A Garganta da Serpente
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Siamese dream

(António Bizarro)

Era muito nova. Aparentava ter no máximo quinze anos, apesar da máscara de dor em que o seu rosto se tornara. O obstetra, por sua vez, devia ter menos do que o dobro da sua idade. Via-se que era inexperiente. As enfermeiras que o assistiam trocavam olhares divertidos de vez em quando.
Primeiro nasceu Isobel, saudável e robusta. Não chorou. Esperou por Joshua, o seu irmão, igualmente robusto e saudável. O seu choro ecoou pela sala de partos ao mesmo tempo que a sua jovem mãe exalava o seu último suspiro, o milagre da vida e o mistério da morte partilhando o mesmo espaço asséptico. Os recém-nascidos não haviam ainda recebido os seus nomes e já haviam perdido a sua mãe, tão anónima quanto eles. Dera entrada no hospital já em trabalho de parto, trazida não se sabe por quem; a sua ficha clínica ficara desprovida de quaisquer dados pessoais.
O jovem médico estava verdadeiramente desorientado. As enfermeiras, também elas algo consternadas, tentaram poupá-lo ao embaraço.
- Dr. Lynch...? - disse uma delas. - Quer que eu contacte os Serviços Sociais?
- O quê? Ah, sim, faça isso.

Gabriel e Alice Ginsberg eram pessoas tementes a Deus, algo abastados, e estavam casados há dez anos. Eram católicos devotos e amigos de ajudar a sua Igreja nas suas obras sociais; ele, empresário no ramo de equipamentos de hotelaria, através de generosas contribuições, as quais eram dedutíveis nos impostos; ela, através do trabalho voluntário que fazia na sopa dos pobres, no hospital e num lar de idosos.
Praticamente desde que se tinham casado, Alice e Gabriel tentavam ter filhos. Tentaram durante muitos anos, sempre com a mesma esperança e a mesma fé em Deus. Ultimamente já não tinham tanta esperança, porém persistiam nas suas tentativas. Gabriel chegou a sugerir à esposa que recorressem a uma clínica de fertilidade, mas Alice pôs imediatamente essa hipótese de parte, argumentando que se Deus não queria que eles tivessem filhos, a solução não era buscar a ciência dos homens e sim aceitar a Sua vontade. Chegaram a falar vagamente em adopção, o que pareceu ter reunido consenso; no entanto, tanto Gabriel como Alice acharam melhor deixarem de pensar nisso durante algum tempo; o seu casamento andava a ressentir-se da pressão que ambos exerciam sobre si mesmos e um sobre o outro.
Até ao dia em que Alice Ginsberg se cruzou com a enfermeira Korzeniowski num dos muitos corredores do hospital. Alice ia a caminho da unidade de geriatria, onde costumava fazer companhia aos idosos e ajudar as enfermeiras a dar-lhes banho e a trocar os lençóis, enquanto Korzeniowski tinha acabdo o turno e ia para casa.
A enfermeira contou-lhe dos gémeos nascidos no dia anterior, da morte trágica da sua mãe adolescente, e de como nunca tinha visto dois bebés tão lindos como aqueles em toda a sua vida; que olhos, que pele, que perfeição.
Mais tarde, Alice Ginsberg estava já perto da saída do hospital, quando a propósito de nada se lembrou dos pequenos orfãos. Estariam eles ainda no berçário? Seriam mesmo assim tão extraordinariamente belos? Iria só espreitá-los, apenas por curiosidade.
Perguntou por eles à enfermeira de serviço, que a conhecia, e olhou na direcção em que o dedo apontava. E viu-os pela primeira vez. Dormiam serenamente, ele vestido de azul, ela de cor-de-rosa. Eram absolutamente idênticos. Tinham até a cabeça inclinada para o mesmo lado. Os seus cabelos eram quase brancos de tão louros, a pele de uma brancura leitosa, faces rosadas, corpos esguios e delgados, bocas semelhantes a pequenos morangos.
Vão ser altos quando crescerem, profetizou Alice.

Joshua e Isobel foram recebidos em casa dos Ginsberg com grande excitação e alegria. Um tanto relutante a princípio, Gabriel deixara-se convencer por Alice, e em particular pela visão dos dois pequenos recém-nascidos, que pareciam olhar um para o outro apesar de estarem dentro dos berços e de não se poderem ver; nunca tinha visto bebés tão lindos como aqueles em toda a sua vida; que olhos, que pele, que perfeição.
E que bonzinhos eram eles; não davam quase trabalho nenhum, embora, é certo, o pouco trabalho que cada um dava fosse multiplicado por dois; ainda assim, nunca o casal Ginsberg se pôde queixar de noites mal-dormidas; Isobel e Joshua adormeciam pouco depois do anoitecer e só acordavam no outro dia de manhã.
Choravam em coro quando tinham fome ou quando sujavam a fralda; chegavam mesmo a sofrer de cólicas ou de dores de ouvidos em perfeita simultaniedade. Era como se fossem duas versões diferentes do mesmo ser, uma masculina e outra feminina; a única diferença entre eles era o sexo; de resto eram em tudo semelhantes.
Isso tornou-se cada vez mais evidente à medida que iam crescendo; balbuciaram as primeiras palavras em uníssono e deram os passos inaugurais em conjunto; aprenderam as letras e os números com a mesma facilidade e a mesma rapidez, como também rápida e facilmente assimilaram os rudimentos da convivência em sociedade e as bases da religão professada por seus pais adoptivos.
Os pais, especialmente Alice, encaravam tudo isso com ternura mesclada de alguma apreensão; a cada ano que passava, os professores de Joshua e Isobel não se cansavam de lhes tecer rasgados elogios e de lhes augurar um futuro académico brilhante, rematando invariavelmente as suas apreciações com uma nota de preocupação acerca da sua pouca sociabilidade; não brincavam com mais ninguém a não ser um com o outro, e mal trocavam duas palavras com os colegas; apesar de nunca se mostrarem hostis para com ninguém, pareciam ter erguido um muro invisível em seu redor, uma barreira entre eles e o mundo, não da mesma forma que as crianças autistas o fazem, mas de uma forma deliberada e consciente.
Alice e Gabriel convenceram-se de que com o avançar da idade eles se tornariam mais sociáveis. Mas quanto mais eles cresciam, mais ensimesmados ficavam. Tinham a sensação desconfortável de partilharem o lar com dois desconhecidos de rostos esfíngicos, por detrás dos quais se escondia um mundo de pensamentos insondáveis. Alice gostava de ficar a vê-los brincar da soleira da porta do seu quarto, e não era raro calarem-se bruscamente quando se davam conta da sua presença.
Dormiram na mesma cama até por volta dos nove anos, altura em que os pais acharam por bem que cada um tivesse o seu quarto. Porém os gémeos protestaram histericamente, gritando a plenos pulmões que não queriam ser separados, eles que eram sempre tão fleumáticos, deixando os pais boquiabertos, os quais não tiveram outra escolha se não voltar atrás na sua decisão. Conseguiram, no entanto, convencê-los a dormir em camas separadas.

Aos catorze anos de idade, Joshua e Isobel continuavam tão inseparáveis e reservados como antes. Não tinham quaisquer amizades, e pareciam não ter nenhum outro interesse para além da literatura. Passavam horas na biblioteca a ler todo o tipo de livros, e mesmo em casa na maior parte do tempo estavam absorvidos nas suas leituras. Se a mãe ou o pai os instavam a sair um pouco de casa e a dar uma volta pelo parque que havia ali perto, eram vistos logo depois sentados à sombra de uma árvore com as caras tapadas pelos livros.
Fisicamente havia um ou outro detalhe que os diferenciava, mas Isobel e Joshua continuavam absolutamente idênticos. Tal como Alice Ginsberg profetizara, eram muito altos para a sua idade, ela um pouco mais alta do que ele. Os traços fisionómicos de Joshua eram mais bem vincados que os de Isobel e os seus cabelos louros mais curtos que os dela; de resto, era a cara chapada da irmã; as mesmas maças do rosto salientes, os lábios carmesim e a pele macia. Os seus gestos e trejeitos igualmente delicados e imbuídos de timidez. Os seus corpos eram fibrosos, desprovidos de adiposidades supérfluas, bem torneadas as pernas, cinturas finas, braços longos e mãos esguias.
Tanto um como o outro sofriam as alterações ditadas pelas suas hormonas; as suas púbis começavam a ser discreta mas inexoravelmente cobertas por um fino manto de pêlos macios e dourados. Joshua possuía já um sexo perfeitamente formado e funcional como o de um adulto, enquanto em Isobel despontavam uns pequenos seios redondos de mamilos rosados e pontiagudos. De igual modo estava apta a gerar descendência.

A par das mudanças físicas que atravessavam, o seu relacionamento parecia também estar a sofrer mutações.
Eles que se conheciam mutuamente como a si mesmos, de súbito foram tomados por um extremo pudor em relação à sua própria nudez, e mais especialmente à nudez do outro. Vestiam-se e despiam-se de costas voltadas, e ao mais pequeno vislumbre da mais pequena porção de pele nua que não fosse a sua, viravam a cabeça rapidamente e o sangue tingia-lhes as faces de um rubor violento.
E à noite eram atormentados por pensamentos e imagens de natureza erótica e contornos incestuosos, que na catequese lhes tinham ensinado serem pecaminosos e passíveis de os candidatar às eternas chamas infernais. Era-lhes impossível conciliar o sono, e quando o conseguiam acordavam de madrugada a suar em bica, a roupa interior e as calças dos pijamas misteriosamente molhadas. A situação foi-se repetindo durante alguns meses, num crescendo cada vez mais intolerável para ambos.

Até que por fim, numa noite quente de Verão, não conseguiram mais resistir às sua pulsões e entregaram-se um ao outro. Foi Isobel quem tomou a iniciativa.
Joshua encontrava-se na fronteira entre o sono e a vígilia quando sentiu o corpo de sua irmã contra o seu. Sorveu o seu hálito quente e entrelaçou a sua língua na dela. Isobel estava nua da cintura para baixo, e Joshua sentiu a mão ficar lambuzada ao tocar na vulva quente e húmida que se lhe oferecia, ao mesmo tempo que ela lhe despia as cuecas e lhe tomava na mão o pénis erecto, dirigindo-o para dentro de si. A penetração foi díficil a princípio, mas ela insistiu até que, finalmente, a fina membrana de pele que atestava a sua pureza se rompeu, banhando de sangue o sexo do irmão, o qual deslizou então para dentro dela com facilidade. Isobel mordeu os lábios e fechou os olhos, deitando-se sobre Joshua, esforçando-se por reprimir um gemido de dor e de prazer alojado na sua garganta, prestes talvez a denunciá-los e ao seu amor proibido.

A partir dessa noite, o seu amor não mais parou de crescer, amor esse que, afinal, sempre os tinha unido, mas que só agora sabiam exprimi-lo.
Tinham a distinta impressão, intraduzível por palavras, de que o seu amor sempre tinha existido e sempre iria existir, e que iria resistir à passagem do tempo e à inevitabilidade da morte. Iria renovar-se perpetuamente e nada iria fazê-lo esmorecer. Essa impressão tornava-se mais forte de noite para noite, na intimidade do seu quarto. Sabiam como se satisfazerem um ao outro como se sempre o tivessem feito.
Dos dois, Joshua era o único que se sentia culpado, pois era nele que a noção de pecado estava mais profundamente enraízada. É certo que isso tinha como efeito o exacerbar da sua excitação sexual, mas também lhe provocava grandes conflitos interiores; sentia-se dividido entrea fé em Deus e o amor pela sua irmã, dilacerado pela culpa de ser um pecador e de ao mesmo tempo não ser merecedor do amor que ela lhe devotava.
Isobel, com uma clarividência que lhe era muito própria, dissipou-lhe as dúvidas com poucas palavras.
- Joshua, já olhaste bem para ti e para mim? E para os nossos pais? De certeza que já te apercebeste de que eles nem sequer são os nossos pais verdadeiros... Sabe-se lá em que mais não nos terão mentido. Só podemos acreditar em nós mesmos, um no outro e em mais ninguém; a única coisa em que podemos confiar é no nosso amor; é a única coisa que temos a certeza que é verdadeira...

Durante alguns meses Isobel e Joshua viveram ídilicamente. De dia, o seu comportamento não diferia do de sempre, embora lhes fosse díficil manter as mãos longe um do outro. Por vezes, quando os seus pais adoptivos se ausentavam, atreviam-se a fazer às claras aquilo que só faziam a coberto de trevas cúmplices, a luz solar incidindo sobre as suas peles, milhares de pequenos pêlos dourados refulgindo como minúsculos sóis.
Mas era à noite que eles se abandonavam totalmente até ao romper do dia. Pouco dormiam; apesar disso, irradiavam frescura e vitalidade, como se o seu amor possuísse propriedades regeneradoras e analépticas.
De tão inebriados que estavam de felicidade, não lhes deve ter ocorrido que o resultado normal de uma relação sexual costuma ser a gravidez. Pelo que o atraso cada vez mais dilatado da sua mesntruação constituíu uma surpresa para Isobel. Contudo, ao contrário do seria de esperar, não entrou em pânico, nem sequer ficou preocupada. De ínicio, aceitou a sua gravidez como um simples facto da vida; mas à medida que ela avançava começou a pensar no ser embrionário que carregava no seu ventre como a expressão máxima do seu amor por Joshua. Quando Isobel lhe contou que estava grávida, a sua primeira reacção foi igual à da irmã, mas como ela acabou por se habituar à ideia de que ia ser pai e ficou muito feliz.

Decidiram fugir. Para onde, era algo que ainda não lhes tinha passado pela cabeça. Sabiam que era a única solução. Alice e Gabriel eram pessoas tolerantes; contudo, não era díficil de imaginar qual seria a sua reacção ao descobrirem que os filhos tinham cometido incesto, e que a caminho se encontrava o fruto abominável da sua relação pecaminosa.
Um dia, depois das aulas, meteram algumas roupas numa mala, tendo em mente escaparem-se durante a noite. Mas antes de chegar a hora de partir, Isobel acordou com enjoos fortíssimos. Joshua dormia. Saiu pé ante pé do quarto e fechou-se na casa-de-banho, a cabeça enfiada na sanita, mãos e joelhos apoiados no chão frio, uma sensação de queimadura no esófago.
Alice tinha o sono leve e despertou pouco depois. Percorreu descalça o corredor e abriu a porta da casa-de-banho.
- Isobel, sentes-te mal? - perguntou, precipitando-se para a filha, afastando o cabelo que se lhe colava à testa para os lados.
- Não é nada - mentiu a filha. - Foi algo que comi ao jantar que me caiu mal. Já me sinto melhor...
E mal acabando de dizer isto, vomitou uma vez mais. Não devia ter mais nada no estômago, pois agora pouco mais conseguia regurgitar do que pequenas quantidades de suco gástrico.
- Vou chamar um médico.
- Não! - disse Isobel, elevando exageradamente a voz. - Não é preciso, eu já fico bem. Vai para a cama. Eu vou só lavar a cara e depois vou logo dormir.
O tom ríspido e autoritário de Isobel surpreendeu Alice, em especial porque contrastava com o seu aspecto debilitado. Isobel erguera-se a custo, e mal se conseguia aguentar de pé; as pernas tremiam-lhe como varas verdes.
- Isobel... - murmurou Alice, em jeito de censura carinhosa.
- Vai-te embora! - ordenou-lhe Isobel.
Alice quase se preparava para lhe obedecer, quando uma ideia lhe atravessou o espírito. Quis rejeitá-la, era demasiado inacreditável; a sua filha tinha apenas catorze anos, era praticamente uma criança. Aproximou-se de Isobel, procurando descobrir se estava certa ou errada.
- Desculpa, filha. É que estou preocupada contigo, mais nada. Anda, vem deitar-te. Se amanhã não estiveres melhor, então eu chamo um médico. Está bem?
Pôs-lhe o braço à volta do ombro e passou-lhe a mão pela testa, enxugando o suor que a cobria. Baixou a tampa da sanita e fê-la sentar-se, afagando-lhe os cabelos suados e em desalinho. Isobel ficou mais calma. Alice ajoelhou-se a seu lado e falou-lhe suavemente.
- Então...? Já estás melhor do estômago?
- Sim, acho que sim.
- Já te sentes melhor, não sentes?
- Sim, sim...
Alice pousou levemente os lábios no ombro de Isobel e acariciou-lhe a barriga.

Joshua sentou-se na cama, estremunhado, despertado que tinha sido por vozes iradas. Levantou-se, e cambaleante, sem acender a luz, foi averiguar que alarido era aquele.
Na casa-de-banho, Isobel chorava; os pais rodeavam-na, gritando sem parar; queriam obrigá-la a confessar quem era o pai da criança que esperava. Alice chorava e gesticulava, enquanto Gabriel, de rosto corado e cinto na mão, vociferava furiosamente, saliva a brilhar nos cantos dos seus lábios.
- Puta ordinária, diz-nos quem foi o cabrão que te fez isto...
- Por favor, Isobel, só queremos ajudar-te. A pessoa que te fez isto é muito má e tem que ser castigada.
A curva pronunciada do monte de Vénus de Isobel confirmara as suspeitas de Alice. Agora já se tinha arrependido de ter ido logo contar ao marido. Na maior parte do tempo, Gabriel era um homem calmo, mas quando se irritava ficava cego de raiva, perdia completamente a razão.
- Fala, viciosa, diz-me quem ele é...
- Pai, sou eu.
Os três voltaram-se para ver a esquálida figura de Joshua assomando à porta, o seu rosto estranhamente sombrio; a frase, proferida em voz baixa, tinha preenchido o pequeno espaço, abafando por completo todo o som no seu interior, ténues reverberações reflectidas nos azulejos.
- Joshua, volta já para o teu quarto - disse-lhe Alice.
Isobel olhou-o com apreensão.
- Sou eu, mãe - reiterou ele, calmamente.
- És tu o quê? - perguntou Gabriel.
- O pai do vosso neto...
A partir daí os acontecimentos precipitaram-se. Alice caiu no chão de joelhos, as palmas das mãos voltadas para o tecto, feições pintadas de terror e repulsa, invocando em lágrimas o nome do Senhor, suplicando o seu perdão. O marido, menos místico, ficou vermelho de raiva e lançou o cinto contra Joshua, ferindo-o na cara com a fivela de metal. Vendo-o prostrado, dirigiu a sua fúria vingadora para Isobel, e deu-lhe uma, duas, três vezes com o cinto nos braços que ela instintivamente erguera para se proteger. Perante isto, Joshua levantou-se de um salto e puxou o cinto das mãos de seu pai, que fitou-o assustado com a violência do seu gesto e a expressão terrível do seu rosto meio-ensanguentado. Joshua enrolou o cinto à volta do seu pescoço e posicionou-se por detrás dele, elevando-o acima do chão e mantendo-o no ar durante o que pareceu uma eternidade. Depois pousou o corpo inanimado, dir-se-ia que com cuidado, como se receasse magoar o pai morto.
Alice assistiu à morte do marido de boca escancarada num grito silencioso, os olhos espelhando o horror que a invadira, uma torrente de urina fluindo lentamente de dentro dela. Levantou-se e fugiu pelo corredor fora, acabando por tropeçar e estatelar-se ao comprido. Joshua seguiu-a, caminhando vagarosamente. Em cima da mesinha do telefone havia um candeeiro. O sangue jorrou do crâneo de Alice em golfadas irregulares, uma imagem que lhe trouxe à memória uma das pragas bíblicas.
Abandonaram a casa minutos depois. À porta tinham-se juntado alguns vizinhos, que tinham ficado alarmados com os gritos provenientes da residência dos Ginsberg. Joshua e Isobel passaram por eles sem dizer nada, meteram-se no carro dos pais e partiram a toda a velocidade. Os moradores que haviam acorrido ao local, a maioria de chinelos e pijama, aventuraram-se a entrar na casa, algures entre a curiosidade e o medo, e feito o achado macabro telefonaram para a Polícia.
Dirigiram-se para leste, para os limites da cidade, onde se refugiaram nas instalações decrépitas de uma fábrica desactivada. Era díficil perceber o que outrora havia sido ali produzido; os fósseis mecânicos no seu interior não ofereciam quaisquer indícios. Isobel e Joshua sabiam que seriam procurados pela Polícia, pelo que a velha fábrica apresentava-se-lhes como um abrigo seguro.
Deitaram-se no banco de trás do carro e ficaram abraçados até de manhã. Joshua fora o primeiro a adormecer. Isobel amava-o muito, mas ficara impressionada com o sangue-frio demonstrado por ele naquela noite. Até então, tinha sido sempre o elo mais forte daquela ligação; agora sentia-se reconfortada por saber que o irmão faria tudo para protegê-la. Ficou a contemplá-lo e a acariciar-lhe os cabelos, louros e suaves como os dela, até as pálpebras começarem a ficar cada vez mais pesadas e a visão turvada.

Ali ficaram a viver durante o que seria o resto das suas vidas. Exploraram as imediações e descobriram que a fábrica estava dotada de uma rede de esgotos própria ainda funcional; a água não tinha sido cortada, e muito perto dali havia um grande reservatório onde podiam tomar banho e lavar as suas roupas.
Por vezes de dia, mas sobretudo à noite, Joshua abandonava o refúgio e ia comprar comida em lojas de conveniência, supermercados e estações de serviço. Tinham levado algum dinheiro consigo, e ele ia conseguindo esticá-lo, roubando mais do que comprava. A barriga de Isobel aumentava de dia para dia, bem como o seu apetite. Joshua comia o menos possível, de modo a que a irmã e o nascituro dentro dela fossem bem alimentados.
Passavam os dias e as noites torcando carícias e falando do futuro, um futuro radioso cheio de felicidade e amor. O seu filho cresceria forte e saudável e ainda mais belo do que os dois; seria uma criatura excepcional, muito à frente do seu tempo, nascida para reinar e alcançar as mais notáveis proezas, deixando uma marca indelével no mundo.
E então uma noite, estava Isobel a meio do oitavo mês de gravidez, acordou com dores insuportáveis na barriga, as cuecas manchadas de sangue. Abanou o irmão e pediu-lhe que a levasse para o hospital. Joshua meteu-se no carro e deu à chave, mas não conseguiu fazê-lo pegar. Desistiu quando Isobel soltou um grito terrível de agonia. Pegou-a ao colo e carregou-a por cinco quilómetros, sem parar uma única vez pelo caminho.
Entrou com ela pelas urgências adentro, e pousou-a com cuidado numa maca.
- Não me deixes, Joshua - suplicou ela, banhada em lágrimas, apertando-lhe as mãos.
- Eu não te vou deixar nunca...
Joshua tinha o rosto muito perto do dela, alternando as palavras com carícias e beijos.
- Virei buscar-te mais tarde. Mas agora tenho que me ir embora. Se eles nos apanham, separam-nos e tiram-nos o nosso filho. Eu amo-te, amo-te muito, nunca te esqueças disso...
- Também te amo... Joshua...
Uma enfermeira deu um encontrão em Joshua e empurrou a maca pelo corredor. Joshua afastou-se até à porta, e ficou ainda um bom bocado a olhar para o ponto onde tinha perdido a irmã de vista.
Na sala de urgências estavam dois polícias uniformizados; um deles estudou Joshua com interesse. Tocou no ombro do colega e apontou-o. O outro olhou para Joshua e acenou com a cabeça em sinal de concordância.
- Ei, você aí! - disse um deles, com autoridade.
Joshua voltou-se para ele, e no mesmo movimento rodou sobre os calcanhares e começou a correr.
- Pede reforços, eu vou em perseguição do suspeito - disse o polícia, sacando da arma.
Isobel foi conduzida para uma sala de partos onde se encontravam a postos o obstetra de serviço e duas enfermeira. Joshua corria como se fugisse do Diabo, levando um bom avanço sobre o polícia, que ainda assim não saía do seu encalço. O médico decidiu operá-la, caso contrário tanto a parturiente como a criança teriam morte certa. Enfiou-se por ruas estreitas e escuras, galgou bancos de jardim e arbustos, e mesmo assim não conseguia despistar o agente de autoridade. Primeiro nasceu uma menina, que preferiu esperar pelo irmão para começar a chorar. Por fim, Joshua viu-se encurralado num beco sem saída; tentou voltar para trás, mas já o polícia lhe barrava o caminho, de arma em punho e dando-lhe voz de prisão. E quando se preparava para levantar os braços e entregar-se sem oferecer resistência, teve uma estranha sensação de vertigem, sentiu uma opressão no peito que o impedia de respirar; era como se a sua alma estivesse a ser sugada para fora do seu corpo. E no momento preciso em que Isobel exalava o seu último suspiro, Joshua escondeu o braço direito atrás das costas e fez com ele um movimento brusco que não deixou ao polícia outra alternativa a não ser disparar uma bala certeira que lhe atravessou o coração.
O médico, homem dos seus trinta e muitos, descalçou as luvas e tirou a máscara. Não deixava nunca de ficar maravilhado com o milagre da vida, nem de se sentir intimidado perante o mistério da morte. Soltou um longo suspiro, e depois virou-se para uma das enfermeiras, dizendo:
- Contacte os Serviços Sociais.
- Com certeza, Dr. Lynch.

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