A Garganta da Serpente
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O Girassol

(Alessandra Mascarenhas)

Me bateu, assim, do nada, ao meio dia, uma saudade estranha de você, e assim lancei meu olhar sempre perdido em direção às copas mais altas das árvores. Mas eu não sabia o que olhar exatamente, já que não via quase nada lá fora, devido ao nevoeiro do dia frio e porque só olhava mesmo para dentro de mim, para checar como eu sentia, naquele momento, a saudade.

A poltrona instalada na varanda ampla, o cobertor jogado nas pernas, o gorro, as meias de lã, o silêncio quebrado apenas pelos barulhos da mata. Bichos. Vento. O mundo ao redor coberto por uma leve fumaça subindo do chão, branca, vapor. Frio.

Não me lembro mais há quanto tempo estou aqui, enfurnado nesse lugar. A verdade é que acho que faz muito tempo. Mas isso não importa, porque tudo dentro de mim se dissipou como essa névoa que vejo agora. Só sobrou essa saudade, que surgiu agora, ao meio dia e que eu jurava que já havia desistido de sentir.

Desde que tudo aconteceu daquela forma e me refugiei nesse lugar, meus dias são sempre parecidos. Durmo muito. Misturo-me às vezes com o nevoeiro no meio da mata e fico de olhos fechados aspirando o ar da manhã. Como pouco. Nunca mais comi carne. Só verduras, legumes e frutas. Não por ideologia, mas a carne embola na minha garganta e nunca desce. Desisti então de comê-la. A carne sangrenta que eu tanto gostava me lembra você, seu corpo, seu sexo. Emagreci muito. As calças que trouxe dançam agora no meu corpo. Meu rosto ficou vincado. Nunca mais fiz a barba, que, de muito negra, dá um aspecto envelhecido ao meu rosto. Algumas vezes, mesmo com tanto frio, nado nu no lago. É o melhor momento do dia, onde o contato da minha pele com a temperatura da água me traz de volta algum sentir. Arrepio. Como talvez aquele que sentia ao percebê-la deitar sobre mim. Não. Estou enganado. Era a sensação de calor. Mas era intensa e me fazia fechar os olhos para aproveitá-la melhor, como agora faço no lago gelado.

Vou de bicicleta somente uma vez por semana ao vilarejo para comprar provisões. Não olho para as pessoas. Caminho de olhos postos no chão, óculos escuros, o gorro enfiado na cabeça, a passos largos, para que ninguém me incomode ou troque palavras comigo. Pessoas não são bem vindas. Não mais. São falsas. Cruéis. Traidoras.

A última vez que fui ao vilarejo, encontrei uma cadela. Uma vira-lata, é claro. Marrom escura. Feia. As pernas tortas. Um olho vazado. Não sei porque ela me seguiu até aqui. Foi ficando. Chamo-a de Zelda. Homenagem a Zelda Fitzgerald, aquela escritora que você tanto gostava.

Me faz companhia. Converso com ela, alimento-a, e quando fico como agora, sentado na varanda, ela deita-se aos meus pés, em cima do cobertor. Ela tem muito frio. Como você tinha. Você sempre dormiu enrolada em seu velho cobertor branco encardido, mesmo no verão. E eu achava aquilo bonito. Aliás, achava tudo bonito em você. Suas manhas, seu jeito de segurar um copo, sua risada sempre alta demais para a ocasião. Só não gostava muito do seu brilho perante os outros. Seu brilho me cegava. E seu brilho foi a minha e a sua desgraça.

Quando achei por acaso os bilhetes de Antonio dentro do seu livro preferido de Zelda, entendi tudo. Um poema. Erótico, emocionado, sublime. Escrito para você. Você sempre adorou poemas. Mas eu nunca soube escrever. E isso me condenou.

Naquele dia você chegou sorridente em casa, os cabelos claros e finos revoltos, cantarolando uma música antiga e me encontrou sentado na poltrona na qual me encontro agora, cabeça baixa entre as mãos, fitando o chão de tábuas largas da nossa sala.

Te mostrei em seguida o que tinha nas mãos: o bilhete. Aberto, escancarado, cru. Seu canto imediatamente cessou. Assim como seu sorriso. Olhares cheios de certezas e mágoas entre nós. Você abaixou a cabeça, envergonhada. Mas antes li no fundo dos seus olhos seu verdadeiro amor por Antonio. E isso me destruiu. Depois você subiu para nosso quarto lentamente, enfiou-se nua na cama e fechou os olhos.

À partir daí não me lembro muito bem da sequência dos fatos. Lembro apenas da textura da pele de sua linda barriga sendo rasgada pela faca e das minhas mãos firmes segurando o cabo cor de marfim. Não lembro se você gritou, nem da expressão de seu rosto ao morrer.

Enrolei seu corpo pálido, tingido de vermelho, no lençol já sujo de sangue e passei quase a noite inteira abrindo o buraco no quintal. Coube na medida seu corpo amado. Em cima da terra jogada e batida, em homenagem ao meu amor por você, plantei um girassol, que era sua flor preferida.

Abandonei nossa casa, nossa vida, o girassol, e vim para cá, acabar meus dias dignamente, deixando-me abandonar a mim mesmo.

(2005)

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