A Garganta da Serpente
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O Complexo de Siobhan

(António Bizarro)

Ian Lovecraft levou a menina pela mão para trás de uns arbustos do parque, onde a esquartejou com uma faca e comeu partes do seu corpo, nomeadamente o fígado, o coração, as faces e as orelhas.

A irmã da vítima, apenas dois anos mais velha do que ela, estava ali por perto atrás de uma árvore; as duas estavam a jogar às escondidas quando surgiu Lovecraft em busca da sua vítima. Ela viu a irmã afastar-se com um desconhecido e pensou em chamar por ela, mas algo no seu íntimo a fez calar-se; e quando ouviu a irmã gritar e gemer, correu para casa a chorar e contou aos pais o sucedido. Os pais chamaram a polícia; levou-se a cabo uma busca exaustiva ao parque, e o cadáver da menina foi encontrado enterrado numa cova pouco profunda encoberta por ramos soltos. Se o alerta não tivesse sido dado tão rapidamente, a vegetação teria crescido sobre a sepultura e os restos mortais talvez nunca tivessem sido encontrados.

Nos dias seguintes, com base na descrição fornecida pela irmã da vítima, a polícia reuniu vários jovens de idades compreendidas entre os dezassete e os vinte anos; à medida que os seus álibis iam sendo verificados e confirmados, a lista começou a encurtar até os suspeitos estarem reduzidos a meia-dúzia. Por fim, alinharam-nos e assim que entrou na sala de identificação, a irmã da vítima pôs-se a chorar e a apontar para Ian Lovecraft, de dezoito anos.

Ian Lovecraft foi acusado da morte da menina de oito anos, e para surpresa de todos, além de confessar a autoria desse crime, confessou ter cometido muitos outros da mesma natureza. Começara a matar e a comer rapariguinhas aos catorze anos, e a sua última vítima era a sua décima. Sem exprimir remorsos ou qualquer outro tipo de emoção, Lovecraft descreveu pormenorizadamente cada um dos seus crimes e indicou o local preciso onde cada um dos corpos, ou o que restava deles, tinham sido enterrados.

O Tribunal nomeou-lhe um advogado de defesa, William Stoker, o qual requereu uma avaliação psiquiátrica para aferir a sanidade mental do seu cliente. O Dr. Burroughs entrevistou Ian Lovecraft, bem como muitas das pessoas que o conheciam, sem que chegasse, contudo, a concluir a sua avaliação, tendo-se afastado do caso invocando razões de ordem pessoal e ética. O facto de ser pai de duas meninas de cinco e dez anos, alegou ele, impedia-o de realizar o seu trabalho de forma objectiva e profissional.

Os pais de Ian Lovecraft, pessoas de rendimentos e habilitações literárias acima da média, tinham-se escusado a qualquer tipo de contacto com o filho desde o momento em que ele tinha sido formalmente acusado; tinham também decidido nada fazer para o ajudar, daí o Tribunal ter tido que nomear um advogado para o defender. Dos dois progenitores, era a Sra. Lovecraft quem mais parecia se preocupar com o filho; ao contrário do seu marido, não lhe foi fácil renegá-lo; no entanto, nada fizera para ajudar Ian, receando talvez perder também o marido para além do filho.

O relatório do Dr. Burroughs, apesar de inconcluído, era algo extenso. Após o seu afastamento voluntário, o Tribunal encarregou a Dra. Elina Ballard de concluir a avaliação psiquiátrica de Ian Lovecraft.

A Dra. Ballard tinha quarenta anos, era solteira e trabalhava num hospital psiquiátrico para loucos criminosos. Era raro ela trabalhar fora do hospital, mas aceitara pôr à disposição do Tribunal a sua perícia movida por um interesse científico. O caso tinha deixado a comunidade chocada, e fora muito badalado na televisão e na imprensa escrita. Chamara-lhe a atenção o facto de que todos quanto conheciam Ian Lovecraft não acreditarem que ele alguma vez fosse capaz de tais actos; era um excelente desportista, tinha boas notas na escola, tinha muitos amigos, era bem-educado, bastante sociável, não era violento, não bebia e não se drogava; os seus pais eram pessoas bem-formadas que lhe tinham proporcionado uma vida confortável e incutido nele valores sadios e princípios sólidos, sem indícios de fanatismo religioso ou extremismo político ou qualquer outra espécie de fundamentalismo, para além de que não tinham problemas de alcoolismo ou de toxicodependência.

O Relatório Burroughs referia tudo isso, sendo bastante completo nesse domínio, baseado em testemunhos de várias pessoas: professores, colegas de escola, amigos, vizinhos, bem como o psicólogo da escola e os próprios pais de Lovecraft. Porém, o Dr. Burroughs entrevistara Ian Lovecraft diversas vezes, não conseguindo nunca obrigá-lo a romper o silêncio a que se remetera; Lovecraft declarou mais tarde a Stoker, o seu advogado, que se mantivera calado por sentir que o Dr. Burroughs tinha medo dele. O perfil psicológico de Lovecraft traçado por Burroughs na realidade não passava de um pequeno esboço confuso, onde ele se referia repetidas vezes a Lovecraft como a 'Besta'.

- Bom dia, Sr. Lovecraft. Eu sou a Dra. Ballard. O Tribunal encarregou-me de conduzir uma avaliação psiquiátrica para determinar a sua sanidade mental; ou seja, se deve ser considerado inimputável e ser tratado num hospital psiquiátrico, de onde provavelmente jamais irá sair, ou se deve ser considerado responsável pelos seus actos e ser condenado à morte. Compreende o que lhe acabo de dizer, Sr. Lovecraft?

Ian Lovecraft permaneceu calado, o seu rosto impassível e inexpressivo.

- Sabe, Sr. Lovecraft, estou aqui apenas a fazer o meu trabalho. Lido com loucos que cometeram crimes todos os dias, por isso não pense que tenho medo de si; especialmente porque o senhor, ao que parece, matou rapariguinhas indefesas, e estou longe de ser uma rapariguinha indefesa. Também não tenho pena nenhuma de si. Por princípio, sou contra a pena de morte; mas no seu caso até estou disposta a abrir uma excepção. Portanto, se não quiser falar comigo, melhor para mim.

- Eu não tenho escolha, Dra. Ballard - disse Lovecraft, quase abafando as últimas palavras de Elina Ballard.

- O que quer dizer com isso, Sr. Lovecraft?

- Sou um monstro e mereço morrer.

- Quer dizer que tem consciência do mal que fez e que merece ser castigado por isso?

- Eu não tenho consciência de nada. Lembro-me do que fiz, mas não sei por que o fiz. É como se eu me lembrasse de um filme que tivesse visto, como se tivesse sido apenas um espectador dos meus próprios actos. Apenas sei o que fiz e que por isso tenho que morrer; matei e devo ser morto; privei seres humanos das suas vidas, e é justo que seja privado da minha.

- É por isso que eu acho que a pena de morte não faz sentido; não é matando que se ensina que matar é errado; ninguém tem o direito de roubar de roubar uma vida, mesmo que essa vida não valha nada.

- Acha que eu não mereço morrer... Dra. Ballard?

- Não sei. É por isso que aqui estou. Para descobrir se à luz das nossas leis, o senhor merece morrer ou não...

- Diga-me, Sr. Lovecraft, por que matou todas aquelas meninas?

- Não sei.

- Não sabe? Não é capaz sequer de imaginar um motivo?

- Não sei mesmo, Dra. Ballard. Tenho pensado muito acerca disso. Antes não pensava, mas agora não paro de dar voltas à cabeça, talvez devido à iminência da minha morte, por me ver confrontado com a minha própria mortalidade.

- Tem medo de morrer?

Ian Lovecraft reflectiu por alguns momentos antes de responder.

- Não. Já me mentalizei de que vou morrer em breve. Vou pagar pelos meus crimes com a minha vida.

- Sr. Lovecraft, o senhor afirma que não sabe por que fez o que fez; mas certamente tinha consciência de que o que andava a fazer era errado e condenável aos olhos da sociedade; a sua dissimulação sugere isso mesmo; até porque o senhor não se entregou de livre vontade, foi apanhado pela polícia.

- Decerto que já ouviu falar da teoria geral da evolução das espécies de Darwin. Talvez nalgum lugar recôndito da minha mente haja uma espécie de instinto primário que me levou a agir como agi; talvez eu tenha sido obrigado a cumprir a regra de ouro da sobrevivência: matar ou ser morto... comer ou ser comido...

A Dra. Ballard não conseguiu reprimir um arrepio na espinha; o esfíncter contraiu-se-lhe espasmodicamente, mas ela recuperou o seu autodomínio logo de seguida.

- Por que é que acha que as meninas constituíam uma ameaça tão grande à sua sobrevivência? Aconteceu alguma coisa na sua infância que possa tê-lo traumatizado, que nos possa indicar uma motivação precisa para os seus crimes?

- Nada de que eu me consiga lembrar.

- As pessoas têm tendência para reprimir as más recordações, Sr. Lovecraft.

- Dra. Ballard, da minha infância não guardo se não boas recordações.

Através de William Stoker, a Dra. Elina Ballard obteve a morada e o número de telefone dos pais de Ian Lovecraft, com quem ele vivia. Telefonou a marcar uma entrevista com a Sra. Lovecraft para o dia seguinte.

Viu-se então na entrada de uma bonita moradia de dois andares rodeada por frondosas árvores num agradável bairro suburbano a dez minutos de carro do centro da cidade. Tocou à campainha, e diante dela surgiu a Sra. Lovecraft, que a convidou a entrar e a sentar-se na sala.

- Sra. Lovecraft, lamento muito ter vindo incomodá-la num momento tão difícil como este. Eu sei que já falou com o Dr. Burroughs acerca do seu filho, mas eu pensei que talvez a senhora se pudesse lembrar de algo que na altura não lhe tivesse ocorrido, algo que me pudesse ajudar a traçar um perfil psicológico do seu filho o mais preciso possível... para que ele possa ter um julgamento justo.

- Não sei o que lhe dizer, Dra. Ballard - disse a Sra. Lovecraft, suspirando como que de cansaço. - Nunca pensei que ele pudesse um dia vir a fazer as coisas horríveis que fez. Ele sempre foi um menino tão sossegado e terno... nós demos-lhe tanto amor, nunca lhe faltou nada, não percebo onde errámos... Sinto-me tão culpada... aquelas meninas todas...

- O seu filho pode vir a ser condenado à morte, Sra. Lovecraft, e isso para ele é-lhe indiferente. Se tiver algo para me dizer que me possa de algum modo ajudar, agora é a altura. Dentro de alguns dias terei que dar por concluída a minha avaliação e apresentá-la em Tribunal.

A Sra. Lovecraft entretanto já não conseguia conter as lágrimas.

- Não posso ajudá-la, Dra. O meu marido está muito transtornado com tudo isto, já não pode nem ouvir falar do filho, diz que ele é um monstro e que merece morrer... Ele não tem sido o mesmo desde que este pesadelo começou... Já não sei o que fazer, tenho rezado tanto a Deus, e ao mesmo tempo tenho-o amaldiçoado e a mim mesma...

- Sra. Lovecraft...

- Dra. Ballard, se não se importa... agradecia-lhe que me deixasse sozinha... por favor...

Uma semana depois, a Dra. Ballard foi ao Tribunal apresentar as conclusões da sua avaliação psiquiátrica.

- O arguido, Ian Lovecraft, na minha opinião médico-profissional, matou e profanou os cadáveres das suas vítimas com plena consciência dos seus actos, e sem qualquer consideração pelas suas vidas. Na avaliação feita pelo Dr. Burroughs e na minha própria, não fui capaz de encontrar indícios de qualquer trauma ou abuso emocional ou psicológico sofrido pelo arguido que pudesse levá-lo a cometer crimes tão brutais. A única explicação que posso avançar é a de que Ian Lovecraft é um sociopata perigoso que cede sem resistência aos seus impulsos homicidas. Embora os exames a que foi submetido tenham revelado altos níveis de testosterona no seu organismo, a sua produção de serotonina é semelhante à de um ser humano normal. O facto das suas vítimas serem mais pequenas e mais fracas do que ele sugere um temperamento autoritário e dominador. Contudo, não creio que se trate de um distúrbio de personalidade, mas antes a simples exacerbação de uma característica idiossincrática.

O Tribunal, tendo em conta o testemunho pericial da Dra. Ballard e a confissão de Ian Lovecraft, não teve dúvidas nem hesitações em considerá-lo culpado de todas as acusações e condenou-o à morte por enforcamento. Através do seu advogado, Lovecraft fez saber que não tencionava recorrer da sentença. A execução foi marcada para daí a dois meses.

No dia seguinte, a Dra. Ballard recebeu um telefonema da Sra. Lovecraft. Pediu-lhe que fosse a sua casa; queria falar com ela acerca de algo muito importante, algo que estava relacionado com o caso do seu filho. Elina dirigiu-se para lá assim que pôde.

A Sra. Lovecraft esperava-a à porta de sua casa, em pranto.

- Ele foi condenado à morte, não foi? Sinto-me tão culpada... a culpa é toda minha... eu podia ter evitado tudo isto...

- O que quer dizer com isso, Sra. Lovecraft? De certeza que não está a falar a sério. Acalme-se, está muito nervosa. É melhor entrarmos e sentarmo-nos um pouco. Vamos, vamos...

Elina Ballard envolveu-a com o braço e levou-a para dentro. Sentaram-se no sofá, e a Dra. Ballard mais não pôde fazer do que esperar que ela se acalmasse.

A Sra. Lovecraft devia ter perto de cinquenta anos; conservava um certo porte elegante e alguns traços da beleza de outrora, mas era evidente que estava bastante abatida. Na sala, em cima das cómodas e nas prateleiras dos armários, entre livros e objectos decorativos diversos, haviam várias fotografias dos membros do clã Lovecraft; o ar jovial que a Sra. Lovecraft ostentava em quase todas elas tinha-se desvanecido, de tal modo que a Dra. Ballard tinha dificuldade em acreditar que a mulher diante de si era a mesma que lhe sorria de cima do mobiliário.

- O meu marido deixou-me... para sempre - disse ela, engolindo em seco. - Tenho rezado todos os dias a Deus pelo meu Ian. Isso deixava-o furioso. Ontem disse-me: "Como podes rezar por um monstro daqueles?", e eu respondi "Ele saiu de dentro de mim, ainda não me esqueci das dores do parto, não me posso esquecer que ele é meu filho assim tão facilmente"; "Eu também não poderei esquecê-lo enquanto viver contigo", disse ele; e foi-se embora...

A Sra. Lovecraft rebentou em novo pranto, e foi prontamente reconfortada pela Dra. Ballard, que lhe estendeu um lenço de papel. Após se assoar, pareceu ter ficado mais calma.

- Há algo que não lhe contei acerca de Ian, algo de terrível que guardei dentro de mim durante todos estes anos, e que eu nunca contei a ninguém. Não sei se ainda fará alguma diferença, a Dra. me dirá. Quando fiquei grávida, o nosso lar encheu-se de alegria; eu e o meu marido estávamos a tentar ter filhos há alguns anos sem sucesso, o que tinha vindo a provocar alguns problemas no nosso casamento, pelo que, como calcula, tanto ele como eu ficámos muito felizes e, de certo modo, aliviados. Porém, desde logo o meu obstetra avisou-me que podia haver complicações na minha gravidez; o meu útero era demasiado pequeno e tinha pouca elasticidade; para além disso, as primeiras ecografias revelaram que eu estava grávida de gémeos, um rapaz e uma rapariga. O médico disse-me, sem rodeios, que havia a possibilidade de um deles não sobreviver...

- Acalme-se, leve o tempo que for necessário - disse a Dra. Ballard, suavemente.

Por esta altura a Sra. Lovecraft soluçava descontroladamente. Após alguns momentos de pausa para se recompor retomou a sua narrativa.

- O meu marido estava tão contente com a perspectiva de vir a ser pai, que resolvi esconder tudo dele. O nosso casamento nunca tinha corrido melhor; ele tinha-se tornado tão atencioso comigo que eu não quis estragar isso. Rezava todos os dias a Deus para que tudo corresse bem, para que não fosse preciso alarmá-lo. Ainda assim não lhe contei que estava à espera de gémeos. Não sabia qual deles iria sobreviver, por isso disse-lhe que ainda não sabia o sexo da criança, as ecografias não eram muito reveladoras... E no meu íntimo pensei nos nomes dos meus filhos: o rapaz iria chamar-se Ian, e a rapariga... Siobhan. E então por volta dos seis meses de gestação, aconteceu algo de horrível dentro de mim... Venha comigo - disse a Sra. Lovecraft, levantando-se. - A senhora tem que ver o que lhe tenho para mostrar para conseguir acreditar no que tenho para lhe contar.

A Dra. Ballard seguiu a Sra. Lovecraft ao andar superior; lá chegadas, subiram ainda um pequeno lanço de escadas que levavam ao sótão. A Sra. Lovecraft acendeu a luz, revelando um sótão amplo surpreendentemente livre de pó e teias de aranha. Haviam algumas cadeiras de plástico, bem como uma mesa da mesma matéria, todas arrumadas a um canto, junto de um velho roupeiro. Eram também vísiveis um carrinho de bebé, um berço, uma alcova, um cavalo de baloiço e uma bicicleta.

A Sra. Lovecraft abriu uma das gavetas do roupeiro e tirou de lá uma arca de madeira fechada a cadeado. Puxou o fio que usava à volta do pescoço, por dentro da blusa, onde se via uma pequena chave pendurada; ajoelhou-se, inclinando-se sobre a arca, e abriu-a. A Dra. Ballard ajoelhou-se a seu lado, expectante. De dentro da arca surgiu um monte daquilo que pareceu a Elina Ballard serem ecografias.

- O meu médico - disse a Sra. Lovecraft - explicou-me que não é assim tão raro no princípio da gravidez haverem dois embriões em desenvolvimento, mesmo quando acaba por nascer apenas uma criança. Geralmente um dos embriões, que no fundo ainda é apenas um amontoado de proteínas, acaba por ser naturalmente absorvido pelo outro. Mas ele jurou que nunca tinha visto, ou sequer ouvido falar de nada semelhante com o que se estava a passar dentro de mim.

A Sra. Lovecraft passou as ecografias para as mãos da Dra. Ballard, que tremiam sem ela saber porquê. Segurou-as com uma mão, e com a outra foi passando-as diante dos seus olhos uma a uma, sem parar de tremer. E enquanto as imagens se sucediam umas atrás das outras, vinham-lhe à memória fragmentos de uma frase proferida por Ian Lovecraft: "... matar ou ser morto... COMER OU SER COMIDO...". E Elina Ballard tornou-se numa das poucas testemunhas de uma luta intrauterina até à morte, um combate fratricida por espaço vital à sobrevivência. Sentiu um arrepio na espinha, enquanto, lentamente, perante os seus olhos incrédulos, um dos fetos era literalmente engolido pelo outro; Ian tinha devorado Siobhan... Estremeceu, como se despertasse de um pesadelo, quando se apercebeu de que a Sra. Lovecraft estava a falar com ela.

- O Ian matou a minha bebé... a minha Siobhan... compreende? Ele era um assassino, antes mesmo de nascer... E eu pensei que se lhe desse muito amor ele seria uma pessoa normal... Oh, meu Deus, como eu estava errada... meu Deus... O médico disse-me que se o Ian... não tivesse... comido a Siobhan, ambos teriam morrido... antes tivessem... antes tivessem morrido os dois...

- Não compreende, Sr. Lovecraft?

A Dra. Ballard, assim que saíra de casa dos Lovecraft, fora ter com Ian à sua cela no corredor da morte, e contara-lhe tudo o que a mãe dele lhe havia contado a ela, sem nada omitir.

- O senhor não foi conscientemente responsável pelos actos macabros que praticou; estava apenas a obedecer a um instinto atávico e primário, e muito poderoso, que lhe foi útil na sua luta pela sobrevivência ainda dentro do útero da sua mãe. A sua irmã Siobhan era mais pequena e mais fraca, e no entanto representava uma ameaça para ambas as vossas vidas. E a forma que a Natureza arranjou para garantir a perpetuação dos genes dos seus pais e dos seus antepassados, foi fazê-lo devorar a sua irmã, para assim assegurar-lhe espaço suficiente para poder crescer no pequeno útero de sua mãe. Neste momento apenas posso especular, mas julgo que o instinto que lhe deu primazia sobre a sua irmã nunca chegou a desaparecer; apenas ficou adormecido dentro de si, no seu subconsciente, até ao dia em que despertou e o levou a matar rapariguinhas e a comê-las, como fez com Siobhan. Talvez seja um problema hormonal; os seus crimes começaram por volta dos seus catorze anos, que é quando o corpo de criança inicia a sua transformação em corpo de homem. Sr. Lovecraft, face a estes novos elementos, a sua pena pode ser comutada para prisão perpétua; e então poderá ser tratado. Talvez ainda haja esperança para si...

Ian Lovecraft fitava o tampo da mesa, absorto nos seus pensamentos. Quando levantou a cabeça para encará-la, parecia estar a olhar através da Dra. Ballard, como se ela fosse invisível.

- Tudo o que me disse só me faz querer morrer ainda mais... Sou verdadeiramente uma besta humana, o Mal feito carne... Matei Siobhan antes mesmo dela nascer, antes mesmo de eu nascer... e continuei a matá-la, e continuaria a matá-la se não tivesse sido travado. Compreendo agora tudo tão claramente: eu via a minha irmã em todas as minhas vítimas; tinha um medo inconsciente delas, apesar de serem mais fracas do que eu... ou talvez por isso mesmo... A verdade, que eu ignorava até agora, não vem alterar absolutamente nada, apenas vem reforçar a minha convicção de que devo morrer... e quanto mais depressa, melhor.

- Lamento que pense dessa maneira, Sr. Lovecraft - disse a Dra. Ballard, levantando-se. - A minha ética, tanto profissional como pessoal, obriga-me a submeter estes dados ao seu advogado e ao Tribunal para que seja pedido um recurso com vista à comutação da sua pena.

- Obrigado por tudo - murmurou Lovecraft, o seu olhar distante.

A caminho de casa, ao volante do seu automóvel, a Dra. Ballard não pôde deixar de sentir compaixão por Lovecraft que, qual escorpião, fora vítima da sua própria natureza.

Ian Lovecraft estrangular-se-ia com as próprias mãos nessa mesma noite. Ao saber da notícia, Elina não conseguiu afastar a ideia que ele, matando-se, quisera matar Siobhan uma vez mais...

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