Me bateu, assim, do nada, ao meio dia, uma saudade estranha de você, e assim
lancei meu olhar sempre perdido em direção às copas mais
altas das árvores. Mas eu não sabia o que olhar exatamente, já
que não via quase nada lá fora, devido ao nevoeiro do dia frio e
porque só olhava mesmo para dentro de mim, para checar como eu sentia,
naquele momento, a saudade.
A poltrona instalada na varanda ampla, o cobertor jogado nas pernas, o gorro,
as meias de lã, o silêncio quebrado apenas pelos barulhos da mata.
Bichos. Vento. O mundo ao redor coberto por uma leve fumaça subindo do
chão, branca, vapor. Frio.
Não me lembro mais há quanto tempo estou aqui, enfurnado nesse lugar.
A verdade é que acho que faz muito tempo. Mas isso não importa,
porque tudo dentro de mim se dissipou como essa névoa que vejo agora. Só
sobrou essa saudade, que surgiu agora, ao meio dia e que eu jurava que já
havia desistido de sentir.
Desde que tudo aconteceu daquela forma e me refugiei nesse lugar, meus dias são
sempre parecidos. Durmo muito. Misturo-me às vezes com o nevoeiro no meio
da mata e fico de olhos fechados aspirando o ar da manhã. Como pouco. Nunca
mais comi carne. Só verduras, legumes e frutas. Não por ideologia,
mas a carne embola na minha garganta e nunca desce. Desisti então de comê-la.
A carne sangrenta que eu tanto gostava me lembra você, seu corpo, seu sexo.
Emagreci muito. As calças que trouxe dançam agora no meu corpo.
Meu rosto ficou vincado. Nunca mais fiz a barba, que, de muito negra, dá
um aspecto envelhecido ao meu rosto. Algumas vezes, mesmo com tanto frio, nado
nu no lago. É o melhor momento do dia, onde o contato da minha pele com
a temperatura da água me traz de volta algum sentir. Arrepio. Como talvez
aquele que sentia ao percebê-la deitar sobre mim. Não. Estou enganado.
Era a sensação de calor. Mas era intensa e me fazia fechar os olhos
para aproveitá-la melhor, como agora faço no lago gelado.
Vou de bicicleta somente uma vez por semana ao vilarejo para comprar provisões.
Não olho para as pessoas. Caminho de olhos postos no chão, óculos
escuros, o gorro enfiado na cabeça, a passos largos, para que ninguém
me incomode ou troque palavras comigo. Pessoas não são bem vindas.
Não mais. São falsas. Cruéis. Traidoras.
A última vez que fui ao vilarejo, encontrei uma cadela. Uma vira-lata,
é claro. Marrom escura. Feia. As pernas tortas. Um olho vazado. Não
sei porque ela me seguiu até aqui. Foi ficando. Chamo-a de Zelda. Homenagem
a Zelda Fitzgerald, aquela escritora que você tanto gostava.
Me faz companhia. Converso com ela, alimento-a, e quando fico como agora, sentado
na varanda, ela deita-se aos meus pés, em cima do cobertor. Ela tem muito
frio. Como você tinha. Você sempre dormiu enrolada em seu velho cobertor
branco encardido, mesmo no verão. E eu achava aquilo bonito. Aliás,
achava tudo bonito em você. Suas manhas, seu jeito de segurar um copo, sua
risada sempre alta demais para a ocasião. Só não gostava
muito do seu brilho perante os outros. Seu brilho me cegava. E seu brilho foi
a minha e a sua desgraça.
Quando achei por acaso os bilhetes de Antonio dentro do seu livro preferido de
Zelda, entendi tudo. Um poema. Erótico, emocionado, sublime. Escrito para
você. Você sempre adorou poemas. Mas eu nunca soube escrever. E isso
me condenou.
Naquele dia você chegou sorridente em casa, os cabelos claros e finos revoltos,
cantarolando uma música antiga e me encontrou sentado na poltrona na qual
me encontro agora, cabeça baixa entre as mãos, fitando o chão
de tábuas largas da nossa sala.
Te mostrei em seguida o que tinha nas mãos: o bilhete. Aberto, escancarado,
cru. Seu canto imediatamente cessou. Assim como seu sorriso. Olhares cheios de
certezas e mágoas entre nós. Você abaixou a cabeça,
envergonhada. Mas antes li no fundo dos seus olhos seu verdadeiro amor por Antonio.
E isso me destruiu. Depois você subiu para nosso quarto lentamente, enfiou-se
nua na cama e fechou os olhos.
À partir daí não me lembro muito bem da sequência
dos fatos. Lembro apenas da textura da pele de sua linda barriga sendo rasgada
pela faca e das minhas mãos firmes segurando o cabo cor de marfim. Não
lembro se você gritou, nem da expressão de seu rosto ao morrer.
Enrolei seu corpo pálido, tingido de vermelho, no lençol já
sujo de sangue e passei quase a noite inteira abrindo o buraco no quintal. Coube
na medida seu corpo amado. Em cima da terra jogada e batida, em homenagem ao meu
amor por você, plantei um girassol, que era sua flor preferida.
Abandonei nossa casa, nossa vida, o girassol, e vim para cá, acabar meus
dias dignamente, deixando-me abandonar a mim mesmo.
(2005)