A Garganta da Serpente
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A noiva

(André Calazans)

- É, meu filho, sua velha mãe não tem como evitar. Você, meu único filho que me ficou, vai casar. Logo você, meu caçula, com aquela jararaca ...

- Mãe, por favor ...

- Deixa disso, mulher! Ele tem que fazer a vida dele. Um homem precisa escolher sozinho o seu caminho. - intervém o marido, irritado.

- Até você defende ela? A mulherzinha me odeia, eu sei. Morre de ciúmes de mim, coloca filho contra mãe. Mas eu já me conformei com a traição de todos vocês, sei que o casamento é inevitável, não tem mais jeito ...

- Não estou do lado de ninguém, apenas falo o que é certo. Agora, larga de besteira e não enche o saco do seu filho. Tá chegando o dia mesmo, te conforma, mulher!

As semanas se passam, até a esperada ocasião. De classe média, o casal não havia planejado um casamento marcado pela ostentação. Mas também não decepcionaria os convidados. Haveria uma recepção após a cerimônia, no salão da própria igreja, que se localizava no centro da cidade. Uma capela discreta, mas tradicional. Foi escolhido um grande número de padrinhos, consequentemente aumentando a quantidade de bons presentes. As pessoas que estariam no altar, perto dos noivos, eram divididas igualmente entre íntimas do casal e outras não tão chegadas assim, mas de excelentes condições financeiras.

- Mãe, estou tão nervosa . Será que vai dar tudo certo?

- Claro que sim, filhinha. Olha, já está chegando. Faltam quantos dias mesmo? Ah, é, vinte e dois, eu conto cada dia. Você vai ver que vai sair tudo bem.

- Tem uma coisa que eu não consigo parar de pensar, que me atormenta!

- Minha filha, já falei que está tudo certo. Tivemos hoje na igreja e no bufê, semana que vem voltamos lá, está tudo confirmadinho, arrumadinho, até a costureira ta adiantada.

- Não, mãe, eu tô falando da velha.

- Ah, filha, por favor! Não me venha com este assunto de novo! Você vai casar, não é? É o que interessa. Além disso, cá entre nós, ela já tem idade bastante avançada, e ainda por cima sofre do coração. Não teve um problema outro dia mesmo? Você vai ver só, não vai ter que aguentá-la por muito tempo...

- Deus te ouça, mãe, Deus te ouça! Só de pensar em ter ela tão perto na minha vida daqui em diante, fico desesperada.



A casa fora arrumada para a ocasião. O fotógrafo se esmerava no serviço, fazendo gracejos sem a menor graça para tentar relaxar a elegante noiva. Quando depois de muitas e muitas fotos ela resolveu apressá-lo, os pais a tranquilizaram. Afinal de contas, noiva que é noiva chega sempre em cima da hora, até mesmo atrasada. Naquele exato instante, a pequena igreja encontrava-se cheia de flores e gente.

Alguns convidados estranhavam a ausência do noivo, que normalmente chega antes e espera a futura mulher com ansiedade, como se ela pudesse deixar de vir.

A sessão de fotos na casa da noiva termina, e o luxuoso automóvel preto, alugado com motorista, se prepara para partir. De repente, o primo do noivo, que era também um dos padrinhos, chega correndo à casa. A noiva olha assustada para ele. Após um curto silêncio, alguém pergunta:

- O que você está fazendo aqui?

- A tia ...

- O que tem a velha? O que ela aprontou desta vez? - pergunta a noiva, em tom agressivo.

- Ela morreu!

Os carros partem para a casa do noivo, que era bem próxima. A nubente chora copiosamente, consolada pelos pais. Chegando ao local, ela salta correndo, com seu enorme vestido, chamando a atenção da vizinhança.

Dentro da casa, alguns poucos parentes cercam o corpo da mulher, estendido na cama. O resto da família está na igreja e ignora o fato.

O filho aperta a mão dela contra o rosto, e chora como criança. A noiva se aproxima silenciosamente por trás, arrastando seu véu, e o abraça. Ele chora mais ainda. Logo todos ficam sabendo que foi um ataque cardíaco rápido e fulminante, durante o banho. O vizinho, que era médico, deu a notícia, e nada pôde fazer. De qualquer forma, uma ambulância estava a caminho. Durante uns minutos, ninguém diz nada.

Depois, a noiva começa a falar baixinho no ouvido do companheiro:

- Olha, eu sinto muito, de verdade. É uma tragédia. Mas ela está descansando agora, vinha sofrendo muito com a doença ultimamente, não é mesmo?

Ele apenas assente de leve com a cabeça, algumas lágrimas ainda escorriam pelo seu rosto.

- Sei que é muito difícil para você, mas a gente tem que pensar em uma coisa. Por favor, escute o que vou dizer. São sete horas, a igreja deve estar lotada, as pessoas impacientes. Pessoas que se importam conosco, também, e que amavam ela. Nós temos que ir agora. Quando acabar a cerimônia, a gente volta ...

Ele a olha nos olhos, e não consegue falar nada. O pai dela, que havia escutado quase tudo, repreende-a discretamente com um sinal.

- Por favor, me ouça, nós temos que ir.

Desta vez, ela fala mais alto, angustiada, e quase todos os parentes da falecida escutam. O ambiente fica tenso no apertado recinto. Ela insiste mais uma vez, até que se descontrola:

- Ou você vem comigo agora ou nunca mais olho pra você!

O noivo, finalmente, se manifesta:

- Sai da minha casa.

- O quê?

- Saia da minha casa, agora! Vai, porra!

- Seu idiota, sabe o que está dizendo?

A velha morta era a única pessoa a não tentar apaziguar o ânimo entre os noivos. De nada adiantou, porém, a intervenção dos parentes, pois a menina perde a linha de vez, gritando pra falecida:
- Safada, miserável, mesmo morta acaba com a minha vida!
- Calma, pelo amor de Deus, filha, olha o vexame!

- Me solta, esta velha desgraçada! Ela fez isso pra acabar com meu casamento!

E a noiva, toda de branco, sai correndo e gritando pelas ruas mal iluminadas do bairro.

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