Capítulo I
Não sei ao certo. Lembro-me da cabeça dolorida e pesada, de estar
descalço e sentado. Aos poucos percebi que além de descalço,
também estava nu.
Antes de esboçar qualquer movimento, tentei identificar o local, silencioso,
cheio de livros, o que na penumbra julguei ser uma biblioteca. Muito abafado
e com um estranho odor a defumador.
Ao tentar levantar-me, notei um movimento à frente. Mas eram meus aqueles
movimentos e a aparência de perplexidade que eu via era a minha própria
aparência.
Alguém havia colocado deliberadamente um espelho em frente à
cena, certamente prevendo a reação que se seguiria a tão
bizarro despertar. E talvez estivesse me observando, analisando meus gestos,
a minha tão absurda situação.
Levantei-me, enfim, do pequeno sofá e observei à volta.
Reconheci na escada de ferro e no pequeno café - único local
iluminado - a Livraria Portugal.
Capítulo II
Depois que encontramos este local, nenhum outro me pareceria mais adequado
para as novas instalações da Livraria.
E a melhor questão era a do mezanino, como aproveitá-lo? Seu
espaço e sua graça. Foi então que surgiu a ideia
do café.
Um café literário, com algumas mesinhas e calorosas discussões
acerca dos mais variados temas. O ambiente ideal, informal e sofisticado ao
mesmo tempo.
E o mezanino, que ficara aparentemente renegado à condição
de espaço complementar, passou a emoldurá-lo - logo abaixo - numa
suave e agradável composição de escada, livros, azulejos
e lajotas.
Entretanto e a meu ver, o ponto alto desta composição se dá
à noite, quando apagadas as luzes da loja, apenas as luzes indiretas
do balcão do café permanecem acesas, conferindo ao ambiente uma
atmosfera de requinte, romântica e sensual ao mesmo tempo, um verdadeiro
convite ao pecado.
Capítulo III
Depois de buscar minhas roupas pelo chão e constatar com evidente desagrado
que haviam desaparecido, desci a escada com certa dificuldade. Não me
lembrava de quase nada. Afinal, o que estava acontecendo?
Percebi que o computador estava ligado. Por alguns instantes observei as imagens
na tela, imagens geométricas e coloridas em 3D que se entrelaçavam
numa estranha dança cadenciada. Ao tocar no mouse, abriu-se uma tela
do Word, na qual se lia a seguinte mensagem: Volto logo!
Verifiquei que já eram 3 horas da madrugada. Após acender todas
as luzes e fazer uma busca pela loja (que não é tão grande,
afinal) descobri três coisas:
Que estava trancado, incomunicável e realmente só.
Capítulo IV
Além do café da Livraria e de todos os cafés, cenários
indiscutivelmente românticos, presentes nas várias expressões
da vida e da arte, há outro elemento na loja que me encanta: o sofá.
Instalado no mezanino, é pequeno, de veludo cinza-claro, com detalhes
dourados. Apesar de envelhecido, confere à Livraria algo de dignidade
e classe.
Protetor das damas em saias curtas (portanto justas) que eventualmente se aventurem
aos altos, expondo pernas e partes ao ilimitado e delicioso mundo dos fetiches
masculinos.
Mas por que deveríamos nos privar de tal poder? Para além de
todas as nossas potencialidades, obviamente. E que não são poucas.
E que são únicas, pessoais e intransferíveis.
O fato é que o tal sofá é mesmo um charme!
Como um velho mordomo: providencial, discreto e eficiente.
Como um velho gato: macio, preguiçoso e companheiro.
Como um velho sofá de veludo cinza: cúmplice.
Capítulo V
Eram quatro horas da manhã e eu não queria expor-me ao ridículo
(um pouco mais). Mas algo me dizia que não sairia dali tão cedo.
Tentava, em vão, concatenar ideias, lembrar em que momento e por
que havia ido à Livraria. Na verdade, há meses não a frequentava.
Era certo que simpatizava com o seu clima e os seus livros de indiscutíveis
qualidades (apesar do preço salgado). É verdade também
que me vali de uma "certa situação" para obter descontos
diferenciados junto a uma de suas funcionárias. Sim, devo confessar.
Nada que denegrisse, entretanto, a nossa reputação. Afinal, nunca
chegamos às vias de fato. Bem, houve um momento, sim, em que... Mas não,
não mesmo, nenhum motivo que justificasse tal insanidade.
Queria acreditar que tudo aquilo não passava de um pesadelo kafkaniano,
cheio de culpas e simbologias.
Uma comédia de péssimo gosto. Ou quem sabe, uma vingança...
Capítulo VI
Gosto de permanecer na Livraria depois do horário. Sinto-me parte integrante
daquele cenário. Fico, por vezes, sentada na escada a observar seus recantos,
namorá-la como parte de uma real conquista. A de minha independência,
afetiva e profissional. Mas devo-lhe respeito. Por tudo aquilo que ela me proporciona.
Sinto, entretanto, que há uma certa cobrança de sua parte. E é
por isso que resolvi fazer-lhe uma oferenda. Algo simples, ritualístico.
Um aperitivo apenas, já que seu apetite é voraz. Uma pequena declaração
de amor.