A Garganta da Serpente
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Meu Encontro Com A Morte

(Ariana Arivielo)

Sempre imaginei com bastante curiosidade como seria morrer antes dos vinte e cinco, na flor da juventude, como os poetas românticos... Bem, um dia desses, daqueles que a gente nem lembra e que passam com a normalidade cega e surda na memória do nosso tempo, numa tarde, assim, ela veio.

Eu estava meio que dormindo, mas não inconsciente também não muito acordada, tinha tomado várias xícaras de café e tinha tentado escrever meu trabalho. Era tarde da madrugada, cansada acabei por me debruçar sobre a mesa e deixar os livros e o computador de lado.

Não sei se foi de propósito, mas ela veio esvoaçante e rápida, criando uma magia sedutora em sua chegada, a capa era tão escura quanto seus olhos vazios e me olhavam não com vontade, mas com uma paixão quase penosa... Sorria louca e em suas mãos não trazia uma foice afiada e sim uma rosa vermelha, que me dava a impressão de sangrar.

A princípio eu não sabia quem era ela e mal conseguia falar diante do meu espanto, não de medo, acho que era mais curiosidade e surpresa. Mas ela se aproximou com a rosa nas mãos, usava uma capa preta longa que cobria todo o corpo e apenas deixava a mostra os olhos, que já descrevi.

Qual foi meu espanto quando ela se aproximou mais e mais, chegando bem devagar, perto demais pra me deixar confusa e revelou-se muito diferente do que eu pensava, disse por fim:

- olá! Você me reconhece?

Fiquei assombrada, não era mulher! A morte é um homem e tem uma voz forte e sedutora! Os olhos tão próximos dos meus eram azuis, como gelo, de repente a morte ficou bela pra mim, e eu me vi seduzida. Mal sabia o que dizer então apenas balancei negativamente a cabeça. Ele chegou mais perto e podia me tocar (se quisesse), estar perto dele dava a terrível sensação de uma nevasca, mas também a sensação de um inferno escaldante...

Então ele tirou o capuz e me fitou os olhos, quase desmaiei com a visão que tive! As mãos eram branquíssimas e os cabelos negros, tudo em perfeita simetria, sem nada fora do lugar, uma beleza sem igual! Estonteante! Sem tirar os olhos de mim falou mais uma vez:

-é uma pena que você não me reconheça menina! Não se assuste eu prometo não machucá-la. Mas você tem que me ajudar também! Não é fácil ser bonzinho com todo mundo...

-você veio me buscar? Eu morri?

- calma! Temos todo o tempo do mundo para conversar, agora quero que você me diga se existe na sua vida algo que precise ser resolvido, se tem algo inacabado. Diga!

Engraçado! A morte faz perguntas? O que eu poderia dizer? Minha vida era um oceano de assuntos inacabados, meu pai me odiava e eu não sabia o porquê, minha mãe era tão ausente, minha carreira era mal sucedida antes mesmo de começar, no amor era um desastre, com os amigos... Nem amigos eu tinha! O que eu iria dizer?

-minha vida nunca foi completa! Eu acho que fui um erro do destino... Leva-me logo com você e acaba com isso.

-não é bem assim mocinha! Eu não vim buscá-la, sua vida apenas está começando, olhe ao seu redor e veja quantas pessoas amam você.

Olhei e vi meus pais e mais algumas pessoas da universidade ao redor de alguém, choravam, lamentavam, eu podia sentir a tristeza deles. Isso doía em mim, era horrível sentir a dor deles... Sufocante...

-pára com isso! Tá doendo muito! Pára!

-desculpa! Eu disse, você tinha que me ajudar, é da minha natureza não ter pena, ser bom ou mau, apenas faço o que tenho que fazer! Eu vim dizer para você parar de me chamar, eu sou muito ocupado sabia? Ainda não é a sua vez. Diminua a cafeína, saia mais, converse mais com seus pais, eles te amam, só não sabem o que você sente por eles. E aquelas meninas que você chama de metidas são garotas legais e que acham você muito sozinha e querem se aproximar.

As pessoas não mordem e o amor não é um bicho de sete cabeças! Tá na hora de acordar, você tem muito a viver, tem um parente meu que quer muito ficar perto de você, o deixe chegar, o nome dele é felicidade.

-peraí! Felicidade não é feminino?

-não é bem assim, homem ou mulher, não existe gênero, é como com os anjos, entende?

-mais ou menos! E você, o que é?

-você vai descobrir um dia! Agora é hora de acordar, não esqueça tudo o que eu disse, agora vem cá...

- o quê? Como as...

Ele me beijou! E foi um beijo maravilhoso! Eu nunca imaginei algum dia beijar a morte, mas ele beija tão bem... Mas o fim não foi nada bom, acordei num sobressalto e minha cabeça doía intensamente. Quando abri os olhos não estava no meu quarto e sim num hospital, meus pais estavam ao redor da cama com um olhar tão triste, mas quando me viram acordar correram pra me abraçar e bendiziam a Deus e tudo foi perfeito, menos as minhas lágrimas... A dureza do meu coração dissolvia diante de tanto amor e cuidado, onde esse amor estava nesses vinte e três anos? Eu só podia chorar...

Acabei por descobrir que havia tido um derrame e tinha estado em coma, meus pais me contaram tudo, agora os via com outros olhos e tinha a certeza que eles me amavam, eu diria sempre que os amava tanto... Recebi várias visitas durante o tempo em que estive no hospital, pessoas que nunca imaginei que se interessavam por mim, mas uma pessoa em especial me chamou a atenção...

Quando todos saíram ele ficou no quarto, eu o vi meio que de longe assim que entrou, ficou quietinho no canto do quarto o tempo todo e quando o pessoal foi embora ele continuou ali de frente pra janela, eu não o conhecia, nem lembrava de o ter visto na faculdade... Então ele virou e com um tremendo susto eu o reconheci, era ele! A morte novamente!

-não menina! Eu não sou quem você pensa, nós somos idênticos, mas não a mesma pessoa. Meu nome é Feliciano. Mas pode me chamar de felicidade e eu vim roubar você pra mim!

Sempre a mania de chegar perto, perto demais... Sim! Ele me beijou, mas ao contrário da morte era quente, doce e viciante... O que aconteceu depois desse encontro é desconhecido pra mim, vivi muitas emoções num dia só!

Lembro-me apenas das sensações causadas e quando acordei de um longo sono ela estava ao meu lado, uma rosa belíssima, mas não sangrava e tinha a cor rosa, como deve ser a cor da felicidade e ele havia partido.

Mas a rosa ficou para mim, como um lembrete de que voltaria e cumpriria com a palavra de me roubar pra ele e quem seria louca de contrariá-lo?

Meu encontro com a morte foi muito proveitoso, mas o encontro final poderia esperar mais um pouco, afinal, eu não nasci na época do romantismo excedido mesmo...

(12/02/10)

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