Ian Lovecraft levou a menina pela mão para trás de uns arbustos
do parque, onde a esquartejou com uma faca e comeu partes do seu corpo, nomeadamente
o fígado, o coração, as faces e as orelhas.
A irmã da vítima, apenas dois anos mais velha do que ela, estava
ali por perto atrás de uma árvore; as duas estavam a jogar às
escondidas quando surgiu Lovecraft em busca da sua vítima. Ela viu a
irmã afastar-se com um desconhecido e pensou em chamar por ela, mas algo
no seu íntimo a fez calar-se; e quando ouviu a irmã gritar e gemer,
correu para casa a chorar e contou aos pais o sucedido. Os pais chamaram a polícia;
levou-se a cabo uma busca exaustiva ao parque, e o cadáver da menina
foi encontrado enterrado numa cova pouco profunda encoberta por ramos soltos.
Se o alerta não tivesse sido dado tão rapidamente, a vegetação
teria crescido sobre a sepultura e os restos mortais talvez nunca tivessem sido
encontrados.
Nos dias seguintes, com base na descrição fornecida pela irmã
da vítima, a polícia reuniu vários jovens de idades compreendidas
entre os dezassete e os vinte anos; à medida que os seus álibis
iam sendo verificados e confirmados, a lista começou a encurtar até
os suspeitos estarem reduzidos a meia-dúzia. Por fim, alinharam-nos e
assim que entrou na sala de identificação, a irmã da vítima
pôs-se a chorar e a apontar para Ian Lovecraft, de dezoito anos.
Ian Lovecraft foi acusado da morte da menina de oito anos, e para surpresa de
todos, além de confessar a autoria desse crime, confessou ter cometido
muitos outros da mesma natureza. Começara a matar e a comer rapariguinhas
aos catorze anos, e a sua última vítima era a sua décima.
Sem exprimir remorsos ou qualquer outro tipo de emoção, Lovecraft
descreveu pormenorizadamente cada um dos seus crimes e indicou o local preciso
onde cada um dos corpos, ou o que restava deles, tinham sido enterrados.
O Tribunal nomeou-lhe um advogado de defesa, William Stoker, o qual requereu
uma avaliação psiquiátrica para aferir a sanidade mental
do seu cliente. O Dr. Burroughs entrevistou Ian Lovecraft, bem como muitas das
pessoas que o conheciam, sem que chegasse, contudo, a concluir a sua avaliação,
tendo-se afastado do caso invocando razões de ordem pessoal e ética.
O facto de ser pai de duas meninas de cinco e dez anos, alegou ele, impedia-o
de realizar o seu trabalho de forma objectiva e profissional.
Os pais de Ian Lovecraft, pessoas de rendimentos e habilitações
literárias acima da média, tinham-se escusado a qualquer tipo
de contacto com o filho desde o momento em que ele tinha sido formalmente acusado;
tinham também decidido nada fazer para o ajudar, daí o Tribunal
ter tido que nomear um advogado para o defender. Dos dois progenitores, era
a Sra. Lovecraft quem mais parecia se preocupar com o filho; ao contrário
do seu marido, não lhe foi fácil renegá-lo; no entanto,
nada fizera para ajudar Ian, receando talvez perder também o marido para
além do filho.
O relatório do Dr. Burroughs, apesar de inconcluído, era algo
extenso. Após o seu afastamento voluntário, o Tribunal encarregou
a Dra. Elina Ballard de concluir a avaliação psiquiátrica
de Ian Lovecraft.
A Dra. Ballard tinha quarenta anos, era solteira e trabalhava num hospital psiquiátrico
para loucos criminosos. Era raro ela trabalhar fora do hospital, mas aceitara
pôr à disposição do Tribunal a sua perícia
movida por um interesse científico. O caso tinha deixado a comunidade
chocada, e fora muito badalado na televisão e na imprensa escrita. Chamara-lhe
a atenção o facto de que todos quanto conheciam Ian Lovecraft
não acreditarem que ele alguma vez fosse capaz de tais actos; era um
excelente desportista, tinha boas notas na escola, tinha muitos amigos, era
bem-educado, bastante sociável, não era violento, não bebia
e não se drogava; os seus pais eram pessoas bem-formadas que lhe tinham
proporcionado uma vida confortável e incutido nele valores sadios e princípios
sólidos, sem indícios de fanatismo religioso ou extremismo político
ou qualquer outra espécie de fundamentalismo, para além de que
não tinham problemas de alcoolismo ou de toxicodependência.
O Relatório Burroughs referia tudo isso, sendo bastante completo nesse
domínio, baseado em testemunhos de várias pessoas: professores,
colegas de escola, amigos, vizinhos, bem como o psicólogo da escola e
os próprios pais de Lovecraft. Porém, o Dr. Burroughs entrevistara
Ian Lovecraft diversas vezes, não conseguindo nunca obrigá-lo
a romper o silêncio a que se remetera; Lovecraft declarou mais tarde a
Stoker, o seu advogado, que se mantivera calado por sentir que o Dr. Burroughs
tinha medo dele. O perfil psicológico de Lovecraft traçado por
Burroughs na realidade não passava de um pequeno esboço confuso,
onde ele se referia repetidas vezes a Lovecraft como a 'Besta'.
- Bom dia, Sr. Lovecraft. Eu sou a Dra. Ballard. O Tribunal encarregou-me de
conduzir uma avaliação psiquiátrica para determinar a sua
sanidade mental; ou seja, se deve ser considerado inimputável e ser tratado
num hospital psiquiátrico, de onde provavelmente jamais irá sair,
ou se deve ser considerado responsável pelos seus actos e ser condenado
à morte. Compreende o que lhe acabo de dizer, Sr. Lovecraft?
Ian Lovecraft permaneceu calado, o seu rosto impassível e inexpressivo.
- Sabe, Sr. Lovecraft, estou aqui apenas a fazer o meu trabalho. Lido com loucos
que cometeram crimes todos os dias, por isso não pense que tenho medo
de si; especialmente porque o senhor, ao que parece, matou rapariguinhas indefesas,
e estou longe de ser uma rapariguinha indefesa. Também não tenho
pena nenhuma de si. Por princípio, sou contra a pena de morte; mas no
seu caso até estou disposta a abrir uma excepção. Portanto,
se não quiser falar comigo, melhor para mim.
- Eu não tenho escolha, Dra. Ballard - disse Lovecraft, quase abafando
as últimas palavras de Elina Ballard.
- O que quer dizer com isso, Sr. Lovecraft?
- Sou um monstro e mereço morrer.
- Quer dizer que tem consciência do mal que fez e que merece ser castigado
por isso?
- Eu não tenho consciência de nada. Lembro-me do que fiz, mas não
sei por que o fiz. É como se eu me lembrasse de um filme que tivesse
visto, como se tivesse sido apenas um espectador dos meus próprios actos.
Apenas sei o que fiz e que por isso tenho que morrer; matei e devo ser morto;
privei seres humanos das suas vidas, e é justo que seja privado da minha.
- É por isso que eu acho que a pena de morte não faz sentido;
não é matando que se ensina que matar é errado; ninguém
tem o direito de roubar de roubar uma vida, mesmo que essa vida não valha
nada.
- Acha que eu não mereço morrer... Dra. Ballard?
- Não sei. É por isso que aqui estou. Para descobrir se à
luz das nossas leis, o senhor merece morrer ou não...
- Diga-me, Sr. Lovecraft, por que matou todas aquelas meninas?
- Não sei.
- Não sabe? Não é capaz sequer de imaginar um motivo?
- Não sei mesmo, Dra. Ballard. Tenho pensado muito acerca disso. Antes
não pensava, mas agora não paro de dar voltas à cabeça,
talvez devido à iminência da minha morte, por me ver confrontado
com a minha própria mortalidade.
- Tem medo de morrer?
Ian Lovecraft reflectiu por alguns momentos antes de responder.
- Não. Já me mentalizei de que vou morrer em breve. Vou pagar
pelos meus crimes com a minha vida.
- Sr. Lovecraft, o senhor afirma que não sabe por que fez o que fez;
mas certamente tinha consciência de que o que andava a fazer era errado
e condenável aos olhos da sociedade; a sua dissimulação
sugere isso mesmo; até porque o senhor não se entregou de livre
vontade, foi apanhado pela polícia.
- Decerto que já ouviu falar da teoria geral da evolução
das espécies de Darwin. Talvez nalgum lugar recôndito da minha
mente haja uma espécie de instinto primário que me levou a agir
como agi; talvez eu tenha sido obrigado a cumprir a regra de ouro da sobrevivência:
matar ou ser morto... comer ou ser comido...
A Dra. Ballard não conseguiu reprimir um arrepio na espinha; o esfíncter
contraiu-se-lhe espasmodicamente, mas ela recuperou o seu autodomínio
logo de seguida.
- Por que é que acha que as meninas constituíam uma ameaça
tão grande à sua sobrevivência? Aconteceu alguma coisa na
sua infância que possa tê-lo traumatizado, que nos possa indicar
uma motivação precisa para os seus crimes?
- Nada de que eu me consiga lembrar.
- As pessoas têm tendência para reprimir as más recordações,
Sr. Lovecraft.
- Dra. Ballard, da minha infância não guardo se não boas
recordações.
Através de William Stoker, a Dra. Elina Ballard obteve a morada e o número
de telefone dos pais de Ian Lovecraft, com quem ele vivia. Telefonou a marcar
uma entrevista com a Sra. Lovecraft para o dia seguinte.
Viu-se então na entrada de uma bonita moradia de dois andares rodeada
por frondosas árvores num agradável bairro suburbano a dez minutos
de carro do centro da cidade. Tocou à campainha, e diante dela surgiu
a Sra. Lovecraft, que a convidou a entrar e a sentar-se na sala.
- Sra. Lovecraft, lamento muito ter vindo incomodá-la num momento tão
difícil como este. Eu sei que já falou com o Dr. Burroughs acerca
do seu filho, mas eu pensei que talvez a senhora se pudesse lembrar de algo
que na altura não lhe tivesse ocorrido, algo que me pudesse ajudar a
traçar um perfil psicológico do seu filho o mais preciso possível...
para que ele possa ter um julgamento justo.
- Não sei o que lhe dizer, Dra. Ballard - disse a Sra. Lovecraft, suspirando
como que de cansaço. - Nunca pensei que ele pudesse um dia vir a fazer
as coisas horríveis que fez. Ele sempre foi um menino tão sossegado
e terno... nós demos-lhe tanto amor, nunca lhe faltou nada, não
percebo onde errámos... Sinto-me tão culpada... aquelas meninas
todas...
- O seu filho pode vir a ser condenado à morte, Sra. Lovecraft, e isso
para ele é-lhe indiferente. Se tiver algo para me dizer que me possa
de algum modo ajudar, agora é a altura. Dentro de alguns dias terei que
dar por concluída a minha avaliação e apresentá-la
em Tribunal.
A Sra. Lovecraft entretanto já não conseguia conter as lágrimas.
- Não posso ajudá-la, Dra. O meu marido está muito transtornado
com tudo isto, já não pode nem ouvir falar do filho, diz que ele
é um monstro e que merece morrer... Ele não tem sido o mesmo desde
que este pesadelo começou... Já não sei o que fazer, tenho
rezado tanto a Deus, e ao mesmo tempo tenho-o amaldiçoado e a mim mesma...
- Sra. Lovecraft...
- Dra. Ballard, se não se importa... agradecia-lhe que me deixasse sozinha...
por favor...
Uma semana depois, a Dra. Ballard foi ao Tribunal apresentar as conclusões
da sua avaliação psiquiátrica.
- O arguido, Ian Lovecraft, na minha opinião médico-profissional,
matou e profanou os cadáveres das suas vítimas com plena consciência
dos seus actos, e sem qualquer consideração pelas suas vidas.
Na avaliação feita pelo Dr. Burroughs e na minha própria,
não fui capaz de encontrar indícios de qualquer trauma ou abuso
emocional ou psicológico sofrido pelo arguido que pudesse levá-lo
a cometer crimes tão brutais. A única explicação
que posso avançar é a de que Ian Lovecraft é um sociopata
perigoso que cede sem resistência aos seus impulsos homicidas. Embora
os exames a que foi submetido tenham revelado altos níveis de testosterona
no seu organismo, a sua produção de serotonina é semelhante
à de um ser humano normal. O facto das suas vítimas serem mais
pequenas e mais fracas do que ele sugere um temperamento autoritário
e dominador. Contudo, não creio que se trate de um distúrbio de
personalidade, mas antes a simples exacerbação de uma característica
idiossincrática.
O Tribunal, tendo em conta o testemunho pericial da Dra. Ballard e a confissão
de Ian Lovecraft, não teve dúvidas nem hesitações
em considerá-lo culpado de todas as acusações e condenou-o
à morte por enforcamento. Através do seu advogado, Lovecraft fez
saber que não tencionava recorrer da sentença. A execução
foi marcada para daí a dois meses.
No dia seguinte, a Dra. Ballard recebeu um telefonema da Sra. Lovecraft. Pediu-lhe
que fosse a sua casa; queria falar com ela acerca de algo muito importante,
algo que estava relacionado com o caso do seu filho. Elina dirigiu-se para lá
assim que pôde.
A Sra. Lovecraft esperava-a à porta de sua casa, em pranto.
- Ele foi condenado à morte, não foi? Sinto-me tão culpada...
a culpa é toda minha... eu podia ter evitado tudo isto...
- O que quer dizer com isso, Sra. Lovecraft? De certeza que não está
a falar a sério. Acalme-se, está muito nervosa. É melhor
entrarmos e sentarmo-nos um pouco. Vamos, vamos...
Elina Ballard envolveu-a com o braço e levou-a para dentro. Sentaram-se
no sofá, e a Dra. Ballard mais não pôde fazer do que esperar
que ela se acalmasse.
A Sra. Lovecraft devia ter perto de cinquenta anos; conservava um certo porte
elegante e alguns traços da beleza de outrora, mas era evidente que estava
bastante abatida. Na sala, em cima das cómodas e nas prateleiras dos
armários, entre livros e objectos decorativos diversos, haviam várias
fotografias dos membros do clã Lovecraft; o ar jovial que a Sra. Lovecraft
ostentava em quase todas elas tinha-se desvanecido, de tal modo que a Dra. Ballard
tinha dificuldade em acreditar que a mulher diante de si era a mesma que lhe
sorria de cima do mobiliário.
- O meu marido deixou-me... para sempre - disse ela, engolindo em seco. - Tenho
rezado todos os dias a Deus pelo meu Ian. Isso deixava-o furioso. Ontem disse-me:
"Como podes rezar por um monstro daqueles?", e eu respondi "Ele
saiu de dentro de mim, ainda não me esqueci das dores do parto, não
me posso esquecer que ele é meu filho assim tão facilmente";
"Eu também não poderei esquecê-lo enquanto viver contigo",
disse ele; e foi-se embora...
A Sra. Lovecraft rebentou em novo pranto, e foi prontamente reconfortada pela
Dra. Ballard, que lhe estendeu um lenço de papel. Após se assoar,
pareceu ter ficado mais calma.
- Há algo que não lhe contei acerca de Ian, algo de terrível
que guardei dentro de mim durante todos estes anos, e que eu nunca contei a
ninguém. Não sei se ainda fará alguma diferença,
a Dra. me dirá. Quando fiquei grávida, o nosso lar encheu-se de
alegria; eu e o meu marido estávamos a tentar ter filhos há alguns
anos sem sucesso, o que tinha vindo a provocar alguns problemas no nosso casamento,
pelo que, como calcula, tanto ele como eu ficámos muito felizes e, de
certo modo, aliviados. Porém, desde logo o meu obstetra avisou-me que
podia haver complicações na minha gravidez; o meu útero
era demasiado pequeno e tinha pouca elasticidade; para além disso, as
primeiras ecografias revelaram que eu estava grávida de gémeos,
um rapaz e uma rapariga. O médico disse-me, sem rodeios, que havia a
possibilidade de um deles não sobreviver...
- Acalme-se, leve o tempo que for necessário - disse a Dra. Ballard,
suavemente.
Por esta altura a Sra. Lovecraft soluçava descontroladamente. Após
alguns momentos de pausa para se recompor retomou a sua narrativa.
- O meu marido estava tão contente com a perspectiva de vir a ser pai,
que resolvi esconder tudo dele. O nosso casamento nunca tinha corrido melhor;
ele tinha-se tornado tão atencioso comigo que eu não quis estragar
isso. Rezava todos os dias a Deus para que tudo corresse bem, para que não
fosse preciso alarmá-lo. Ainda assim não lhe contei que estava
à espera de gémeos. Não sabia qual deles iria sobreviver,
por isso disse-lhe que ainda não sabia o sexo da criança, as ecografias
não eram muito reveladoras... E no meu íntimo pensei nos nomes
dos meus filhos: o rapaz iria chamar-se Ian, e a rapariga... Siobhan. E então
por volta dos seis meses de gestação, aconteceu algo de horrível
dentro de mim... Venha comigo - disse a Sra. Lovecraft, levantando-se. - A senhora
tem que ver o que lhe tenho para mostrar para conseguir acreditar no que tenho
para lhe contar.
A Dra. Ballard seguiu a Sra. Lovecraft ao andar superior; lá chegadas,
subiram ainda um pequeno lanço de escadas que levavam ao sótão.
A Sra. Lovecraft acendeu a luz, revelando um sótão amplo surpreendentemente
livre de pó e teias de aranha. Haviam algumas cadeiras de plástico,
bem como uma mesa da mesma matéria, todas arrumadas a um canto, junto
de um velho roupeiro. Eram também vísiveis um carrinho de bebé,
um berço, uma alcova, um cavalo de baloiço e uma bicicleta.
A Sra. Lovecraft abriu uma das gavetas do roupeiro e tirou de lá uma
arca de madeira fechada a cadeado. Puxou o fio que usava à volta do pescoço,
por dentro da blusa, onde se via uma pequena chave pendurada; ajoelhou-se, inclinando-se
sobre a arca, e abriu-a. A Dra. Ballard ajoelhou-se a seu lado, expectante.
De dentro da arca surgiu um monte daquilo que pareceu a Elina Ballard serem
ecografias.
- O meu médico - disse a Sra. Lovecraft - explicou-me que não
é assim tão raro no princípio da gravidez haverem dois
embriões em desenvolvimento, mesmo quando acaba por nascer apenas uma
criança. Geralmente um dos embriões, que no fundo ainda é
apenas um amontoado de proteínas, acaba por ser naturalmente absorvido
pelo outro. Mas ele jurou que nunca tinha visto, ou sequer ouvido falar de nada
semelhante com o que se estava a passar dentro de mim.
A Sra. Lovecraft passou as ecografias para as mãos da Dra. Ballard, que
tremiam sem ela saber porquê. Segurou-as com uma mão, e com a outra
foi passando-as diante dos seus olhos uma a uma, sem parar de tremer. E enquanto
as imagens se sucediam umas atrás das outras, vinham-lhe à memória
fragmentos de uma frase proferida por Ian Lovecraft: "... matar ou ser
morto... COMER OU SER COMIDO...". E Elina Ballard tornou-se numa
das poucas testemunhas de uma luta intrauterina até à morte,
um combate fratricida por espaço vital à sobrevivência.
Sentiu um arrepio na espinha, enquanto, lentamente, perante os seus olhos incrédulos,
um dos fetos era literalmente engolido pelo outro; Ian tinha devorado Siobhan...
Estremeceu, como se despertasse de um pesadelo, quando se apercebeu de que a
Sra. Lovecraft estava a falar com ela.
- O Ian matou a minha bebé... a minha Siobhan... compreende? Ele era
um assassino, antes mesmo de nascer... E eu pensei que se lhe desse muito amor
ele seria uma pessoa normal... Oh, meu Deus, como eu estava errada... meu Deus...
O médico disse-me que se o Ian... não tivesse... comido a Siobhan,
ambos teriam morrido... antes tivessem... antes tivessem morrido os dois...
- Não compreende, Sr. Lovecraft?
A Dra. Ballard, assim que saíra de casa dos Lovecraft, fora ter com Ian
à sua cela no corredor da morte, e contara-lhe tudo o que a mãe
dele lhe havia contado a ela, sem nada omitir.
- O senhor não foi conscientemente responsável pelos actos macabros
que praticou; estava apenas a obedecer a um instinto atávico e primário,
e muito poderoso, que lhe foi útil na sua luta pela sobrevivência
ainda dentro do útero da sua mãe. A sua irmã Siobhan era
mais pequena e mais fraca, e no entanto representava uma ameaça para
ambas as vossas vidas. E a forma que a Natureza arranjou para garantir a perpetuação
dos genes dos seus pais e dos seus antepassados, foi fazê-lo devorar a
sua irmã, para assim assegurar-lhe espaço suficiente para poder
crescer no pequeno útero de sua mãe. Neste momento apenas posso
especular, mas julgo que o instinto que lhe deu primazia sobre a sua irmã
nunca chegou a desaparecer; apenas ficou adormecido dentro de si, no seu subconsciente,
até ao dia em que despertou e o levou a matar rapariguinhas e a comê-las,
como fez com Siobhan. Talvez seja um problema hormonal; os seus crimes começaram
por volta dos seus catorze anos, que é quando o corpo de criança
inicia a sua transformação em corpo de homem. Sr. Lovecraft, face
a estes novos elementos, a sua pena pode ser comutada para prisão perpétua;
e então poderá ser tratado. Talvez ainda haja esperança
para si...
Ian Lovecraft fitava o tampo da mesa, absorto nos seus pensamentos. Quando levantou
a cabeça para encará-la, parecia estar a olhar através
da Dra. Ballard, como se ela fosse invisível.
- Tudo o que me disse só me faz querer morrer ainda mais... Sou verdadeiramente
uma besta humana, o Mal feito carne... Matei Siobhan antes mesmo dela nascer,
antes mesmo de eu nascer... e continuei a matá-la, e continuaria a matá-la
se não tivesse sido travado. Compreendo agora tudo tão claramente:
eu via a minha irmã em todas as minhas vítimas; tinha um medo
inconsciente delas, apesar de serem mais fracas do que eu... ou talvez por isso
mesmo... A verdade, que eu ignorava até agora, não vem alterar
absolutamente nada, apenas vem reforçar a minha convicção
de que devo morrer... e quanto mais depressa, melhor.
- Lamento que pense dessa maneira, Sr. Lovecraft - disse a Dra. Ballard, levantando-se.
- A minha ética, tanto profissional como pessoal, obriga-me a submeter
estes dados ao seu advogado e ao Tribunal para que seja pedido um recurso com
vista à comutação da sua pena.
- Obrigado por tudo - murmurou Lovecraft, o seu olhar distante.
A caminho de casa, ao volante do seu automóvel, a Dra. Ballard não
pôde deixar de sentir compaixão por Lovecraft que, qual escorpião,
fora vítima da sua própria natureza.
Ian Lovecraft estrangular-se-ia com as próprias mãos nessa mesma
noite. Ao saber da notícia, Elina não conseguiu afastar a ideia
que ele, matando-se, quisera matar Siobhan uma vez mais...