joelhos, pode imaginar o abençoado
alívio que o frescor das tardes traz consigo. Naquele ar mais leve e
mais puro o doutor e eu caminhamos em volta da pequena ilha, ele apontando os
armazéns e explicando a rotina do serviço.
- O lugar é um tanto romântico - disse ele, em resposta a alguma
das minhas observações sobre a monotonia daquela vida. - Estamos
vivendo aqui bem no limiar do grande desconhecido. Ali - continuou apontando
para o nordeste - penetrou Du Chaillu e encontrou a terra dos gorilas. É
o país de Gabão - a terra dos grandes símios. Naquela direção
- apontando para o sudeste - ninguém avançou muito. A região
irrigada por este rio é praticamente desconhecida aos europeus. Cada
tronco de árvore que passa por aqui arrastado pela corrente vem de território
inexplorado. Desejei muitas vezes ser melhor botânico quando vi singulares
orquídeas e plantas de aspecto curioso que encalharam na extremidade
oriental da ilha.
O lugar que o doutor indicava era uma praia em declive, literalmente coberta
pelos destroços arrastados pela corrente. Em cada extremidade havia uma
ponta curva, formando uma espécie de quebra-mar natural, de modo que
havia uma pequena baía entre as duas. Esta estava cheia de vegetação
flutuante, com um único grande tronco de árvore atravessado no
meio, e de encontro ao qual a correnteza vinha quebrar-se.
- Isto é tudo lá de cima - disse o doutor. - Ficam presas em nossa
baía até que alguma nova enxurrada desce e são novamente
arrastadas para o mar.
- Que árvore é aquela?
- Oh, uma variedade de teca, imagino, mas bastante apodrecida, ao que parece.
Chega-nos toda espécie de grandes árvores de madeira de lei flutuando
até aqui, para não falar das palmeiras. Venha cá, por favor.
Conduziu-me até um comprido edifício, com enorme quantidade de
aduelas de barris e aros de ferro espalhados lá dentro.
- Isto é a nossa tanoaria - disse - Mandam-nos as aduelas em amarrados,
e nós montamos os barris aqui. Agora, não acha nada de particularmente
sinistro neste edifício, pois não?
Olhei em volta, para o alto do telhado de zinco corrugado, para as paredes de
madeiras caiadas e para o chão de terra batida. A um canto havia um colchão
e um cobertor.
- Não vejo nada de muito alarmante - disse eu.
- E no entanto há qualquer coisa fora do comum, também - observou
ele - Vê aquela cama? Bem, tenciono dormir nela esta noite. Não
quero gabar-me, mas acho que é uma boa experiência para os nervos.
- Por que?
- Oh, tem acontecido umas coisas engraçadas. Estive falando a respeito
da monotonia da nossa vida, mas asseguro que ela é às vezes tão
excitante quanto poderíamos desejá-lo. Seria melhor voltarmos
para a casa, agora, porque depois do crepúsculo começa a vir-nos
o nevoeiro da febre lá dos pântanos. Ali, pode vê-lo vir
através do rio.
Olhei e vi longos tentáculos de vapor branco subindo em espirais de entre
o denso matagal verde e arrastando-se em nossa direção por sobre
a larga superfície crespa do rio barrento. Ao mesmo tempo o ar se tornou
de súbito úmido e frio.
- Lá está o gongo do jantar - disse o doutor. Se este assunto
lhe interessa, falar-lhe-ei sobre ele depois.
Interessava-me muito, porque havia qualquer coisa de sério e contrafeito
nas suas maneiras enquanto ele estava parado na tanoaria deserta, que me excitava
fortemente a imaginação. Era um homem grande, resoluto, aquele
doutor, e no entanto vislumbrei-lhe um curioso brilho nos olhos quando os passeava
em sua volta - uma expressão que eu não descreveria como sendo
de medo, mas antes como a de um homem que está alerta e em guarda.
- Incidentalmente - disse eu quanto voltávamos para a casa - mostrou-me
as cabanas de grande parte de seus auxiliares nativos, mas não vi qualquer
um deles.
- Dormem no batelão, acolá - respondeu o doutor, apontando para
um dos bancos.
- De fato. Mas esse caso não me parece que precisem das cabanas.
- Oh, usavam as cabanas até bem recentemente. Pusemo-nos no batelão
até que recuperem um pouco a confiança. Estavam todos meio loucos
de medo, e por isso os deixamos ir. Ninguém dorme na ilha, exceto Walker
e eu.
- O que foi que os assustou?
- Bem, isso nos traz de novo à mesma história. Suponho que Walker
não fará objeção a que ouça tudo a esse respeito.
Não sei por que haveríamos de fazer segredo disso, se bem que
seja na realidade um assunto bem desagradável.
Não fizemos qualquer outra alusão ao caso durante o excelente
jantar que fora preparado em minha honra. Parecia que, mal a vela branca do
"Gamecock" surgira na extremidade do cabo Lopez, aqueles hospitaleiros
camaradas tinham começado a preparar a famosa "panela-de-pimenta"
- que é o ardente cozido peculiar à costa oeste - a cozinhar os
inhames e as batatas doces. Servimo-nos de um jantar nativo tão bom quanto
se poderia desejar, servido por um elegante criadinho da Serra Leoa. Estava
já observando comigo mesmo que ele pelo menos não tomara parte
na conversa geral quando, tendo colocado a sobremesa e o vinho em cima da mesa,
ele levou a mão ao turbante.
- mais alguma coisa para eu fazer, Massa Walker? - perguntou.
- Não, acho que é tudo, Moussa - respondeu o meu anfitrião.
- No entanto, não estou me sentindo bem esta noite, e preferiria muito
que ficasses na ilha.
Vi a luta entre o medo e o dever no rosto do negro africano. Sua pele tomara
aquele tom lívido-arroxeado que toma o lugar da palidez nos pretos, e
seus olhos giraram furtivamente pela sala.
- Não, não, Massa Walker - exclamou por fim - é melhor
que venha para o batelão comigo, patrão. Poderei tomar conta do
senhor muito melhor no batelão.
- Isso não serve, Moussa. Os homens brancos não fogem dos postos
onde são colocados.
De novo vi a luta desesperada no rosto do negro, e de novo seus receios prevaleceram.
- Não adianta, Massa Walker! - exclamou. - Nem que me batessem, não
poderia faze-lo. Se fosse ontem, ou se fosse amanha..., mas esta é a
terceira noite, patrão, e é mais do que eu posso suportar.
Walker encolheu os ombros.
- Dá o fora, então - disse. - Quando o navio do correio vier podes
voltar para a Serra Leoa, porque não preciso de um criado que me abandona
quando mais preciso dele. Suponho que isto tudo é um mistério
para o senhor, ou o doutor já lhe contou, capitão Meldrum?
- Mostrei ao capitão Meldrum a tanoaria, mas não lhe contei coisa
alguma - disse o doutor Severall. - Está com mau aspecto, Walker - acrescentou,
olhando para o companheiro. Vai ter um forte acesso.
- Sim, tive calafrios o dia inteiro e agora a minha cabeça está
oca como um tambor. Tomei dez grãos de quinino, e meus ouvidos estão
zumbindo como uma chaleira. Mas quero dormir com você na tanoaria esta
noite.
- Não, não meu caro amigo. Não me fale em semelhante coisa.
Deve meter-se na cama já, e tenho a certeza de que Meldrum o desculpará.
Vou dormir na tanoaria eu, e prometo-lhe que estarei aqui com o seu remédio
antes do café.
Era evidente que Walker fora atacado por um desses súbitos e violentos
acessos de febre intermitente que são a praga da costa Oeste. Suas faces
macilentas estavam vermelhas, os olhos brilhavam com a febre e, de súbito,
ali mesmo sentado como estava, começou a bradar uma canção
com a voz esganiçada do delírio.
- Vamos, vamos, temos de levá-lo para a cama, amigo velho - disse o Doutor;
e com o meu auxílio conduziu o amigo para o quarto de dormir. Ali o despimos
e, em seguida, depois de tomar forte sedativo, caiu em profundo torpor.
- Está bem para passar a noite - disse o doutor, quando nos sentamos
e tornamos a encher os copos mais uma vez. - Ora é a minha vez, ora a
dele, mas felizmente jamais caímos os dois ao mesmo tempo. Teria pena
de ficar inutilizado esta noite, porque tenho um pequeno mistério a desvendar.
Disse-lhe que tencionava dormir na tanoaria.
- Disse, sim.
- Quando disse dormir queria dizer montar guarda, porque não poderei
dormir. Tivemos um tal alarme aqui que nenhum nativo seria capaz de ficar depois
do por-do-sol, e tenciono descobrir esta noite qual pode ser a causa disso tudo.
Foi sempre nosso costume ter um vigia noturno dormindo na tanoaria para evitar
que os aros sejam roubados. Bem, há seis dias o camarada que dormia lá
desapareceu, e não pudemos encontrar a menor pista dele. Era, por certo,
singular, porque nenhuma canoa fora roubada e estas águas estão
tão cheias de crocodilos que não seria possível um homem
atravessá-las a nado. O que aconteceu ao camarada ou como poderia ele
ter abandonado a ilha, é um mistério. Walker e eu ficamos surpresos,
mas os pretos ficaram assombrados e estranhas histórias de vudu começaram
a circular entre eles. Porém o verdadeiro pânico começou
quando, há três noites, o novo vigia da tanoaria desapareceu também.
- Que foi feito dele? - perguntei.
- Bem, não só não sabemos como nem sequer podemos ter uma
ideia que convenha aos fatos. Os negros juram que há um demônio
na tanoaria que exige um homem de três em três dias. Não
querem ficar na ilha - nada poderia persuadi-los. Até mesmo Moussa, que
é um rapaz de bastante confiança, preferiu abandonar, como viu,
o patrão com forte acesso de febre a ficar aqui durante a noite. Se quisermos
continuar o negócio neste lugar, teremos de tranquilizar os nossos
negros, e não conheço outra maneira melhor de faze-lo do que ficando
eu próprio uma noite lá. Hoje é a terceira noite, sabe,
de maneira que espero que a coisa venha, seja lá o que for.
- Não tem qualquer indício? - perguntei - . Não havia qualquer
sinal de violência, qualquer mancha de sangue, pegadas, nada que lhe possa
dar uma ideia da espécie de perigo que terá que enfrentar?
- Absolutamente nada. O homem desapareceu, e é tudo. Da última
vez foi o velho Ali, que tinha sido guarda do cais desde que aqui estamos. Estivera
sempre firme como uma rocha e nada senão uma desgraça poderia
faze-lo abandonar o serviço.
- Bem - disse eu - realmente não acho que isso seja serviço para
um homem só. Seu amigo está cheio de láudano, e haja o
que houver, não poderá prestar-lhe o menor auxilio. Vai permitir-me
passar a noite com o senhor na tanoaria.
- Bom, isso é na realidade muita bondade sua, sr. Meldrum - disse ele
cordialmente. - Não é coisa que eu me tivesse atrevido a propor,
pois seria exigir muito de um mero visitante casual, mas se de fato quer...
- Por certo que quero. Se me der licença um momento, chamarei à
fala o "Gamecock" e avisá-lo-ei de que não precisam
me esperar.
Quando voltávamos da outra extremidade do pontão, ficamos espantados
com o aspecto da noite. Enorme montanha de nuvens cor de chumbo elevara-se do
lado da terra, e vento vinha daquela direção em pequenas baforadas
quentes que batiam nos nossos rostos como as baforadas de uma fornalha aberta.
Sob o pontão o rio fazia redemoinhos e escachoava, atirando pequenos
salpicos de espuma branca por cima das pranchas.
- Com os diabos! - disse o doutor Severall. - Estamos arriscados a ter uma cheia,
por cima de todos os nossos embaraço. Essa subida de nível do
rio significa chuvas pesadas no interior, e quando começa ninguém
sabe até onde irá. Já tivemos a ilha quase coberta, antes.
bem, vamos ver se Walker está passando bem e depois, se quiser, iremos
para a nossa vigília.
O doente estava mergulhado em profundo torpor e deixamos algumas limas espremidas
em um copo ao lado dele, para o caso que acordasse com a sede da febre. Depois
nos encaminhamos através da escuridão insólita lançada
pelas nuvens ameaçadoras. O rio subira tanto que a pequena baía
que descrevi, e que ficava na extremidade da ilha, estava quase obliterada pela
submersão da península lateral. A grande balsa de detritos de
madeira com a enorme árvore escura no meio estava derivando para cima
e para baixo na corrente engrossada.
- Isso é ma boa coisa que a cheia fará por nós - disse
o doutor. - Arrasta todo este lixo vegetal que é trazido para a extremidade
leste da ilha. Veio com a correnteza no outro dia e aqui ficará até
que uma cheia o arraste para o meio do rio. Bem, aqui está o nosso quarto
e aqui estão alguns livros, e a minha bolsa de tabaco e vamos tentar
passar a noite da melhor maneira possível.
À luz de nossa única lanterna, o grande salão solitário
parecia muito vazio e triste. Salvo as pilhas de aduelas e montes de aros, não
havia absolutamente nada nele, exceto o colchão preparado a um canto
para o doutor. Fizemos dois assentos e uma mesa com as aduelas e iniciamos,
juntos, uma longa vigília. Severall trouxera um revólver para
mim e estava ele próprio armado com uma espingarda de caça de
dois canos. Carregou as armas e deixou-as ao alcance da mão. O pequeno
círculo de luz e as sombras negras que nos envolviam eram tão
melancólicas que ele foi até a casa e trouxe duas velas. Um dos
lados da tanoaria era, porém, rasgado por várias janelas, e foi
somente protegendo as nossas luzes com o auxilio de aduelas que conseguimos
mantê-las acesas.
O doutor, que parecia ser um homem com nervos de ferro, dedicara-se à
leitura de um livro, mas eu observei que de vez em quando o pousava sobre os
joelhos e passeava um olhar atento à sua volta. Pelo meu lado, embora
tentasse uma ou duas vezes ler, achei impossível concentrar os pensamentos
no livro. Voltavam sempre a vaguear por aquele grande salão vazio e silencioso
e a prender-se naquele sinistro mistério que o envolvia. Torturei o cérebro
procurando qualquer teoria possível que pudesse explicar o desaparecimento
daqueles dois homens. Havia o fato positivo que se tinham sumido e nem o menor
ponto de referência de como nem para onde. E ali estávamos nós,
esperando no mesmo lugar - esperando sem a menor ideia sobre aquilo que
esperávamos. Tivera razão em dizer que não era empresa
para um só homem. Já era bastante excitante naquelas condições,
porém fora alguma no mundo me teria feito ficar ali sem um companheiro.
Que noite infindável e tediosa aquela! Lá fora ouvíamos
o murmúrio e rumorejo do grande rio e o soluçar do vento em ascensão.
Lá dentro, salvo a nossa respiração, o virar das páginas
pelo doutor e o zumbido agudo e fino de algum ocasional mosquito, havia um silêncio
pesado. Em certo momento senti o coração subir-me à boca
ao mesmo tempo que o livro de Severall caía ao chão e ele se punha
em pé de um pulo com os olhos fitos em uma das janelas.
- Viu alguma coisa, Meldrum?
- Não. E você?
- Bem, tive a vaga sensação de movimento do lado de fora daquela
janela - Pegou na espingarda e aproximou-se dela. - Não, não se
vê nada, e contudo eu seria capaz de jurar que alguma coisa passou lentamente
por junto dela.
- Uma folha de palmeira, talvez - disse eu, porque o vento se estava tornando
mais forte a cada momento.
- Muito provavelmente - concordou ele, e voltou de novo ao seu livro, mas seus
olhos desde então lançavam de vez em quando rápidas olhadelas
desconfiadas para a janela. Pus-me a observá-la também, mas lá
fora estava tudo quieto.
E então, de súbito, nossos pensamentos foram desviados em outra
direção, pelo desabar da tempestade. Um relâmpago encandeador
foi seguido por um trovão que abalou o prédio. Mais uma vez e
mais outra vinha o vívido clarão e o estrondo de uma peça
de artilharia. E então desabou a chuva tropical, retinindo e roncando
no telheiro de zinco corrugado da tanoaria. O vasto espaço oco ressoava
como um grande tambor. Da escuridão ergueu-se estranha mistura de ruídos,
um gorgolejar, respingar, pingar, borbulhar, escoar, gotejar - todos os sons
líquidos que a natureza pode produzir, desde o desabar e cantar da chuva
até ao surdo escachoeirar do rio. Hora após hora o tumulto se
tornou mais forte e mais contínuo.
- Palavra, - disse Severall - vamos ter a mãe de todas as cheias, desta
vez. Bem, aí vem a aurora, afinal, e isso é uma bênção.
Estamos quase acabando de extirpar a superstição da terceira noite,
de qualquer maneira.
Uma luz cinzenta ia invadindo a tanoaria e o dia raiou pouco depois. A chuva
estiara, mas o rio cor de café rugia como uma catarata. Sua força
me fez recear pela ancoragem do "Gamecock".
- Tenho de ir a bordo - disse eu. - Se ele desgarrar, nunca mais será
capaz de subir o rio outra vez.
- A ilha é um ótimo quebra-mar - respondeu o doutor - Posso dar-lhe
uma xícara de café se vier até a casa.
Sentia-me enregelado e deprimido, e a sugestão foi bem acolhida. Deixamos
a agourenta tanoaria com seu mistério ainda por desvendar e patinhamos
pela lama até a casa.
- Temos ali o fogareiro de álcool. Se quiser acendê-lo, irei ver
como Walker se sente esta manhã - disse Severall.
Deixou-me, mas voltou logo em seguida com uma cara assombrada.
- Foi-se! - exclamou, com voz rouca.
Aquelas palavras deram-me um calafrio de terror. Fiquei parado com a lâmpada
na mão, olhando para ele.
- Sim, foi-se! - repetiu - . Venha ver.
Segui-o sem uma palavra e a primeira coisa que vi quando entrei no quarto foi
o próprio Walker deitado na cama, com o pijama de flanela cinza que eu
ajuda a vestir-lhe na véspera.
- Não está morto, decerto! - gaguejei.
O doutor estava terrivelmente agitado. Suas mãos tremiam como folhas
ao vento.
- Morreu há várias horas.
- Foi a febre?
- Febre! Olhe para o pé dele.
Lancei um olhar para baixo e um grito de horror escapou-me dos lábios.
Um dos pés estava não somente deslocado, mas torcido completamente
na mais grotesca contorção.
- Santo Deus! - exclamei - . O que terá podido fazer isto?
Severall pousara a mão sobre o peito do morto.
- Apalpe aqui! - sussurrou.
Coloquei a minha mão no mesmo lugar. Não houve resistência.
O corpo estava absolutamente fofo e mole. Era como apalpar um boneco de serragem.
- O osso esterno desapareceu - disse Severall no mesmo murmúrio assustado.
Graças a Deus que ele tinha tomado o láudano. Pode ver-lhe pelo
rosto que morreu dormindo.
- Mas quem pode ter feito isso? - Já tenho bastante disso - disse o doutor,
enxugando a testa. - Não sei se sou mais cobarde do que os meus vizinhos,
mas isto vai além das minhas forças. Se vai para o Gamecock...
- Venha daí! - disse eu, e seguimos. Se não corremos foi porque
cada um de nós queria conservar uma última sombra de respeito
perante o outro. Era perigoso arriscar-se em uma leve canoa sobre as águas
do rio engrossado, mas não paramos um instante para pensar isso. Ele
ao leme e eu remando, conseguimos mante-la à tona d'água e chegamos
à coberta do iate. Ali, com duzentas jardas de água entre nós
e aquela maldita ilha, sentimos que éramos nós mesmos de novo.
- Voltaremos dentro de uma hora ou duas - disse ele - mas precisamos de algum
tempo para nos refazer. Não consentiria que os negros me vissem no estado
em que eu estava ainda agora nem por um ano de salário.
- Eu disse ao despenseiro para preparar o café. Depois voltaremos - disse
eu. - Mas, em nome de Deus, doutor, que concluiu de tudo isto?
- Vai além da minha compreensão; simplesmente além da minha
compreensão. Tenho ouvido falar da feitiçaria dos vodus, e ria-me
disso, com os outros. Mas que o pobre velho Walker, um cidadão inglês
decente, temente a Deus, do século dezenove, tivesse de ser enterrado
assim, sem um único osso no corpo - isso me abalou, não nego.
Mas olhe para ali, Meldrum; estará aquele seu homem maluco, bêbado,
ou que é que ele tem?
O velho Patterson, o homem mais antigo da tripulação, e calmo
como as pirâmides, estivera de quarto à popa com um croque para
afastar os troncos flutuantes que desciam arrastados pela correnteza. Agora
estava de cócoras, com os olhos esgazeados olhando para a frente e o
dedo indicador agitando-se furiosamente no ar.
- Olhem para ela! - gritava - Olhem para ela!
E no mesmo instante a vimos.
Um enorme tronco de árvore preto vinha descendo rio abaixo, com a parte
superior apenas lambida pelas águas. E na frente dele - cerca de três
pés a frente - arqueando-se para cima como a figura de proa de um navio,
via-se uma cabeça terrível, balançando devagar de um lado
para o outro. Era achatada, malévola, do tamanho de um pequeno barril
de cerveja, cor de fungo desbotada, mas o pescoço que a sustentava era
mosqueado de amarelo e preto. Enquanto passava ao longo do costado do Gamecock
arrastada no torvelinho das águas, vi duas imensas roscas distenderem-se
de dentro de um grande buraco no tronco, e a horrenda cabeça ergueu-se
de súbito à altura de oito ou dez pés, fitando o iate com
olhos sombrios, cobertos de escamas.
- Que é aquilo? - exclamei.
- É o nosso demônio da tanoaria - disse o doutor Severall tornando-se
em um instante o mesmo homem resoluto, confiante em si próprio que fora
antes - . Sim, aquilo é o diabo que andou assombrando nossa ilha. É
a grande serpente píton do Gabão.
Pensei nas histórias que ouvira ao longo de toda a costa sobre os monstruosos
constritores do interior, do apetite periódico, e os efeitos assassinos
de seu aperto mortal. Então, tudo tomou forma no meu espírito.
Houvera uma inundação na semana anterior. Trouxera rio abaixo
aquele enorme tronco com seu horrendo ocupante. Quem sabe de que distante floresta
tropical teria vindo? Ficara detido na pequena baía a leste da ilha.
A tanoaria era a construção mais próxima. Duas vezes, com
a volta do apetite periódico, carregara um vigia. Nessa noite voltara
sem dúvida, quando Severall julgou ver qualquer coisa movendo-se na janela,
mas as nossas luzes tinham-na afastado. Seguira para diante e matara o pobre
Walker.
- Por que não o carregou? - perguntei. - Os trovões e relâmpagos
devem ter assustado o bruto. Aí vem o despenseiro, Meldrum. Quanto mais
depressa tomarmos café e voltarmos à ilha, melhor, porque alguns
negros poderiam pensar que tivemos medo.
Que tal comprar um livro de Arthur Conan Doyle? Sherlock Holmes - Obra completa A Terra da Bruma |